23 Mai 2018
"O fundamental é que a civilização prevaleça sobre a barbárie e o Brasil deixe a condição vergonhosa de ser a única exceção entre os países da América Latina — que, olhando de frente para o seu passado, julgaram os agentes da repressão, promovendo a justiça e a democracia", afirmam José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso, Ee-integrantes da Comissão Nacional da Verdade, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 19-05-2018.
"Tive os meus filhos sequestrados e levados para sala de tortura, na Operação Bandeirante. [Ela] com cinco anos e [Ele] com quatro anos de idade. [...] Inclusive, eu sofri uma violência, ou várias violências sexuais. Toda nossa tortura era feita [com] as mulheres nuas. [...] E os meus filhos me viram dessa forma." (Depoimento de vítima da repressão prestado em 2013 à CNV e à CV-ALESP) Situações de horror como esta se multiplicam ao longo do relatório da CNV (Comissão Nacional da Verdade), concluído em 2014 e que registra a prática de execuções, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e tortura durante a ditadura militar que se prolongou no Brasil de 1964 a 1985. Ao apurar essas graves violações de direitos humanos, a CNV concluiu que "elas foram o resultado de uma ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro". "Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores se converteram em política de Estado, concebida e implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares." (pág. 963 do vol. 1 do relatório, acessível aqui).
O revelador documento do governo americano recentemente localizado e divulgado pelo professor da FGV e colunista da Folha Matias Spektor é mais uma evidência dessa conclusão. Nele, há a confirmação, já em 1974, da aprovação, pelo presidente Ernesto Geisel, da continuidade da política de execução de opositores da ditadura. Diante da abundância de provas, a CNV indicou, entre as recomendações do relatório, a "determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica — criminal, civil e administrativa — dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais".
A CNV "considerou que a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional, pois tais ilícitos, dadas a escala e a sistematicidade com que foram cometidos, constituem crimes contra a humanidade, imprescritíveis e não passíveis de anistia" (pág. 965 do vol. 1 do relatório). A medida de julgamento dos agentes públicos envolvidos na repressão já havia sido determinada ao Estado brasileiro por meio de decisão de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Ministério Público Federal, evoluindo de sua posição anterior, passou a promover ações objetivando a condenação dos responsáveis.
A recomendação da CNV permanece, portanto, integralmente válida e, no relatório, estão nominadas 377 pessoas comprometidas com os crimes apurados, cerca de metade delas provavelmente ainda vivas. Impõe-se, assim, a promoção do afastamento dos eventuais impedimentos da Lei nº 6.683/1979 (Lei de Anistia), aprovada ainda durante a ditadura, para que a atuação do Judiciário possa ter curso. Isso poderá se dar por via de decisão do Supremo Tribunal Federal, havendo ações aguardando julgamento, ou de deliberação do Congresso Nacional, sendo diversos os projetos nesse sentido.
O fundamental é que a civilização prevaleça sobre a barbárie e o Brasil deixe a condição vergonhosa de ser a única exceção entre os países da América Latina — que, olhando de frente para o seu passado, julgaram os agentes da repressão, promovendo a justiça e a democracia.
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Civilização ou barbárie. A lei da anistia deve ser revista após as novas revelações sobre a ditadura militar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU