19 Outubro 2018
Educação sexual nas escolas poderia ser uma arma eficaz contra abusadores, mas a histeria ideológica é o tiro pela culatra de quem se diz defensor da família.
A reportagem é de Breiller Pires, publicada por El País, 18-10-2018.
Enxurrada de notícias falsas, campanhas baseadas em mentiras, teorias conspiratórias sem pé nem cabeça virando verdade absoluta em grupos de Whatsapp. As eleições 2018 representam uma frustração diária para quem lida com informação. Mas se tem algo que enche de tristeza um jornalista neste momento é ver tanta gente aderindo à paranoia do ‘kit gay’.
Há bastante tempo investigo casos de abuso sexual de crianças no futebol. Vi de perto a dor de vítimas e familiares. Me dá uma profunda agonia que o sofrimento dessas pessoas seja utilizado como moeda eleitoral, de forma distorcida e irresponsável, pelo candidato a presidente que diz defender os valores da família.
A maioria dos pais de garotos abusados por treinadores, preparadores e dirigentes admite jamais ter conversado sobre sexo com os filhos. É quase unanimidade entre especialistas (psicólogos, assistentes sociais, sexólogos, médicos etc.), e eu já devo ter conversado sobre o tema com dezenas deles, de diferentes áreas, que a educação sexual na infância ajuda a prevenir abusos contra crianças e adolescentes.
Por isso, há um projeto de lei no Congresso Nacional, apoiado até mesmo por parlamentares conservadores, que pretende obrigar clubes e escolinhas de futebol a adotar medidas para evitar o abuso em suas dependências. Uma delas é justamente oferecer o básico de educação sexual aos jovens atletas. O que isso significa? Explicar que tipo de toque dos adultos eles não devem permitir, os limites do contato físico com técnicos e massagistas durante a prática esportiva e a quem recorrer caso sofram assédio de qualquer espécie.
O tal “kit gay”, que não chegou a existir na prática, nada mais é que uma proposta de levar educação sexual às escolas. Seu objetivo nunca foi pregar que menino deve brincar de boneca e menina de carrinho, muito menos estimular incesto ou erotização precoce, mas apenas disponibilizar informação a um grupo vulnerável de pessoas que não costuma receber em casa o devido esclarecimento – por vergonha, abandono, desconhecimento, pelo tabu.
E por que é necessário abordar as questões de gênero na educação sexual?
Para ficar no exemplo do futebol, os casos que apurei (são mais de 120 num período de sete anos) envolvem vítimas do sexo masculino. Um dos principais motivos para os garotos resistirem em denunciar os abusos é o medo de ser tachado como homossexual. Abuso é crime. É preciso dizer a eles que o fato de terem sido assediados ou molestados não altera a orientação sexual, tampouco interfere na sexualidade. Abusadores se aproveitam do preconceito para garantir o silêncio das vítimas. Enquanto reinar o preconceito, eles agirão impunemente.
Em seus 28 anos na Câmara dos Deputados, Jair Bolsonaro ventilou ideias na linha repressora, como castração química e aumento de penas para estupradores, em resposta à violência sexual. Porém, carece de propostas objetivas no campo da prevenção e presta um enorme desserviço à proteção dos direitos infantojuvenis ao contribuir para desqualificar a alternativa mais eficiente de se combater abusos sob o estigma de “kit gay”.
Zelar pelas crianças é causa nobre. No entanto, oportunismo e desinformação são o insumo da ignorância. Converse com seus filhos, busque fontes diversas de conhecimento, assuma o compromisso de não passar para frente “notícias” de procedência duvidosa, pesquise antes de tomar uma piada como verdade e, independentemente do seu voto, preserve o mínimo de bom senso.
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Vale mais defenestrar o 'kit gay' ou proteger crianças do abuso sexual? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU