10 Agosto 2018
A partir da entrevista com Martin Jacques publicada em New Internationalist, desenvolveu-se um interessante debate entre Gaia Perini e Gabriele Battaglia, ambos especialistas em China.
Propomos a leitura da sua troca de opiniões, publicada em Effimera, 23-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Gaia Perini – Não concordo com quase nada que Martin Jacques defende na entrevista publicada pela New Internationalist, nem mesmo com o título (China, uma ordem pós-liberal?). A esmagadora maioria da população chinesa está aterrorizada com a possibilidade de adoecer, porque uma internação hospitalar de mais de uma semana os derrubaria no chão. E quem fala com eles, particularmente com a população adulta, sabe que a educação dos filhos é uma verdadeira obsessão, já que um ciclo normal de estudos pode custar tanto quanto um apartamento (se não mais) e, no meio disso, está também o problema do hukou (ou seja, o sistema de registro da residência criado nos anos 1950, que vincula os cidadãos chineses ao seu local de nascimento).
Isso na cidade. No campo, em muitas áreas, as escolas precisamente não existem, e o nível de ensino é decadente. Sobre as condições de vida dos trabalhadores, passo por cima, porque o discurso é conhecido e muito amplo. No entanto, em suma, do ponto de vista welfare, a China de hoje não tem mais qualquer relação com a palavra “socialismo” e, no mínimo, tornou-se a assustadora irmã gêmea dos Estados Unidos.
Depois, passando para a geopolítica, que é o âmbito que parece interessar mais o autor aqui proposto: por que será que não nos contam como a China entrou na OMC no início do milênio e em que condições levou adiante a sua Kaifang (a política de Abertura, parte da manobra de Reforma e Abertura [Gaige Kaifang], iniciada em 1978 e ainda em andamento. A expressão Gaige Kaifang também designa a era pós-maoísta). A partir daí, na minha opinião, já se capta que a estratégia chinesa e o seu papel na configuração global não têm absolutamente nada a ver com o Sul global e com o seu destino.
Absolutamente não me convence a abordagem geral segundo a qual a China constituiria uma alternativa a priori, pelo simples fato de não ser os Estados Unidos. Como se o Estados Unidos fosse “o” capitalismo. Como se bastasse a posição geográfica de um país para definir a sua estrutura econômica. Assim, não vejo nenhuma diferença estrutural entre o Fundo Monetário ou o Banco Mundial e o Banco Asiático ou o Banco de Desenvolvimento: os primeiros são arrastados pelos Estados Unidos, enquanto os segundos são capitaneados pelo gigante asiático, mas o que nos leva a crer que funcionam de forma diferente? O fato de as relações de força internas serem de outra natureza?
Quanto à África, ao contrário dos críticos liberais, não acho que seja lícito usar o termo “colonialismo”. Por outro lado, pode-se e deve-se falar de “desenvolvimentismo”, e é o mesmo desenvolvimentismo que foi imposto dentro do país, nas terras fronteiriças do Tibete e do Xinjiang e a Oeste em geral.
Na prática, o que Martin Jacques nos narra é a sucess story do capitalismo chinês: que é verdade que não foi afetado pela crise financeira, mas nem por isso é mais virtuoso. Ele só se encontra em outro estágio da sua expansão. Acima de tudo, trata-se sempre de capitalismo.
Digo isso sem intenções polêmicas, mas sinto cada vez mais a urgência de elaborar uma leitura da China “terceira”, igualmente distante tanto das críticas da imprensa anglo-saxônica liberal, que condena o Partido Comunista da China por ser “comunista” (e, portanto, segundo eles intrinsecamente despótico e antidemocrático), quanto dos tankies, vermelho-e-pretos e terceiro-mundistas sui generis, que elogiam o modelo chinês, desfraldando abertamente o seu ódio contra o Ocidente, enquanto, secretamente, amam o Papai-partido.
Pois bem, o fetiche pela bandeira vermelha nem sempre é garantia de um credo comunista verdadeiro e sentido – acho que vocês sabem disso melhor do que eu. A minha bússola pessoal, quando leio sobre a China, é a presença ou ausência do sujeito “povo chinês” na narrativa, é a análise social. Mesmo na macroanálise geopolítica, se deveria perceber se por “China” entendemos o governo ou o país real.
Sei que é uma tarefa enorme, e, acima de tudo, fatigante, mas, a meu ver, essa leitura terceira, longe de todas as narrativas mainstream, é o sentido último do trabalho jornalístico na Itália.
Gabriele Battaglia – De minha parte, acho que a entrevista é interessante, e a análise é bastante apropriada. Achatar a China sob o neoliberalismo é incorreto, assim como retratar o mundo como “tudo a mesma coisa”. Além disso, Martin Jacques não diz que essa ordem pós-neoliberal é forçosamente algo bom. Ele simplesmente diz que é “diferente”. Para sintetizar ao máximo, quase banalizando, na minha opinião, para o poder chinês, o mercado continua sendo um instrumento, e não uma religião. Prova disso é a guerra tarifária e também a incapacidade de encontrar um terreno comum com a Europa mesmo diante do inimigo comum Trump. Depois, talvez não nos entendamos sobre o termo “neoliberalismo”.
Gaia Perini – Porém, parece-me que o artigo se desequilibra bastante quando define como “fundamentalmente positivo” a ação do governo chinês na África ou quando elogia a “One Belt One Road”. Acho que as coisas mudaram muito ao longo dos últimos três ou quatro anos, e hoje quem defende a China com a espada desembainhada, ou as “peculiaridades chinesas”, em 99% dos casos está tentando subir no carro dos vencedores. [...] Não entendo porque aqui, ao contrário, é preciso deixar passar certas afirmações. Talvez me faltem passagens.
Gabriele Battaglia – Não é uma questão de tomar partido, quem se importa com isso. Acho que o elemento fundamental da entrevista com o Jacques é a observação de que o ingresso da China redefiniu as regras do jogo, e que a China não é mais uma variação do neoliberalismo (à la Harvey) pelo simples fato de que, se o neoliberalismo força a entrada do livre mercado (com regras-padrão em todos os lugares), em todos os territórios, com base na ideologia para a qual o mercado é o melhor alocador de recursos, a China não funciona assim. Prova disso é que todo bom neoliberal que se preze (eu também entrevistei alguns) range os dentes quando pensa que os tratados com liderança chinesa, como o RCEP, não definem, de fato, padrões globais e iguais para todos como o TPP, mas deixam um amplo espaço para a discricionariedade: o livre mercado é bom enquanto serve, caso contrário, abre-se mão dele.
Portanto, alguns processos são semelhantes (veja-se a gentrificação como processo de acumulação através da especulação imobiliária), mas outros permanecem distintos. Os europeus estão enlouquecendo hoje em dia porque Pequim nunca aceitará permitir que o capital financeiro penetre sem um controle político capaz de tornar reversível qualquer decisão do dia para a noite. E os subsídios para as empresas estratégicas? Então, ou tudo é neoliberalismo (mas então é a noite em que todos os gatos são pardos) ou captamos essas distinções. Por que a China é diferente? Eu levanto a hipótese de que isso depende do fato de que o fim último ainda é a manutenção da China, não a sua total abertura ao mercado, não a valorização capitalista em si e por si mesma. Do ponto de vista da subversão da ordem constituída é melhor? Não sei. É diferente.
Gaia Perini – Eu acho, ao contrário, que tomar partido é importante, e como!, caso contrário, sim, vem a noite em que todos os gatos são pardos (ou em que, para citar o velho Deng, “não importa se o gato seja branco ou preto, o importante é que pegue os ratos”). A China certamente é uma bela mistura de neoliberalismo e capitalismo de Estado. A criação de padrões e políticas específicas, dependendo da área com que lida, também poderá distingui-la dos Estados Unidos, mas isso não faz dela um sistema melhor ou estruturalmente diferente.
Podem mudar as táticas, mas o jogo continua o mesmo: o lucro como primeiro e último horizonte, o crescimento do PIB paralelo ao das desigualdades, coeficiente de Gini nas alturas, crise ambiental, uma sede monstruosa de recursos energéticos que força o país a se expandir para bem além das fronteiras de Tianxia (algo que na milenar era de Tianxia nunca tinha acontecido), sem falar dos fatores internos e mais evidentes, ou seja, a gradual, mas total, erosão do welfare, a exploração sistemática da população camponesa, o que envolveu o êxodo de 300 milhões de pessoas, a ausência de qualquer traço de direito sobre o trabalho, apesar da laodongfa [1] e a supremacia do TINA no campo ideológico: There Is No Alternative to the Chinese dream [Não há alternativa ao sonho chinês]. Pois bem, eu acho que aqueles como nós não deveriam ter medo de repetir a máxima provocativa de Alexander Russo: “Não posso me definir como ‘comunista’ enquanto existir o Partido Comunista da China, porque o comunismo deles exclui o meu”.
Quanto ao ditado “laowai bu dong”, “os estrangeiros não entendem porque a China é especial, eles não conhecem os nossos 5.000 anos de história e blá-blá-blá”, pois bem, deixemos que os chineses de má-fé repassem essa bobagem nacionalista-culturalista aos turistas, que não falam uma palavra de zhongwen e estão lá à caça de exotismos. Você e eu, que vivemos uma vida inteira na China, sabemos bem que, no fim, é um país como qualquer outro no planeta Terra, não está em Marte. Eu, obviamente, voto em Harvey, você, em Arrighi. Vamos ver quem tem razão no longo prazo. Enquanto isso, obrigado pela troca.
1. A lei sobre o trabalho, cuja última versão foi redigida e entrou em vigor em 2008. A lei em si é virtuosa e, se aplicada, protegeria os direitos dos trabalhadores, mas, por causa das suas mangas largas, quase sempre é ignorada.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
China: outro modelo neoliberal ou outra forma de mercado? Um debate entre Gaia Perini e Gabriele Battaglia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU