15 Setembro 2018
"Em primeiro lugar, parece-me absolutamente evidente que, com Francisco, a Igreja não somente está saindo definitivamente do silêncio sobre os abusos sexuais de menores ou de adultos em situação de vulnerabilidade, mas também está demonstrando estar determinada a combater com rigor e prevenir, dentro dela, essa chaga, colocando-se em sincera e respeitosa escuta das vítimas", escreve Andrea Lebra, em artigo publicado por Settimana News, 12 -09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como pode um sacerdote ao serviço de Cristo e da sua Igreja, chegar a causar tanto mal? Como pode ter consagrado a sua vida para conduzir as crianças a Deus, e em vez disso terminar por devorá-las naquilo que eu chamei de um sacrifício diabólico, que destrói tanto a vítima quanto a vida da Igreja? Trata-se de uma monstruosidade absoluta, de um horrendo pecado, radicalmente contrário a tudo que Cristo nos ensina. Jesus usa palavras muito duras contra aqueles que prejudicam as crianças, "Mas se alguém fizer tropeçar um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe seria amarrar uma pedra de moinho no pescoço e se afogar nas profundezas do mar." (Mt 18,6) Declaramos que é nosso dever demonstrar extrema severidade com os padres que traem a sua missão, e com a sua hierarquia - bispos ou cardeais – que os tivessem protegido, como já aconteceu no passado (Papa Francisco, do prefácio do livro de Daniel Pittet, La perdono, Padre ‘Eu te perdoo, Padre’, Edizioni Piemme, Milão 2017, p. 8).
Eu li e meditei com atenção a "Carta ao Povo de Deus" do Papa Francisco de 20 de agosto de 2018[1] sobre o escândalo que ele próprio, encontrando-se em privado a Lima com os jesuítas do Peru, em 18 de janeiro de 2018, definiu como "a maior desolação que a Igreja está passando”.[2]
Como é sabido, por ocasião da publicação da carta, em 14 de agosto de 2018,[3] do volumoso relatório (aproximadamente 1.400 páginas) do Grande Júri do estado da Pensilvânia (EUA), no qual estão descritos em detalhes a experiência de pelo menos mil pessoas que, ao longo dos últimos setenta anos, foram vítimas de abusos, não só sexuais, mas também de poder e de consciência, por 301 sacerdotes e pessoas consagradas de oito dioceses do estado norte-americano.
Mas imagino que a carta tenha sido escrita por causa de muitos países envolvidos no fenômeno (Brasil, Chile, Honduras, EUA, Irlanda, Alemanha, Austrália, Filipinas, França, Suíça, Espanha e México)[4] e tendo em consideração a extensão em diferentes graus e níveis eclesiásticos envolvidos: que vão do simples sacerdote, ao conhecido monsenhor, ao educador de catequese e ao fundador carismático de ordens religiosas.
Um documento semelhante foi escrito em 31 de maio de 2018 por Francisco "o povo de Deus peregrino no Chile" 31[5] e em 19 de março de 2010 por Bento XVI "aos católicos da Irlanda".[6]
Na carta de Francisco os “abusos sexuais, de poder e de consciência” perpetrados pelo clero e por pessoas consagradas, contra menores e adultos em situação de vulnerabilidade "são qualificados, não apenas como “erros”, ou seja, como “feridas que nunca devem prescrever", mas também como "crimes", "delitos” e “atrocidades" que exigem justiça, prevenção e reparação. A solidariedade com as vítimas envolve, por um lado, a denúncia de "tudo o que poderia pôr em risco a integridade de qualquer pessoa", e pelo outro, "a luta contra todas as formas de corrupção, especialmente aquela espiritual."
Dois conteúdos da carta mais me impressionaram.
O primeiro é o convite que Francisco dirige com insistência ao povo de Deus, como sujeito teológico, “para assumir esse fato de maneira global e comunitária”, de um “crime que gera feridas profundas de dor e impotência, em primeiro lugar nas vítimas, mas também nas suas famílias e na inteira comunidade".
De acordo com Francisco, "é necessário que cada batizado se sinta envolvido na transformação eclesial e social de que tanto necessitamos" para "erradicar essa cultura da morte", que é a base das "atrocidades" cometidas e substituí-la com a "cultura do cuidado e do ‘nunca mais’ a qualquer tipo e forma de abuso”.
"A única maneira de respondermos a esse mal que prejudicou tantas vidas - insiste o Papa – e vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a todos como Povo de Deus".
Na ausência de tal envolvimento, tudo o que é feito para erradicar a cultura do abuso das nossas comunidades "não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista", tanto no âmbito eclesial como social.
A seguinte declaração de Francisco realmente me fez refletir profundamente: "Dizer não ao abuso é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo".
A denúncia do clericalismo muitas vezes retorna no ensinamento de Francisco. Basta citar a carta de 19 de março de 2016 para o card. Marc Armand Ouellet, presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina.
O clericalismo "não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tende a diminuir e subestimar a graça batismal que o Espírito Santo colocou" em seus corações. "O clericalismo leva a uma homologação do laicato; tratando-o como mandatário, limita as várias iniciativas e esforços, e, ouso dizer, a audácia necessária para levar a Boa Nova do Evangelho a todos os âmbitos da atividade social e, sobretudo, política".
Lembrando justamente a carta para o card. Marc Ouellet Armand, Francisco recorda que, toda vez que se tenta "suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus", a autoridade na Igreja torna-se sinônimo de clericalismo "aquela atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tende a diminuir e subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração de nosso povo".
O clericalismo, na verdade, tanto quando é imposto pelos presbíteros, tanto quando é alimentado pela passividade das pessoas batizadas, "gera uma cisão no corpo eclesial" destinada a fomentar e reiterar muitos dos males denunciados.
Depois da leitura da carta, minha primeira reação foi a de fazer a seguinte pergunta: mas o que eu tenho a ver com os crimes infelizmente cometidos por um número tão elevado de sacerdotes com a cumplicidade silenciosa de muitos bispos e como eu posso arcar com isso?
Pergunta para a qual tive dificuldade para responder, não me sentindo responsável por uma situação de tamanha gravidade que, devido a esse fenômeno, está atravessando a Igreja católica em várias partes do mundo.
O convite de Paulo, "se um membro sofre, todos sofrem juntos" (1 Cor 12,26), invocado por Francisco no início e no final da carta, ajudou-me para tentar reagir de forma responsável,[7] levantando considerações e propostas de iniciativas úteis, para que tanto na comunidade cristã como na sociedade civil, seja promovida, estabelecida e consolidada, "uma cultura capaz de evitar que essas situações, não só não aconteçam, mas que não encontram espaço a serem ocultadas e perpetuadas."
O escândalo dos abusos é devastador. À custa dos muitos bons sacerdotes, de comportamento exemplar, operosos, empenhados em transmitir a beleza do evangelho de Jesus,[8] a irradiar zelosamente uma vida autenticamente cristã, e ajudar no crescimento do povo de Deus em uma fé que diviniza e humaniza. O mal não deve obscurecer o grande bem que cotidianamente e silenciosamente é feito em todas as partes do mundo em favor dos pobres e das crianças e adolescentes em estado de abandono. Para eles, que fizeram de sua vida uma obra-prima de serviço e de amor, destina-se a solidariedade, o respeito, o afeto, o reconhecimento e a gratidão de todo o povo de Deus.
Ao mesmo tempo o agradecimento sincero vai para as vítimas que, com seus testemunhos, derrubaram o muro do silêncio que, no âmbito eclesial, sufocou por tanto tempo escândalos e sofrimentos. Convencido que deva ser bastante estigmatizado o erro, tipicamente clerical, de pensar e afirmar que aqueles que tornam públicas as misérias que ocorrem dentro da Igreja sejam seus inimigos.
Muitos poderiam ser as reflexões que a carta de Francisco suscita. Eu quero ressaltar apenas três.
Em primeiro lugar, parece-me absolutamente evidente que, com Francisco, a Igreja não somente está saindo definitivamente do silêncio sobre os abusos sexuais de menores ou de adultos em situação de vulnerabilidade, mas também está demonstrando estar determinada a combater com rigor e prevenir, dentro dela, essa chaga, colocando-se em sincera e respeitosa escuta das vítimas. [9]
Especialmente Francisco tem contribuído para o fato de que, hoje, na Igreja não se fale hipocritamente e eufemisticamente de "condutas impróprias", mas francamente e sem reservas de "crimes" e de "atrocidades" penalmente julgáveis.
Na carta, Francisco expressa claramente uma conexão entre abuso sexual, abuso de poder e abuso de consciência. De fato, o abuso sexual é frequentemente precedido ou acompanhado por abusos de poder e consciência.
O entrelaçamento entre abuso sexual, de potência e de consciência ocorre especialmente em contextos eclesiais caracterizados pelo clericalismo, entendido tanto na sua forma ativa (quando o "clero" se julga o dono e clericaliza o laicato), como em sua forma passiva (quando o laicato imaturo, de joelhos, pede para evitar seu comprometimento com responsabilidade, para ser clericalizado).[10]
Isso pode acontecer quando um presbítero entende e vive o seu ministério não como um humilde serviço, mas como um poder sacralizado que facilmente pode desaguar em uma forma de idolatria.
Infelizmente, o clero não é a única categoria de sujeitos que abusam sexualmente de menores e adultos em situação de vulnerabilidade. O número de abusos cometidos dentro da própria casa, nos ambientes escolares e/ou esportivos, na rua, ou mesmo nas ONGs[11] é tragicamente elevado.[12]
A prevenção efetiva exige a mobilização ativa de todos os atores (instituições do Estado, sociedade civil, escolas, agências de formação, comunidade cristã). A prevenção da violência contra as crianças é responsabilidade de todos nós.
Em todo caso, nunca devemos baixar nossa guarda, mesmo onde instituições civis e eclesiais implementaram ações específicas. "Vai ser ótimo nos abrir mais e trabalhar em conjunto com diferentes componentes da sociedade civil para promover uma cultura anti-abusos em trezentos e sessenta graus."[13]
Provavelmente o celibato dos presbíteros não é em si a causa do fenômeno dos abusos sexuais, uma vez que estes são perpetrados, de forma igualmente grave, até mesmo por pessoas casadas.
Os casos de abusos percentualmente consistentes encontrados entre os padres levam a crer que o estado de vida celibatário imposto pode ser um fato eventualmente favorável.
É provável, de fato, que o celibato, se não for escolhido de modo verdadeiramente convicto e vivido com equilíbrio, alegria e serenidade, possa expor a esses riscos as pessoas marcadas por problemáticas sexuais não resolvidas.
Também por causa da persistente carência de padres, por que não deixar a escolha do celibato opcional e percorrer o caminho da concessão do presbiterado aos viri probati, homens de fé e virtude comprovada, capazes, respeitados e valorizados dentro de uma determinada comunidade, viúvos ou casado com filhos adultos, capazes de prover para sua própria manutenção?
A Igreja continua a ser uma estrutura dominada por homens, concebida e gerida por homens. Para a geração atual que acredita na igualdade de dignidade dos gêneros, isso resulta intolerável.
Na Igreja, é hora que as mulheres tenham mais relevância onde as decisões são tomadas. Porque um bispo não pode incluir no conselho episcopal também mulheres que sabidamente tem uma sensibilidade maior do que os homens em questões que afetam crianças e adolescentes?
À luz do que está acontecendo atualmente na Igreja, parece mais urgente do que nunca revogar § 2 do cânon 1340 do Código de Direito Canônico: "Nunca se imponha penitência pública por transgressão oculta". Não seria justamente graças a esse princípio absurdo que, se alguém comete um crime mantendo-o escondido, no máximo possa ser sancionado com uma punição secreta? Com o resultado de que um abusador sexual em série, mesmo punidos em segredo, poderia continuar tranquilamente, para não criar escândalo divulgando o crime, a ser o animador dos centros paroquiais.
Para derrotar o clericalismo, também ligado ao analfabetismo religioso de muitas pessoas batizadas, parece-me extremamente urgente que seja aceito com determinação o convite que Francisco encaminha em sua "Carta ao Povo de Deus peregrino no Chile”: que todos os centros de formação religiosa promovam "comunidades capazes de combater situações de abuso, comunidades em que a troca, a discussão e o confronto sejam bem-vindos", através da oferta de uma reflexão teológica "capaz de estar à altura do presente tempo" e de "promover uma fé madura e adulta que assuma o humus vital do povo de Deus com suas buscas e seus questionamentos”.
Na carta de 20 de Agosto, Francisco, logo após ter invocado a tolerância zero contra aqueles que cometem ou acobertam esses crimes, pede ao povo de Deus jejum e oração para sensibilizar olhos e coração diante do sofrimento dos outros, para vencer o desejo de domínio e posse, que muitas vezes estão na origem desses "crimes hediondos",[14] para abrir nossos ouvidos para a dor silenciosa das vítimas, para alimentar a fome e a sede de justiça, para nos sacudir da indiferença e empenhar-nos na verdade e na caridade - juntamente com todos pessoas de boa vontade e da sociedade em geral - para lutar contra qualquer tipo de abuso.
