17 Outubro 2018
Rígidos, mundanos, clericais, “escaladores”: quem é assim – e se está falando de bispos e padres – escandaliza o povo de Deus. E “escandalizar o povo de Deus é uma coisa muito feia”, sempre e de qualquer maneira. Especialmente quando se trata de abusos de menores: uma coisa “monstruosa”, comparável aos sacrifícios humanos de crianças que eram feitos pelos pagãos. Foi nesse fil rouge dos escândalos e das falhas do clero que se desdobrou a longo diálogo do Papa Francisco com os seminaristas da Lombardia, na Itália, recebidos no sábado passado em audiência na Sala Clementina do Palácio Apostólico, cuja transcrição só foi divulgada nessa terça-feira, 16.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada em Vatican Insider, 16-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um diálogo intercalado por referências bíblicas, piadas ou citações dos papas antecessores e, como muitas vezes acontece com os consagrados, feito todo de improviso, porque, explicou o pontífice, “quero ser espontâneo na resposta”.
A David, diácono há duas semanas em Milão, que o interrogava sobre os “escândalos que nos afligem” e que envolvem muitas vezes membros do clero, Francisco respondeu sem meias palavras: “Escandalizar o povo de Deus, isso é muito feio. É muito feio. E eu não falo do escândalo dos fracos, mas do povo de Deus: o escândalo do padre ao povo de Deus”.
A referência é claramente ao caso mais clamoroso, que é o dos abusos. O papa cita as estatísticas: “Dois por cento dos abusos que são feitos, foram feitos por padres. ‘Ah, é pouco, padre.’ Não. Porque, se fosse um único sacerdote, isso é monstruoso. Não nos justifiquemos porque somos apenas 2%. Setenta por cento ocorrem nas famílias e no bairro; depois, nos ginásios, os treinadores; nas escolas... É um escândalo, mas é um escândalo mundial que me faz pensar nos sacrifícios humanos das crianças, como faziam os pagãos. Sobre esse ponto, falem claro: se vocês virem algo assim, [vão] imediatamente ao bispo. Para ajudar esse irmão abusador. Imediatamente ao bispo”.
Além do escândalo da pedofilia, no entanto, existem “outros escândalos sobre os quais não está na moda falar”, observa Bergoglio. Um muito forte é o do “mundanismo espiritual”, que o cardeal De Lubac, na sua “Meditação sobre a Igreja”, definia como “o pior pecado da Igreja”.
“Ah, o padre ‘mundano’!” Talvez “educado, socialmente bem aceito, mas mundano”, mas que “nunca o vemos rezar diante do sacrário; você nunca o vê ir a um hospital e parar e tomar as mãos dos doentes, nunca. Nunca obras de misericórdia, aquelas difíceis de fazer”. Pois bem, “isso é um escândalo”, afirma o papa, e os fiéis dificilmente aceitam isso.
“Na minha terra, o povo de Deus não se escandaliza muito, mas age”, conta. “Por exemplo, é capaz de perdoar um pobre padre que leva uma vida dupla com uma mulher e não sabe como resolvê-la: ‘Ah, pobre homem, vamos ajudá-lo...’, mas não condena imediatamente. É capaz de perdoar outro padre que é um pouco solitário e pega no copo com muita frequência: ‘Ah, pobrezinho, um pouco de vinho lhe faz bem, está sozinho...’. O povo tem uma sabedoria grande. Mas não perdoa o padre que maltrata as pessoas: isso ele não perdoa! Porque se escandaliza. E não perdoa o padre apegado ao dinheiro: não perdoa.”
Outra “coisa feia”, sublinha o pontífice, é também “escandalizar o presbitério”. Por exemplo, “se você vai a uma reunião do presbitério e o bispo fala, ou outro fala, e depois você sai com um ou dois amigos para fofocar contra o bispo ou contra aquele outro que disse aquela coisa contra aquele outro... isso é um escândalo que fere o corpo. O escândalo fere. Nós – insiste o papa – devemos ser claros: sobre esse ponto, não se pode ceder. Os escândalos, não. Sobretudo quando os escândalos ferem os menores. O povo é mais simples... Condenar o escândalo, sempre. Não ceder”. E, “quando você virem que um padre escandaliza, por favor, vão ou diretamente ao encontro dele, ou ao seu amigo, ou ao pároco, ou ao bispo, para que o ajude”.
Para o bispo de Roma, trata-se de aprender uma verdadeira arte: “A arte de estar no seu lugar. Para estar no lugar de sacerdote, não se deve ser rígido. Não: humano, normal. Mas no seu lugar. Não escandalizar nunca”.
Uma maneira de fazer isso é pôr-se a caminho. Uma séria formação dos sacerdotes, diz o papa, respondendo a outra pergunta, é “colocá-los a caminho, que não fiquem parados”. Porque “um padre que não está a caminho pensa em bobagens, diz bobagens e faz bobagens. ‘Mas é arriscado...’ Sim. Você vai escorregar, mas eu lhes digo uma coisa: muitas vezes eu rezei ao Senhor por um padre – como exemplo para tantos, mas pensamos em um – para que lhe jogasse uma casca de banana, e ele desse uma bela escorregada que o humilhasse e, assim, ele pudesse seguir em frente. Colocá-los a caminho, sem muitas seguranças. É verdade que é um risco. Formas as pessoas é um risco, mas se arrisquem”.
“Na vida, quem não arrisca não vai em frente”, isso é verdade. Isso não descarta que, ao arriscar, ainda seja necessária a “prudência”, esclarece o Papa Bergoglio. A esse respeito, ele revela que teve que suspender uma ordenação sacerdotal em outro continente: “Anteontem, eu tive que fazer isso – ouçam isto –, eu tive, aqui de Roma! Mas o que aquele bispo tem na cabeça? E aqueles formadores que apresentam ao bispo uma pessoa assim: as notícias que tinham chegado eram terríveis!”, explica.
“Existem esses casos, mas a maioria não é assim. Vocês – diz aos padres e seminaristas – têm uma experiência de fraternidade, vocês são irmãos mais velhos, e com o diálogo... se arrisca. Na vida, quem não arrisca não vai em frente. Mas arriscar com prudência, arriscar com prudência. E de onde eu tomo a prudência? Da minha experiência de acompanhamento deste jovem e da oração. Não há um ‘como’ preciso. Nas reuniões para examinar a idoneidade, há prós e contras, mas vocês devem tomar uma decisão prudencial e informá-la ao bispo, e será o bispo quem vai decidir.”
Nas respostas do papa, não falta uma referência àquela que, para ele, é uma grave problemática do clero: “o enrijecer-se” e, portanto, “a defesa, o clericalismo”. “Se você vir um jovem seminarista que se enrijece, que vai na rigidez, faça-o esperar. Se for rígido, não está apto para a ordenação”, recomenda. “Hoje, a rigidez é um impedimento para a ordenação. Se você vir outro que leva todas as coisas a sério e não tem senso de humor, mande-o trabalhar no circo por um tempo! Depois, quando ele voltar, depois de dois anos, veremos como vão as coisas. Senso de humor, não rigidez: a rigidez é um impedimento. Por trás de toda rigidez, há problemas feios”. “O rígido protege a si mesmo, porque tem medo ou tem alguma doença dentro, um desequilíbrio, para cobrir alguma coisa... mas é sempre incapaz de entrar em processo.”
Com igual determinação, o Papa Francisco estigmatiza outra atitude bem presente entre os padres: “escalar”. “Se você não corrigir um seminarista que dá sinais de ser ‘escaladores’, faremos mal à Igreja”, adverte. “Uma vez, eu ouvi falar de um bispo com experiência que dizia: ‘O ‘escalador’ quer o máximo, mas se você lhe oferecer a menor diocese, ele vai pegá-la, porque dá um passo adiante: agora é bispo. Mas, em vez de guiar a diocese, vai olhar para a outra, a do vizinho, e – dizia aquele bispo – isso é adultério episcopal: olhar para a esposa do outro. Até chegar aonde ele quer’”.
A esse respeito, Francisco recorda o diálogo de Wojtyla com o então prefeito da Congregação dos Bispos, que lhe perguntava: “Dê-me alguns critérios para a escolha dos bispos”. “E, com aquela voz que João Paulo II tinha”, diz, abaixando o tom de voz para imitá-lo, “ele respondeu: ‘Primeiro critério: volentes nolumus’. Com isso, ele queria dizer: não há lugar para os escaladores. Serviço”.
O contrário do “escalador” é o santo, isto é, os sacerdotes que estão sempre “em processo” rumo à santidade. De que modo? Acima de tudo, ficando perto do povo de Deus, sendo “pastores das pessoas” e não “clérigos de Estado”. É assim que se combate o clericalismo, que, reafirma o papa mais uma vez, “é uma perversão da Igreja”.
E, a partir disso, entende-se de que lado um sacerdote está, se do lado dos fariseus, ou de Jesus. “Quando se vê um jovem padre totalmente centrado em si mesmo, que pensa em fazer carreira, este está mais do lado dos fariseus e saduceus do que do lado de Jesus. Essa é a verdade”, afirma Bergoglio.
Em vez disso, “quando você vê um padre que reza, que está com as crianças, ensina a catequese, que celebra a missa com a sua comunidade, que sabe os nomes das pessoas porque se aproxima, no fim da missa vai e cumprimenta um e outro: ‘Como você está? E a família?...’. Essa é a proximidade que Jesus tinha. Uma vez eu ouvi alguém daqui, alguém que trabalha no Vaticano... – porque há santos aqui dentro, há santos! – que me dizia que havia sido pároco por um tempo e sabia o nome de todos, até o nome dos cachorros! Essa é a proximidade de um padre, um padre santo, mas com a santidade comum à qual todos somos chamados”.
Na conversa, o papa também abordou o tema do discernimento, ou seja, “ver o que o Senhor quer de mim” a partir “do que sinto, o que me deixa em paz, o que me deixa inquieto, o que me tira a paz...”. Discernir, explica o papa, é fazer um contínuo exame de consciência “não só para fazer a contabilidade dos pecados que cometi ou as virtudes de hoje, mas para ver o que aconteceu no meu coração”.
“Uma das coisas mais difíceis na vida cristã e na qual é preciso discernimento, muito, é como conviver com o pecado”, acrescenta o papa. “Todos somos pecadores, todos; e não só na teoria: na prática. E, quando eu caio, como convivo com essa queda? Como resolvo esse fracasso? Buscar na oração, no conselho, como ir em frente com o pecado e resolvê-lo”.
“Estou em uma escuridão por um erro, por um pecado que cometi, vou ao encontro do Pai, imediatamente; ou vou ao encontro daquele companheiro que vai me ajudar. Mas sempre buscar quem me ajude a conviver com as minhas coisas feias, com os meus equívocos.”
Nota de IHU On-Line: a íntegra, em espanhol, do diálogo do Papa Francisco com os seminaristas da Lombardia, Itália, pode ser lida aqui.
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''Os abusos de menores são como os sacrifícios humanos de crianças feitos pelos pagãos'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU