16 Setembro 2018
"O Papa Francisco, com todas as muitas e variadas tarefas que deve enfrentar diariamente, parece ter reconhecido que é hora de uma ação drástica, e é por isso que ele convocou essa reunião das conferências episcopais. É importante que ele não tenha reunido apenas cardeais da Cúria: somente quando os bispos em campo sentem um senso de responsabilidade uns para com os outros, e não apenas para Roma, a cultura eclesial retornará à saúde", escreve Michael Sean Winters, jornalista, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 14-09-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
"Reforma" é o mantra entoado por todos os lábios. O período infernal para a Igreja Católica, no qual a crise dos abusos sexuais clericais de 2002 voltou às primeiras páginas após a exoneração do ex-cardeal Theodore McCarrick primeiramente do ministério e depois do cardinalato, seguido pelo relatório do grande júri da Pensilvânia, levou a este apelo para a mudança e reforma de todas as alas da Igreja Católica. Mas nem todas as reformas são iguais e nem todas são aconselháveis.
O Santo Padre anunciou, nesta semana, que está convocando todos os chefes das conferências episcopais do mundo a Roma para uma reunião em fevereiro próximo. Eles vão se concentrar na questão do abuso sexual. "Se eles estão postergando isso, planejando por cinco meses, é melhor que não seja só mais falatório", disse Peter Isely, membro fundador do Ending Clergy Abuse (“Acabando com o Abuso Clerical”, em tradução livre), um grupo global de sobreviventes e ativistas, ao Washington Post. "Há essa desconexão entre o quanto isso é grave e esse ritmo com o qual eles se movem". Infelizmente, Isely está certo: Roma aeterna não significa apenas que a grande cidade é eterna, mas que parece levar uma eternidade para que qualquer coisa seja feita.
A cobertura do explosivo dossiê de Viganò se concentrou nas alegações feitas pelo ex-núncio e no ajuste de contas que parecia ocupar pelo menos oito das nove páginas. Mas o que esse dossiê também mostrou é o que o Papa está enfrentando. É fácil para os colunistas dos Estados Unidos reclamar do ritmo lento da reforma, seja o problema o abuso sexual clerical ou as finanças notoriamente obscuras do Vaticano.
Mas Viganò mostrou involuntariamente o grau em que a Cúria do Vaticano é um criadouro de rivalidades e fofocas, suas divisões não obedecendo apenas linhas ideológicas ou partidárias. Por exemplo, Viganò elogiou seu mentor, o cardeal Giovanni Battista Re, e nem mencionou outro protegido de Re, o cardeal Justin Rigali. Mas Re fazia parte do regime do Papa João Paulo II, que estabeleceu o padrão seguido por outros bispos em lidar com o abuso sexual clerical: recusar-se a encontrar vítimas, desacreditar seu testemunho, encobrir criminosos e seus atos criminosos, dizer aos bispos que não sejam duros demais com seus padres, não responsabilizar os bispos, proteger a instituição a todo custo.
O Vaticano melhorou em sua maneira de lidar com abuso sexual. Por dois pontificados consecutivos, tolerância zero foi aplicada contra os padres que abusaram de crianças. E, enquanto o Papa Bento XVI não conseguiu disciplinar os bispos quanto à negligência, o Papa Francisco demitiu o bispo Robert Finn de Kansas City-St. Joseph, o arcebispo John Nienstedt, de St. Paul-Minneapolis, e toda a bancada episcopal do Chile, por sua má condução dos casos de abuso. (Nienstedt também foi acusado de má conduta em relação a subordinados adultos, acusação que ele nega.) E Francisco, devemos lembrar, foi quem finalmente tomou medidas contra McCarrick.
Ainda assim, Isely e outros podem apontar o fracasso em prosseguir com os planos de um tribunal para julgar casos contra bispos acusados de negligência como prova de que as reformas são incompletas e até irresolutas. A sobrevivente irlandesa Marie Collins tem sido clara em expressar suas preocupações com o ritmo engessado das mudanças na Cúria e a contínua indiferença de muitos que trabalham lá.
Algumas pessoas acham que a reforma necessária deve se concentrar apenas nas questões sexuais envolvidas no escândalo. O liberal Napa Institute anunciou o cronograma para a sua "Authentic Catholic Reform Conference" ("Conferência para a Reforma Católica Autêntica", em tradução livre) no início de outubro. A professora Janet Smith, do Sacred Heart Major Seminary, em Detroit, discutirá "O Problema da Homossexualidade". Um orador a ser definido irá abordar "Humanae Vitae como uma Carta para a Reforma". Ficaria feliz em abordar esse tema se eles não conseguirem encontrar mais ninguém para fazer. Gosto da Humanae Vitae, mas a aprecio como um último suspiro da neoescolástica, então não tenho certeza de como isso poderia servir como uma carta para a reforma. Scott Hahn falará sobre o chamado universal à santidade, um tema central do Concílio Vaticano II, mas que, nas mãos de Hahn, parece estranhamente alérgico a qualquer exame profundo das patologias da cultura dos EUA.
Outros acham que a reforma requer uma transferência indiscriminada do poder da hierarquia ("ruim!") para o laicado ("bom!"), o que nos tornaria congregacionalistas. De fato, desconfio do uso da palavra "poder" nas discussões da reforma dentro de uma Igreja fundada por alguém que foi crucificado. Alguns acham que mudanças estruturais e processuais resolverão o problema. Outros ainda se concentram na necessidade de renovação espiritual. A crise dos abusos sexuais expôs uma doença real na Igreja, e uma combinação de renovação estrutural, cultural e espiritual será necessária.
Não tem sido isso o que o Papa vem pedido? Nas pequenas coisas e nas grandes, nas simbólicas e nas reais, ele vem lentamente mudando a cultura do Vaticano. Mudar-se dos aposentos papais não era apenas simbólico, também significa que o Papa não é tão isolado e elevado. O uso de sínodos para realmente discutir questões, e não simplesmente carimbar o que a Cúria quer, causou desconforto para alguns, mas também está fornecendo as fontes de renovação nos ensinamentos da Igreja e no ministério para as famílias. O desenvolvimento de métodos alternativos de coleta de informações sobre candidatos ao episcopado ajuda a minimizar o papel frequentemente corruptor dos núncios, muitos dos quais são clericalistas a um grau ultrajante e profundamente desconfiados do papel das conferências episcopais locais na tomada de decisões.
As homilias diárias do Papa são um convite a todos nós para que bebamos profundamente na fonte da Sagrada Escritura, para que sejamos nutridos pela Palavra de Deus, apresentada de maneiras acessíveis, caseiras e desafiadoras pelo Papa Bergoglio. Me chame de bobo, mas o tecido gasto da batina do Papa também fala de um desapego das coisas deste mundo que é refrescante e evangélica. Acima de tudo, o incansável apelo do Papa Francisco a todos nós para irmos às margens e encontrarmos os pobres do mundo conserva a Igreja do tipo de vida eclesial autorreferencial que gerou o clericalismo e a indolência espiritual que fizeram a crise dos abusos sexuais possível.
Ninguém, até onde sei, forneceu uma explicação convincente de por que, em meados do século XX, o abuso de crianças pelo clero se tornou tão frequente a ponto de causar essa crise. As razões são complicadas e de muitas eu suspeito. Não há uma explicação mágica do motivo pelo qual isso aconteceu, e todos podemos ter esperança que as previsões estejam corretas que não há sinais de que seja recorrente na escala maciça que testemunhamos durante o auge do abuso nos anos 70.
Mas o pecado expôs uma doença mais profunda. O que é óbvio agora é que o encobrimento desse abuso estava ligado a uma cultura clerical que havia se tornado autossatisfeita e não autoabnegada, que era orgulhosa e não humilde, egoísta e não missionária, doente e reservada, não saudável e transparente. O Papa Francisco, com todas as muitas e variadas tarefas que deve enfrentar diariamente, parece ter reconhecido que é hora de uma ação drástica, e é por isso que ele convocou essa reunião.
É importante que ele não tenha reunido apenas cardeais da Cúria: somente quando os bispos em campo sentem um senso de responsabilidade uns para com os outros, e não apenas para Roma, a cultura eclesial retornará à saúde. Há um Ardil-22 (paradoxo onde não se pode evitar um problema devido a regras contraditórias que favorecem abusos de poder) em ação aqui: está longe de ser claro que os bispos têm o capital moral para exercer uma liderança significativa, por isso espero que o Papa possa ajudá-los. Ainda assim, ele está certo em não pensar que essa bagunça pode ser resolvida por um decreto de Roma.
Será que vai dar certo? Suponho que isso dependa do que você entende por dar certo. Novamente, nós adoramos um Deus crucificado, de modo que conceitos como "sucesso" não tenham lugar no léxico católico. Vou encerrar hoje com uma ótima citação que já fiz antes. É de Marlborough: His Life and Times (“Marlborough: Sua Vida e Época”, em tradução livre) do descendente do grande homem, Winston Churchill. Ele está olhando em retrospecto para os grandes sucessos militares do ano de 1706 e para a loucura humana que estava prestes a jogar fora seus frutos. Ele escreve:
“As vitórias de Ramillies e Turim: o alívio de Barcelona; a captura de Antuérpia e uma dúzia de fortalezas famosas nos Países Baixos; os franceses expulsos da Itália; Carlos III entrando em Madri; a completa supressão da França sobre os mares e oceanos - tudo isso preparou um caminho amplo e fácil ao longo do qual os estados signatários da Grande Aliança, que haviam lutado tanto contra o infortúnio, podiam caminhar para a paz e para a abundância. Mas, pela lei misteriosa que, talvez por interesses maiores, limita as realizações humanas e impede ou protege o mundo de soluções definitivas, esse segundo renascimento da causa aliada levou apenas a um segundo declínio.”
A frase "impede ou salva o mundo de soluções definitivas" deve estar na boca de todos que clamam por reforma. Devemos deixar algum espaço para o Espírito Santo agir. Devemos admitir que somos todos pecadores, todos nós capazes dos comportamentos mais abjetamente pecaminosos e dos mais altruístas. Devemos lembrar, também, dos "interesses maiores" manifestados no nascimento de Isaac, a sarça ardente, a cruz no Gólgota, as vidas dos santos e as mortes dos mártires, e em nossas loucuras humanas, nossas felizes falhas que ganharam para nós tão grande salvador. Este não é um momento para consultores de gestão. É hora de uma obediência mais radical ao Evangelho e às doutrinas da Igreja e aos ensinamentos do Concílio Vaticano II. As ferramentas de renovação estão lá. O Papa Francisco tem nos dito isso há cinco anos. Talvez agora a Igreja esteja pronta para ouvir.
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