Por que não dedicar, em cada Igreja local e, eventualmente, em concomitância com o "Dia Mundial dos Direitos da Infância e da Adolescência" instituído pela ONU em 1954 e que é comemorado em 20 de novembro de cada ano, um dia de jejum e de oração comunitária contra o fenômeno dos crimes sexuais?
Notas:
[1] Em Settimana News.it n. 34/2018 (de 20 a 26 de agosto).
[2] O texto da conversa, aprovado por Francisco para publicação, pode ser encontrado em "La Civiltà Cattolica" n. 4024, de 17/fev- 3/mar 2018, pp. 322-330.
[3] Dezessete dias após a comunicação, por parte da Sala de Imprensa da Santa Sé, da demissão do colégio cardinalício, da suspensão a divinis e da obrigação de retiro do arcebispo emérito de Washington (EUA) Theodore McCarrick.
[4] Falando da situação eclesial italiana, Hans Zollner, psicoterapeuta e teólogo, presidente do Centro para a Proteção da Criança na Pontifícia Universidade Gregoriana e membro da Comissão do Vaticano para a Proteção dos menores, afirmou recentemente que "seria tolo pensar que na Itália não tenha acontecido o que ocorreu em outros países" e que, portanto, "seria útil olhar de frente a realidade". Se os bispos italianos não agirem logo, "mais cedo ou mais tarde sairão dados não verificados, uma avalanche de escândalos e polêmicas que eles terão que administrar" (Cf. Corriere della Sera, 23 de agosto, 2018).
[5] Em SettimanaNews.it n. 23/2018 (de 4 a 10 de junho).
[6] Em www.vatican.va, "Carta Pastoral de Bento XVI aos Católicos da Irlanda".
[7] Na Carta ao Povo de Deus peregrino no Chile Francisco exorta os cristãos a mostrar “a carteira de pessoas maiores de idade, espiritualmente adultas” e ter a coragem e o estilo sinodal para falar a seus pastores: “Eu gosto disso; esse caminho parece-me ser o que devemos percorrer; isso não é bom". Ele incentiva os pastores para aprender a ouvir, porque - como lembra a Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (n 44.) - "as perguntas do nosso povo, as suas angústias, batalhas, sonhos e preocupações possuem um valor hermenêutico"que não pode ser ignorado.
[8] Que é "a boa notícia da dignidade humana" (Francisco, É l’amore che apre gli occhi, Rizzoli, Milano 2013, p. 199).
[9] Um exemplo é Alessandra Campo, coordenadora do Centro de Proteção à Criança, que promove a prevenção dos abusos em menores: "Sobre os abusos sexuais de menores, a Igreja se movimentou quebrando um silêncio que tem ramificações mais amplas de seus horizontes"(La Repubblica, 3/9/18).
[10] Cf. discurso de Francisco em 22 de março de 2014 aos membros da associação "Corallo".
[11] Cf. o relatório Sexual exploitation and abuse in the aid sector do Parlamento Britânico de 31 de julho (em www.parlament.uk)
[12] "Na Europa, segundo a Organização Mundial de Saúde, 18 milhões de crianças são vítimas de abuso sexual, 44 milhões de violência física (22,9%) e 55 milhões são vítimas de violência psicológica (29,6%). As meninas são geralmente mais ameaçadas (13,4%) do que os meninos (5,7%)": cf. Hans Zollner La tutela dei minori e la prevenzione in: Luisa Bove (ed), Abusi nella Chiesa ? Meglio prevenire, Àncora Editrice, Milão 2017, pag. 16.
[13] É o conselho dado por Francisco como exemplo de coisas a fazer, aos bispos do Chile na reunião no Vaticano em 18 de maio de 2018 e presente em sua carta entregue a eles (em www.laciviltacattolica).
[14] Assim se expressou Francisco em seu discurso de sábado, 25 de agosto de 2018 às Autoridades, à Sociedade Civil e ao Corpo Diplomático, por ocasião da viagem apostólica a Dublin.
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Depois de ler a "Carta ao Povo de Deus" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU