26 Outubro 2018
O principal sinal de mudança até agora manifestado pelo atual chamado "governo da mudança" é a política ostensivamente desumana e abertamente ilegal que adotou em relação aos imigrantes. Mais uma vez o veneno racista da intolerância e do desprezo pelos "diferentes" está se espalhando não só na Itália, mas em todo o Ocidente, na União Europeia e nos Estados Unidos, como um veículo de fácil consenso em relação aos atuais populismos e às suas políticas de exclusão.
O artigo é de Luigi Ferrajoli, jurista italiano, publicado por Il manifesto, 24-10-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
É nesse terreno que hoje corre o risco de desmoronar a identidade civil e democrática da Itália e da Europa. As direitas protestam contra o que elas chamam de dano a nossas identidades culturais por parte das "invasões" contaminantes dos migrantes. Na realidade, elas identificam tal identidade com a sua identidade reacionária: com o seu falso cristianismo, com sua intolerância pelos diferentes, em suma, com o seu racismo mais ou menos consciente. Porém, pelo contrário, são justamente as políticas de fechamento que estão deformando e deturpando a imagem da Itália e da Europa, que de fato está experimentando uma profunda contradição: a contradição das práticas de exclusão dos migrantes como não-pessoas, não só com os valores de igualdade e liberdade registrados em todos os seus documentos constitucionais e na Declaração dos Direitos Fundamentais da União, mas também com sua mais antiga tradição cultural.
O direito de emigrar foi teorizado pela filosofia política ocidental às origens da era moderna.
Bem antes do direito à vida formulado no século XVII por Thomas Hobbes, o direito de emigrar foi configurado pelo teólogo espanhol Francisco de Vitoria, em suas Relectiones de Indis realizadas em 1539 na Universidade de Salamanca, como um direito natural universal. No plano teórico, essa tese inseria-se em uma edificante concepção cosmopolita das relações entre os povos conformada como uma espécie de fraternidade universal. No plano prático ela era claramente orientada à legitimação da conquista espanhola do Novo Mundo: mesmo com a guerra, em virtude do princípio vim vi repellere licet, onde ao exercício do direito de emigrar tivesse sido oposta ilegítima resistência. Toda a tradição liberal clássica, no mais, sempre considerou o jus migrandi um direito fundamental.
John Locke fundou sobre ele a garantia do direito à sobrevivência e a própria legitimidade do capitalismo: considerando que o direito à vida, ele escreveu, é garantido pelo trabalho, e todos podem trabalhar desde que o queiram, voltando para os campos, ou de outro modo migrando para as "terras incultas da América", porque "há terra suficiente no mundo para bastar para o dobro de seus habitantes".
Kant, por sua vez, enunciou ainda mais explicitamente não apenas o "direito de emigrar", mas também o direito de imigrar, que formulou como “terceiro artigo definitivo para a paz perpétua” identificando-o com o princípio de “uma universal hospitalidade". E o artigo 4 do Acte constitutionnel anexado à Constituição francesa de 1793 estabeleceu que "Cada estrangeiro de idade superior aos vinte e um anos que, residente na França por um ano, viva de seu trabalho, ou adquira uma propriedade, ou se case com uma cidadã francesa, ou adote uma criança, ou sustente um idoso, é admitido ao exercícios dos direitos de cidadão".
O ius migrandi, desde então permaneceu um princípio elementar do direito internacional consuetudinário, até sua já mencionada consagração na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Até que a assimetria foi invertida. Hoje são as populações que até ontem eram colonizadas que fogem da miséria causada pelas nossas políticas. E então o exercício do direito de emigrar foi transformado em crime.
Estamos, portanto, diante de uma contradição muito grave, que só a garantia do direito de emigrar poderia remover. O reconhecimento dessa contradição deveria não nos fazer esquecer aquela formulação clássica, cinicamente instrumental, do direito de emigrar: para que a sua memória possa pelo menos gerar - no debate público, no debate político, no ensino das escolas - uma consciência ruim sobre a ilegitimidade moral e política, antes mesmo que jurídica, das nossas políticas e agir como um freio sobre os atuais impulsos xenofóbicos e racistas.
Essas políticas cruéis estão envenenando e tornando má a sociedade, na Itália e na Europa.
Estão semeando medo e ódio pelos diferentes. Estão desacreditando, com a difamação daqueles que salvam vidas humanas, a prática básica do socorro àqueles que estão em perigo de vida. Estão fascistizando o senso comum. Estão, em resumo, reconstruindo os fundamentos ideológicos do racismo; o qual, como afirmou com extrema lucidez Michel Foucault, não é a causa, mas o efeito das opressões e das violações institucionais dos direitos humanos: a “condição”, escreveu ele, que permite a ''aceitabilidade da condenação à morte" de uma parte humanidade. Que é o mesmo reflexo circular que no passado gerou a imagem sexista da mulher e aquela classista do proletário como inferiores, porque só desse modo era possível justificar sua opressão, sua exploração e a falta de direitos. Riqueza, domínio e privilégio não se satisfazem em prevaricar. Também reivindicam alguma legitimação substancial.
Um segundo efeito que não é menos grave nem menos destrutivo, consiste em uma mudança das subjetividades políticas e sociais: não mais as velhas subjetividades de classe, com base na igualdade e nas lutas comuns para os direitos comuns, mas novas subjetividades políticas de tipo identitário baseadas na identificação das diferentes identidades como inimigas e na inversão das lutas sociais: não mais aqueles que estão em baixo contra aqueles que estão em cima, mas aqueles que estão em baixo contra aqueles que estão ainda mais em baixo. É uma mudança que está minando as bases sociais da democracia. Uma política racional, além de ser informada para a garantia dos direitos, deveria partir, de forma realista, do conhecimento de que os fluxos migratórios são fenômenos estruturais e irreversíveis, resultado da globalização selvagem promovida pelo atual capitalismo.
Aliás, deveria realmente ter a coragem de assumir o fenômeno migratório, como o autêntico fato constituinte da ordem futura, destinada, como instância e veículo da igualdade, a revolucionar as relações entre os homens e a refundar, em longos prazos, o sistema de ordenação internacional. O direito de emigrar seria equivalente, nessa perspectiva, ao poder constituinte dessa nova ordem global: já que o Ocidente nunca irá enfrentar seriamente os problemas que estão na origem das migrações se não os perceber como próprios. Os direitos fundamentais, como a experiência ensina, nunca caem do céu, mas só se afirmam quando a pressão daqueles que são excluídos nas portas daqueles que são incluídos torna-se irresistível. É por isso que devemos pensar no povo dos migrantes como no povo constituinte de uma nova ordem mundial.
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Povo constituinte e migrantes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU