18 Agosto 2018
“A China precisa de desenvolvimento, e isso é justo e correto. Mas esse desenvolvimento não pode e não deve criar confusão para ninguém.”
A opinião é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Renmin University of China, em artigo publicado em Settimana News, 16-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Apenas algumas semanas depois da guerra comercial do século entre os Estados Unidos e a China, já existe uma biblioteca inteira de comentários sobre o assunto. Mas por que os dois poderes estão se confrontando agora? Talvez em tudo isso haja um elemento diferente em relação ao passado: o tamanho econômico é importante.
Quando a China era uma pequena fração da economia global, apesar de ostentar uma enorme fatia da população mundial, o engajamento, por si só, era uma proposta “ganha-ganha”. Se a China mudar, isso é bom; se não mudar, o resto do mundo pode dizer, nós ainda temos muito a ganhar com isso: realocação de indústrias, expansão do alcance do dólar americano (ao qual o RMB está atrelado), etc.
Mas quando a China se torna 60% do tamanho da economia dos Estados Unidos (para parafrasear o que o People’s Daily escreveu; aqui e aqui), muitas dinâmicas mudam.
É sustentável que as empresas chinesas possam comprar o que quiserem nos Estados Unidos ou na União Europeia, incluindo empresas e tecnologias, mas europeus e estadunidenses não possam fazer o mesmo na China? É sustentável que as tarifas e o financiamento estatal sejam muito diferentes em lugares diferentes e, assim, deem margem de manobra a empresas de um país e dificultem a vida para outros? Como se pode ter um comércio justo quando as decisões políticas são transparentes em um país e opacas em outro? O comércio global torna-se de fato muito distorcido, não?
Não se trata de ideologia, de sistemas políticos, de valores ou de milhares de anos de civilização. Trata-se do futuro concreto das trocas entre países. Trata-se da economia global, do desenvolvimento global e do bem-estar de todos.
Isso pode trazer civilização, ideologia e toda a sua parafernália, mas é muito pé-no-chão e imediato: como se pode ter um comércio justo quando os sistemas são tão distantes? A China pode querer dançar em torno da questão, mas é impossível evitar agora que a China seja a segunda maior economia e a maior potência comercial.
Para ser muito prático: se a China decidir beber café e não chá, o preço do café para todos no mundo vai mudar, devido ao impacto do consumo chinês em todo o mundo. De fato, todos no mundo pagarão o preço pelo fato de os chineses tomarem café. Isso acontece com todas as grandes economias, e está bem assim.
No entanto, o processo de decisão sobre o café na China, diferentemente dos Estados Unidos, do Japão ou da Alemanha, é totalmente obscuro, sigiloso. Portanto, ninguém fora da China e fora de um pequeno círculo de tomadores de decisão chineses pode argumentar contra o fato de os chineses tomarem café. Além disso, alguns conhecedores do café e da China terão uma imensa vantagem competitiva em relação ao restante do mundo.
Nos Estados Unidos ou no Reino Unido, por exemplo, isso não acontece. O processo para decidir sobre uma nova lei sobre o café compulsório passa por debates abertos, pela votação no Parlamento. Ao longo de todo o processo, as pessoas podem expressar a sua preocupação e, embora não sejam estadunidenses ou britânicos, os italianos podem pressionar com artigos e reuniões em uma direção ou outra. Tudo isso também torna mais difícil para as pessoas terem uma vantagem competitiva desleal sobre a decisão de tomar café, porque as notícias sobre o café estão abertas a todos.
Talvez, muitos dos problemas atuais da economia da China agora (má alocação de recursos, desperdício de crédito, corrupção etc.) provenham justamente de ter esse sistema críptico. Portanto, ao adotar uma sociedade mais aberta, a China se beneficiaria.
Certamente, o atual sistema chinês é potencialmente prejudicial para todos. Os chineses, é claro, sabem disso. Mas também, naturalmente, essa sociedade mais aberta traria outros problemas para a China e para a sua política, e por isso a China está encurralada agora.
Se todos os países tivessem uma economia política sigilosa, tudo bem. Se a opaca China está lidando com outros países que são mais liberais, isso cria um desequilíbrio político-econômico objetivo. Você joga com as suas cartas escancaradas sobre a mesa, eu jogo com as minhas cartas perto do colete: como pode ser um jogo justo?
O fato de esse elemento rude sobre a transparência do mercado se ofuscar na China com todos os outros tipos de argumentos (medo da China em ascensão, concorrência militar, inimizade ideológica etc.) talvez também ajude a confundir o elemento central. Outros elementos podem ser verdadeiros ou não, mas talvez valha a pena isolar a questão central.
Então, existem necessidades para a China. A China precisa de desenvolvimento, e isso é justo e correto. Mas esse desenvolvimento não pode e não deve criar confusão para ninguém.
E há a questão – provada pelo fato de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ter virado as costas para muitos acordos estadunidenses – de que a ordem que os Estados Unidos impuseram após a Segunda Guerra Mundial e especialmente após o fim da Guerra Fria não funciona mais.
Talvez muitas das incertezas e confusões atuais venham desses dois elementos: a China não sabe como se desenvolver a partir do padrão falho dos últimos 40 anos, e os Estados Unidos se dão conta de que as velhas formas de liderar o mundo não funcionam, mas eles realmente não sabem como deveriam reformá-las.
O presidente Trump sugere, aparentemente, que se busquem acordos bilaterais. No entanto, talvez essa não seja uma melhoria: eles poderiam criar uma bagunça ainda maior, frustando o comércio global com centenas, senão milhares de acordos específicos que tornam a vida impossível para todos, exceto para os advogados comerciais.
Então, sem novas ideias ousadas, todos nós estamos diante de um desastre.
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Os mistérios chineses na guerra comercial com os Estados Unidos. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU