01 Outubro 2018
Neus Forcano (Barcelona, 1966) participou, no último fim de semana (29 e 30 de setembro), em Saragoça, do XXII Encontro de Mulheres e Teologia. Colabora com Cristianismo y Justicia, com o Col-lectiu de Dones en l'Església e faz parte da Associação Europeia de Mulheres para a Pesquisa Teológica. Ela defende que o catolicismo é compatível com o feminismo. E, além disso, assegura que sua mensagem pode ser interessante inclusive para a vida cotidiana de feministas ateias ou agnósticas.
A entrevista é de Ana Sánchez Borroy, publicada por El Diario, 29-09-2018. A tradução é de André Langer.
Como se aborda a teologia com perspectiva feminista?
Há anos estamos fazendo estudos bíblicos na perspectiva feminista, aplicando o método da suspeita de Elisabeth Schüssler Fiorenza, teóloga alemã que reside nos Estados Unidos. Este método parte da ideia de que as mulheres eram atuantes e estavam presentes nas comunidades cristãs dos primeiros séculos, mas argumenta que o contexto patriarcal, às vezes, não permite que emirjam nos textos bíblicos. Por isso, devemos ler os textos, mas sempre nessa perspectiva: saber que, na realidade, ali havia mulheres. Assim, surgem nuances muito libertadoras e sugestivas que dão legitimidade para agir, para fazer missão, para pregar ou para celebrar. Portanto, a teologia feminista parte do fato de que as mulheres foram invisibilizadas e sofrem por causa do patriarcado. A atualização da teologia feminista consiste em reler a reflexão sobre Deus ou sobre as comunidades eclesiais de maneira libertadora em relação às mulheres.
Pode dar algum exemplo desses textos bíblicos que devem ser relidos usando o método da suspeita?
Um texto muito paradigmático é um episódio narrado pelo Evangelho de Lucas no qual Jesus entra na casa de Marta e Maria, supostamente em Betânia. Há uma contraposição muito clara entre as duas figuras: Marta, aquela que serve, que está de pé, a ativa; e Maria, aquela que se ajoelha aos pés de Jesus e ouve. Esta cena tem sido amplamente utilizada na Igreja católica há séculos para enfatizar que “a melhor parte”, que é uma das frases que o evangelista põe na boca de Jesus, “fica com Maria”, porque está ajoelhada escutando e aprendendo com o mestre. Pelo contrário, denegriu-se a figura de Marta, que é a parte ativa, a pregadora que leva a missão.
No Evangelho de João emerge a mesma figura de Marta e é precisamente ela que faz uma profissão de fé em Jesus, reconhecendo-o como o ressuscitado. De fato, a comunidade joanina reconhecia em Marta uma das missionárias. Portanto, é importante afastar-se de algumas interpretações que tradicionalmente chegaram até nós. Trata-se de não contrapor as duas figuras, mas ter presente que podem ser complementares, que somos as duas atitudes... É outra maneira de interpretar os textos que pode ser libertadora.
Essa visão mais feminista dos textos bíblicos deveria ter alguma consequência sobre as formas e a organização da atual Igreja católica?
Sim, completamente. Este é um dos temas do encontro da rede Miriam de espiritualidade inaciana e do movimento Mulheres e Teologia de Saragoça. Por exemplo, uma das consequências de olhar para a experiência cristã na perspectiva feminista leva a ter em conta a diversidade familiar e sexual. A Igreja católica ainda tem um problema de noção da complementaridade dos sexos, que não é, do ponto de vista feminista, nada libertador para as mulheres nem para os homens. O magistério da Igreja católica tradicionalmente diz que a missão da mulher é ser uma boa esposa e ter filhos, a menos que se dedique a uma opção religiosa mais radical. A missão do homem seria ser um bom marido e o chefe da família.
Portanto, baseia-se em uma essencialização, ou seja, pelo fato de ser mulher, você tem que ter disposição para cuidar, para o cuidado e relações afetivas com o outro, e por ser varão, você tem um papel determinado e reconhecido socialmente. Nós não acreditamos nessa essencialização de papéis e nessa complementaridade. Acreditamos que somos complementares: que existe uma interdependência, que é importante fazer redes de solidariedade e ter gestos de solidariedade com todos em um grupo, em uma família, em uma comunidade eclesial, na sociedade... Porque somos interdependentes, cuidamos uns dos outros e somos responsáveis pelo que devemos construir em comum.
No fórum deste fim de semana trata-se deste tema da diversidade familiar e de como as comunidades eclesiais hoje, aqui na Espanha, se abrem para reconhecer uma variedade de famílias monoparentais, separadas, formadas por pessoas que voltaram a se unir novamente, homossexuais, com filhos, sem filhos... Toda essa variedade, como a tratamos? Como a vivemos? E como nos abrimos a ela? São decisões familiares. Por exemplo, trata-se de entender um filho que considera que sua identidade é transexual. Todos esses temas são radicalmente atuais, e a Igreja não pode ficar para trás, evitando-os ou esconder a cabeça. Devemos saber como tratá-los e precisamos nos informar.
Vocês se sentem ouvidas como corrente que pede maior abertura para os novos modelos afetivos e familiares?
Sim, totalmente. Caso contrário, as comunidades eclesiais ficariam fechadas. Se fundamentássemos a fé na comunidade eclesial em uma moral estabelecida, estaríamos deixando de fora o critério próprio da ação e da crença. Pelo contrário, o cristianismo é, para mim, uma religião que dá grande valor ao ser pessoal e, portanto, para ser você mesmo, para se encontrar a si mesmo, para saber qual é o seu desejo profundo, quem você é e que dá legitimidade para os seus desejos íntimos, para os seus desejos próprios.
Não num sentido hedonista ou individualista, mas no sentido de nos legitimarmos como ser autônomo e dar permissão à nossa subjetividade para ser, para aflorar e para oferecê-la aos outros. Na medida em que você faz isso pode se religar aos outros em comunidade; somente se você se der respeito, se se conhecer e se der um nome, pode respeitar os outros. Assim, criam-se realmente relações de comunidades eclesiais, sociais e comunitárias, projetos políticos... Temos que perder o medo dessa diversidade.
As comunidades eclesiais que não fizerem este exercício ficarão presas a modelos que priorizam o uniformismo, onde todos pensem da mesma forma, todos acreditam na mesma coisa, todos têm mais ou menos as mesmas experiências. Isso é muito ruim; temos que nos abrir, porque existe uma grande necessidade de as pessoas entenderem o que está acontecendo com elas, como podem fundamentar seu ser em uma antropologia e num viver comunitariamente que, para elas, faça sentido.
Eu perguntava se se sentem ouvidas, porque isso está muito distante da atual doutrina oficial da Igreja católica...
Bem, da doutrina sobre o papel do magistério oficial, certamente sim. Por outro lado, existem muitas comunidades que começaram a fazer experiências muito interessantes de comunidades mistas. Por exemplo, com pessoas que fizeram opções religiosas mais radicais, no sentido de que decidiram não criar famílias para se dedicar mais a outras pessoas ou a projetos sociais, mas que pensam que viver em comunidades com pessoas de diferentes opções lhes proporciona uma dimensão da realidade e uma riqueza muito interessante.
Há também outras comunidades de acompanhamento e crescimento pessoal, como a rede Miriam de espiritualidade inaciana, que há anos vem levando muito a sério a diversidade familiar e sexual e como acompanhar e acolher famílias com filhos e filhas que tiveram alguma experiência de rever, por exemplo, sua identidade sexual. Esses processos devem ser acompanhados.
Pensam que a Igreja abusou do sentimento de culpa nas mulheres, desde a maçã da Eva?
Totalmente. É um mito que, como todos os mitos, é reinterpretado nos diferentes momentos da história nos quais supõe a possibilidade de exercer controle ou poder. No entanto, também houve na história teólogas feministas ou religiosas que reinterpretaram o mito de Eva de uma maneira completamente diferente. Um caso muito claro é o de Isabel de Villena, uma freira clarissa do século XV de Valência, que escreveu Vita Christi, um livro fantástico que pode ser encontrado nas livrarias. Ela fala da felix culpa, um conceito tradicional da Igreja católica que constata que o fato de que Jesus ressuscitado salvou a todos, indica que, embora os seres humanos sejam incompletos e que cometem erros, nunca termina a esperança cristã de poder agir sempre superando seus próprios limites.
Isabel de Villena também escreve dando graças a Eva por seu gesto de liberdade, de querer conhecer, ainda que nesse momento se saia mal. Graças a Jesus Cristo, até mesmo Eva é perdoada, não tem nenhuma culpa e não tem por que ter remorsos. Todos nós temos que estar conscientes e saber até onde podemos ir e levar os outros em conta. Mas a culpabilização simplesmente desaparece pelo fato de ser mulher. Onde se viu? Que sentido tem que, pelo simples fato de ter nascido com um corpo sexuado feminino, tenha que suportar uma culpabilização histórica?
Essa visão significa também reclamar mudanças quanto ao acesso desigual das mulheres ao sacerdócio?
Essa é outra questão que também toca na concepção hierárquica e muito eclesiástica da Igreja. Eu acredito que a Igreja na Espanha não escapa ao clericalismo, isto é, durante muito tempo se acreditou que a Igreja, por ser uma grande comunidade crente, tinha que se organizar estruturalmente através de alguns cargos e títulos da hierarquia eclesiástica. Assim, muitos varões puderam fazer carreira nas estruturas organizativas de uma grande instituição.
No entanto, o sentido do celebrante que pode em um momento comunitário dar a palavra, pregar ou dar a comunhão não teria por que coincidir com alguém que na estrutura organizacional hierárquica da instituição tivesse um título. E, por exemplo, os bispos poderiam ser escolhidos diretamente das comunidades, como se fazia nos primeiros séculos. Acontece que há uma estrutura muito bem fixada ao longo de muitos séculos e acho mais difícil mudá-la.
Mas há também teólogas feministas que vêm criticando esse clericalismo aberrante há anos. A organização Women’s Ordination Worldwide há anos vem lutando para pedir a possibilidade da ordenação de mulheres. O Papa Francisco criou uma comissão de estudo para avaliar a possibilidade do diaconado das mulheres, embora surja uma questão técnica: se o diaconado é entendido como uma ordenação ou como um ministério. A verdade é que as feministas dizem que as mulheres há muito tempo exercem a função de ministras, que celebram, que concelebram em festas, que dão bênçãos, que batizam seus filhos... Portanto, existe uma realidade palpável de pessoas que já exercem a função de ministra, que são apóstolas no sentido de difundir a mensagem do Evangelho.
Você acredita que a hierarquia católica teria agido de maneira diferente em relação aos casos de pedofilia se houvesse mulheres nela?
Não. Quando se fazem essas comparações, acho que também caímos em um essencialismo. Eu não penso que isso dependa do sexo ou da identidade sexual, mas das pessoas, como você se entende, que concepção tem de Deus e dos outros. Passa por uma consciência e um crescimento pessoal, que é um chamado que cada um de nós tem. O que eu acredito é que, às vezes, dos lugares de sofrimento ou de marginalização é de onde surgem as possibilidades de mudança e de esperança. Isso é normal, isso acontece também na história.
Portanto, não é estranho que em nossa época ainda precisemos lutar pela dignidade das mulheres, pelo seu respeito e pensar sobre o que fazemos com o corpo das mulheres. Também no mundo civil há exemplos de que ainda não conquistamos o espaço. É horrível o que a sociedade patriarcal, em nome da liberdade do corpo, propõe em algumas áreas como a maternidade substituta, a barriga de aluguel. É uma questão de ética e de como usamos os corpos das mulheres e como os deixamos usar em nome de uma falsa liberdade sobre a qual devemos refletir.
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“A Igreja não pode enfiar a cabeça na areia diante dos novos modelos afetivos e familiares”. Entrevista com Neus Forcano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU