18 Junho 2018
Jenny sentia tanto frio que não conseguia dormir nem se livrar de uma persistente dor de cabeça.
Horas antes, ela havia molhado sua roupa e os sapatos cruzando, ao lado do filho e de um coiote (atravessador), o rio que separa o México dos EUA, na reta final de uma jornada migratória que havia começado em El Salvador.
Mas, minutos após atravessarem o rio, eles foram pegos pela patrulha migratória e viveram a experiência mais traumática da jornada. "Nos colocaram nas geladeiras", conta Jenny, que pediu para não revelarmos seu nome real.
A reportagem é de Patricia Sulbarán, publicada por BBC Brasil, 17-06-2018.
A mulher de 36 anos e seu filho foram levados a uma cela que ela descreve como "gelada, muito gelada", sob a custódia da patrulha de proteção da fronteira dos EUA (CBP, na sigla em inglês).
São centros de detenção de curto prazo próximos à fronteira, onde os detentos não podem permanecer mais de 72 horas, segundo diretrizes do governo americano.
Por anos, no entanto, organizações de direitos humanos têm denunciado que os detentos passam dias ou meses ali, sofrendo com temperaturas extremamente frias, sem camas nem serviços sanitários adequados.
O governo americano, por sua vez, afirma que a estadia dos detentos não supera as 72 horas e que as temperaturas são mantidas em "nível razoável e cômodo tanto para detidos como para funcionários", segundo um manual de práticas enviado pela CBP à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
O apelido "geladeira" é usado frequentemente por migrantes latino-americanos que passaram por ali.
Mas é difícil saber exatamente como são as condições das celas, uma vez que o acesso ao local é restrito a funcionários.
Jenny conta que, logo ao chegar ali, "me tiraram tudo": seus documentos pessoais de El Salvador, um brinquedo de seu filho, dinheiro e peças de ouro que portava para o caso de precisar vender para ter mais recursos para a viagem.
Ela e o filho passaram quase quatro dias no mesmo ambiente com outras dez mulheres e seus filhos, conta.
"Nos deram algo que parecia papel alumínio como lençóis", diz ela. "Havia colchonetes no piso, fininhos, como um plástico."
Há quem diga que a sensação de frio vem do contraste com as altas temperaturas do deserto lá fora, ou para atender as demandas dos funcionários dos centros, que precisam usar uniformes e coletes, a despeito do calor.
Mas há relatos, negados pela CBP, de que seria uma forma de punir os imigrantes.
Segundo Jenny, havia também sempre uma luz branca acesa na cela.
A descrição coincide com uma feita em 2016 pelo Conselho Americano de Imigração (AIC em inglês): "Em geral, são salas pequenas, com bancos de cimento e sem camas".
Os que chegam ali são os que foram detidos primeiro pela patrulha de fronteira ou ao longo da divisa, sob suspeita de atividade ilícita, entrada ilegal nos EUA ou presença no país sem status migratório adequado.
A ideia é que os detentos permaneçam no centro pelo menor tempo possível, segundo o próprio CBP, enquanto seus casos correm na Justiça e é tomada uma decisão sobre seus destinos.
Os questionamentos sobre as condições das celas cresceram a partir de 2014, por conta dos grandes fluxos de migrantes menores de idade sem documentos que chegaram aos EUA, explica Astrid Domínguez, diretora do Centro de Direitos na Fronteira da União Americana de Liberdade Civis (ACLU, em inglês).
"Naquele ano, as denúncias não foram isoladas. Começamos a ver que havia muita gente detida sob condições abusivas, que incluem a temperatura fria extrema", diz.
Domínguez visitou diversas dessas instalações em nome da ACLU entre 2014 e 2016.
Ela diz ter visto pessoas dormindo no piso, cobrindo-se com mantas térmicas, e agentes agasalhados por conta das baixas temperaturas.
Foi em 2016, no entanto, que imagens captadas por câmeras de segurança de um desses centros deram pistas mais claras sobre o ocorrido ali dentro.
O CBP tornou as imagens públicas depois que um grupo de migrantes processou o órgão pelas condições desses locais.
As fotos mostram mulheres, homens e crianças em celas para migrantes na cidade de Douglas, Arizona, em setembro de 2015.
O processo, movido com a assessoria da ACLU e da AIC, diz que os migrantes foram detidos em "celas sujas, geladas e sobrepovoadas, ao longo de dias".
Denunciou, ainda, que eles não tiveram atenção médica apropriada nem acesso a itens básicos de higiene, como sabonete, fralda e papel higiênico suficiente.
O caso ainda tramita na Justiça, mas uma ordem judicial preliminar, de dezembro de 2017, estabeleceu que os detidos nas celas do Arizona devem ter acesso a colchonetes e artigos de higiene pessoal.
O próprio governo, por intermédio do Escritório de Responsabilidade Governamental dos EUA, constatou casos de detenções superiores a 72 horas.
Um relatório de 2016 recomendou à CBP que monitorasse "os dados sobre a quantidade de tempo que as pessoas ficam sob sua custódia".
O manual de práticas de detenção do CBP é de 2015, quando Barack Obama ainda era presidente.
Mas há quem se pergunte se o endurecimento das políticas migratórias sob Donald Trump mudou algo na operação desses centros.
Até o momento não houve anúncios oficiais a respeito do funcionamento desses centros, mas a morte, em maio, de uma migrante centro-americana voltou a lançar luz sobre as "geladeiras".
Ativistas denunciaram que Roxana Hernández, que tinha HIV, ficou doente após passar cinco dias em um centro de detenção de curto prazo em San Diego, na Califórnia.
"Ela passou frio, não teve alimentação adequada ou atenção médica necessária, com as luzes acesas as 24 horas do dia, presa", dizem grupos de direitos humanos.
As autoridades, por sua vez, afirmaram que Hernández recebeu atendimento médico quando precisou dele.
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As polêmicas 'geladeiras' onde imigrantes ficam presos na fronteira dos EUA com o México - Instituto Humanitas Unisinos - IHU