26 Outubro 2018
A conformação de uma nova bipolaridade entre Estados Unidos e China não será indiferente para a América Latina. Estados Unidos demonstram mal-estar diante do coquetel e do bom-trato dos países da região à expansão da influência chinesa. Enquanto isso, o gigante asiático avança nas suas relações com a América Latina a partir do Cinturão Econômico da Rota da Seda. Dependendo de como se estruture o vínculo bilateral entre China e Estados Unidos o mundo poderia se dirigir para uma “bipolaridade flexível” ou para uma “bipolaridade rígida”.
O artigo é de Esteban Actis e Nicolás Creus, professores de Relações Internacionais, da Universidad Nacional de Rosario — Argentina, publicado por Nueva Sociedad, 22-10-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
América Latina não precisa de um novo poder imperial que somente busque beneficiar a sua própria gente (...) China oferece a aparência de um caminho atrativo para o desenvolvimento, mas isso na realidade implicada frequentemente o intercâmbio de lucros a curto prazo pela dependência a longo prazo.
(Discurso do Secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, em 1º de fevereiro de 2018, na Universidade do Texas, Austin)
Os países da América Latina e do Caribe formam parte da extensão natural da Rota da Seda Marítima e são participantes indispensáveis da cooperação internacional da Franja e da Rota.
(Fragmento do documento final da Segunda Reunião Ministerial CELAC – República Popular da China, 22 e 23 de janeiro de 2018, Santiago, Chile).
O reconhecido acadêmico chinês Minxin Pei apontou que se a Guerra Fria terminou em dezembro de 1991 com a desintegração da União Soviética, a era da Pós Guerra Fria parece ter finalizado em novembro de 2016, com o triunfo de Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Depois de 25 anos, a ordem internacional regressa a sua “normalidade” histórica, na medida em que a potência hegemônica volta a identificar como principal ameaça a sua primazia global ao outro Estado que cada dia tem maiores atributos de poder e influência: China.
Nessa linha argumentativa podemos marcar as reflexões de importantes analistas das relações internacionais. Em um artigo recente, Henry Kissinger apontou que “tanto para os Estados Unidos e China, assim como para o resto do mundo, a coevolução de Washington e Pequim é a experiência determinante do período atual”. Em consonância, o jornalista e o editor da Financial Times Martin Wolf destacou que a “rivalidade entre China e Estados Unidos moldará o século XXI”. Por último, Walter Russell Mead indicou que Estados Unidos decidiu começar uma “segunda Guerra Fria” ao colocar todos os seus esforços em conter a influência da China no plano global, sendo o aspecto comercial a primeira grande manifestação.
Em tal sentido, é possível observar uma bipolaridade emergente – com características particulares e diferentes a respeito do vigente durante a Guerra Fria –, com as duas potências mencionadas como centros de poder. Um dado insociável – e certamente explicativo da bipolaridade – é que ambos países são os únicos Estados na atualidade do sistema internacional com capacidade de sustentar e propagar projetos estratégicos de alcance global. No jargão dos internacionalistas, ambos países são os únicos capazes de prover “bens públicos” em escala planetária. Washington e Pequim não somente tem vontade política, senão que, ademais, contam com os instrumentos necessários para fazê-lo, em tanto dispõem de bancos multilaterais e estruturas de financiamento, agências governamentais de cooperação e empresas transnacionais múltiplas e diversificadas, entre outros atributos de poder. Em síntese, hoje o mundo parece circunscrito ao debate entre o atlantismo e a nova Rota da Seda.
A partir desse enfoque analítica, em um artigo recentemente publicado na revista Foreign Affairs Latinoamérica apontamos os aspectos centrais dessa nova bipolaridade, ao tempo que refletimos sobre a dinâmica e as implicações que poderiam derivar-se dela dependendo de como se estruture o vínculo bilateral entre China e EUA, que poderia oscilar e tornar-se uma “bipolaridade flexível” ou uma “bipolaridade rígida”. Esse último cenário é o que identificamos como o mais problemático e desfavorável para os países da América Latina, postura que pode se justificar por duas razões: 1) em um contextos de tais características, aumentariam os níveis de aversão ao risco e o mundo se tornaria mais restritivos, com uma consequente contração nos fluxos comerciais e de capital (tanto financeiros como de investimento estrangeiro direto), precisamente o contrário do que necessitam a maioria dos países da região; e 2) quanto maior a rigidez adquirir a bipolaridade, menor será a possibilidade de construir agendas positivas com ambas potências ao mesmo tempo.
Desse modo, a conformação dessa nova bipolaridade não resulta indiferente para a América Latina e já começa a mostrar algumas vibrações. O discurso citado de Rex Tillerson na Universidade do Texas demonstra o mal-estar norte-americano pelo coquetel e bom-trato dos países da região à expansão da influência chinesa. O ex-secretário de Estado mostrou uma inusitada retórica, reconhecendo os Estados Unidos e a China como “poderes imperiais”, ainda que identificando ao país asiático como menos conveniente, em resposta ao grau de cooperação alcançado em fevereiro desse ano na cúpula entre a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos – CELAC e China, celebrada em Santiago, Chile.
Ao decorrer de 2018, dois aspectos merecem ser destacados com notas salientes da transformação política da América Latina no contexto analisado: 1) a forte retração do diálogo interamericano evidenciado na VIII Cúpula das Américas celebrada em Lima – pela primeira vez, sem a presença do presidente dos Estados Unidos; e 2) a consolidação da cooperação bi regional sino-latino-americana. Cabe destaca, desse modo, que a aproximação da região ao gigante asiático não se dá apenas no campo retórico, mas também se discorre nas ações.
No próprio “quintal” dos Estados Unidos, Panamá e China, que mantém relações diplomática há um ano, quando o país centro-americano rompeu relações com Taiwan, acabam de firmar um acordo sobre o capítulo da propriedade intelectual no marco da terceira rodada de negociações para um acordo de livre comércio entre eles. É destacável que China seja o segundo maior usuário do Canal do Panamá depois dos Estados Unidos e que um consórcio chinês opere os portos em ambos extremos da via interoceânica.
Enquanto no Cone Sul, o chanceler do Uruguai, Rodolfo Nin Novoa, viajou para Pequim em agosto passado para assinar um Memorandum de Entendimento sobre Cooperação em razão do Cinturão Econômico da Rota da Seda (o projeto One Belt, One Road, em inglês). O Uruguai tornou-se o primeiro país da América Latina a se incorporar oficialmente à essa iniciativa chinesa.
Diante do inegável avanço global da China, nos primeiros dias de outubro o Senado estadunidense aprovou um pacote de 60 bilhões de dólares para projetos de infraestrutura no exterior. O plano representa mais do dobro dos recursos disponíveis até agora e propõe a criação de uma nova agência governamental para a sua veiculação e implementação, a US International Development Finance Corp. O consenso bipartidário sobre a necessidade de não perder terreno ante o financiamento chinês na infraestrutura regional é total. Segundo o Boston University’s Global Development Policy Center, as instituições financeiras da China já provem mais financiamento ao mundo em desenvolvimento que o Banco Mundial.
Apesar de que para a América Latina a maior disponibilidade de fundos para financiar o desenvolvimento possa ser uma boa notícia, é esperável que em um contexto como o atual, marcado por uma bipolaridade que tende para uma maior rigidez, a política de alianças desdobrada pelas grandes potências se torne mais rigorosas. Desse modo, poderia se eliminar a possibilidade de alternar entre as potências ou, no melhor dos casos, aumentariam os custos de fazê-lo. O custo que haveria que pagar pelos acordos seria mais alto e exigiria ainda definições estratégicas.
No plano comercial, começam a se ver indícios claros dessa dinâmica. O novo acordo entre Estados Unidos, México e Canadá (USMCA, pelas suas siglas em inglês) especifica que se um dos membros firma um acordo comercial com um país que não tem “economia de mercado” (a Organização Mundial do Comércio ainda não reconhece a China como tal), os demais podem abandoná-lo em seis meses. O novo acordo freia a intenção mexicana de apostar na China para diversificar suas relações econômicas. De sua parte, na negociação que levarão adiante as autoridades da Argentina e Brasil para evitar a imposição de taxas ao alumínio e ao aço, existiria o pedido por parte da administração de Trump de pressionar a China para que termine com sua política de subsídios à produção desses bens.
A disputa global por maiores espaços de poder e influência entre EUA e China também resulta evidente na dimensão financeira. A região deixou de ter como credores de última instância para episódios de vulnerabilidade externa unicamente os tradicionais credores ocidentais – Fundo Monetário Internacional – FMI, Clube de Paris, bancos privados internacionais). Nos últimos anos, China começou a jogar lentamente com o seu perfil de grande credor internacional. O caso venezuelano é paradigmático, dado que a dívida com a China ascende a 23 bilhões de dólares por empréstimos do governo dirigidos à estatal de Petróleos da Venezuela – Pdvsa. Estados Unidos é consciente de que qualquer saída da crise deverá matizar os interesses do governo e bancos da China, que em termos concretos se transformaram nos novos donos da indústria petrolífera venezuelana.
Por parte da Argentina, no contexto da crise econômica-financeira que atravessa, tentou jogar a “carta-chinesa” obtenção de oxigênio financeiro mediante à ampliação do swap vigente desde 2014, como complemente à ajuda financeira dispensada pelo FMI. Segundo transcendido, o governo argentino esperava alcançar uma ampliação do citado instrumento por uma cifra de em torno de 19 bilhões de dólares. Não obstante, o acordo ainda não foi firmado. Dado o firme apoio que tem recebido de Washington, vital para rubricar os dois acordos recentemente negociados com o FMI, para a Argentina é necessário suspeitar da relutância norte-americana em relação à China ampliar a sua influência em um dos países mais importantes da região. Em outras palavras, o forte apoio estadunidense parece ser ao mesmo tempo um elemento amortizador do avanço da China.
Concluindo, caso se entenda o conceito de poder como a capacidade de um ator para exercer influência (moldar acontecimentos e resultados) e se ponderem seus recursos (duros e brandos), assim como sua capacidade e vontade para oferecer bens públicos globais, resulta plausível a tese de que somos testemunhas da conformação de uma nova “bipolaridade”. Nos últimos meses se pode observar os primeiros impactos na América Latina dessa nova dinâmica da ordem internacional.
A agenda internacional da região se verá cada vez mais condicionada pela “bipolaridade emergente”, mais ainda se esta aumentar o seu grau de rigidez, produto de uma maior escalada nas tensões entre EUA e China. Para os países latino-americanos, que historicamente precisaram se adaptar a um entorno internacional que lhe é dado e que pouco puderam fazer para modificá-lo, se torna indispensável contar com interpretações precisas da ordem internacional e sua dinâmica, depois de conseguir maximizar oportunidades e reduzir ameaças.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
América Latina na nova bipolaridade emergente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU