05 Mai 2018
“Esta repressão rapidamente aumentou o protesto nas principais cidades, mas também em pequenos povoados, incorporando setores populares: aposentados, desempregados, trabalhadores autônomos, operários e, principalmente, jovens humildes das cidades. As marchas nos povoados mais distantes, onde a Polícia não conseguiu chegar, foram tranquilas”, analisa Mónica Baldotano, ex-comandante sandinista e ministra no governo revolucionário, em uma detalhada análise das causas da agitada situação política na Nicarágua.
O artigo é publicado por Nueva Sociedad e reproduzido por CPAL Social, 03-05-2018. A tradução é do Cepat.
Desde 18 de abril, a Nicarágua está em convulsão pela repressão desatada pelo governo de Daniel Ortega e Rosario Murillo contra jovens universitários e a população civil. Ao escrever estas linhas, contabilizamos mais de 40 mortos e dezenas de feridos. A eles se somam centenas de detidos e uns 15 desaparecidos.
A repressão se deu com o objetivo de conter as manifestações de protestos contra um decreto executivo que aumentava as contribuições operário-patronais ao Instituto de Seguridade Social (INSS), enquanto reduzia em 5% os ingressos dos aposentados. Não obstante, a reforma foi apenas o fósforo que acendeu a campina que vinha se ressecando há vários anos, o que explica o alto nível de mobilização alcançado.
É importante recordar que Daniel Ortega foi reeleito segundo as leis vigentes em 2011, depois reformou a Constituição e, em 2017, iniciou um terceiro mandato acompanhado por sua esposa Rosario Murillo como vice-presidente. Por sua forma e seu conteúdo, o governo foi acumulando indisposições e rejeições. Entre as características do orteguismo cabe destacar:
O orteguismo se revelou como uma verdadeira ditadura institucional que se mantém com fraudes descaradas: desde 2008, controla com mão de ferro todos os poderes do Estado - Executivo, Judiciário, Eleitoral, Controladoria e Parlamento -. Toda tentativa de construir forças de oposição, em particular as que recuperam a tradição sandinista, foi esmagada.
Não há liberdade de mobilização e de expressão. A repressão é praticada com grupos de choque, ou diretamente pela polícia. Quase todos os meios de comunicação foram comprados pela família governante.
A corrupção campeia sem punição. O caso mais emblemático é o do presidente do Conselho Supremo Eleitoral (conhecido como Conselho da Fraude), Roberto Rivas, um magnata com jatos particulares, mansões e casas na praia, além de propriedades na Espanha e Costa Rica, a quem os Estados Unidos aplicou a Lei Global Magnitsky. Diante disso, ao invés de o afastar do cargo, Ortega o mantém com privilégios e imunidade, em uma decisão rejeitada por muitos orteguistas.
Assédio às organizações. Mulheres, ambientalistas e ativistas de direitos humanos fazem parte dos presos políticos, que sofrem causas falsas com acusações de crimes comuns, como ocorre com Marvin Vargas, coordenador dos Cachorros de Sandino, que já está há 8 anos preso.
Supressão de fato das autonomias. Universidades, municípios, regiões autônomas sofrem o mesmo processo. Os estudantes se cansaram de não contar com liberdade de organização, pois os reitores e muitos professores atuam como comissários políticos do governo.
Secretismo e ensimesmamento do Estado. Ortega e Murillo só falam com seus aliados (o grande capital). Não agem assim nem com sua própria força, que se vê submetida pela humilhante condição da dependência econômica e o medo. Nem os sandinistas têm direito à palavra. Só a família presidencial pode falar e dar declarações.
Entrega do país a interesses estrangeiros. O caso mais brutal é o da Lei 840 (Lei para a concessão de canal) para construir o canal interoceânico com capitais chineses, hoje em xeque, mas também foram ampliadas as concessões mineiras, florestais e pesqueiras sem qualquer consulta aos afetados.
Concentração da riqueza e políticas sociais clientelistas e assistencialistas. Acima dos índices de crescimento macroeconômico, cresceram as fortunas dos banqueiros, com as taxas de juros mais altas da região. A Nicarágua continua sendo o país mais pobre da região, depois do Haiti, apesar de todo o auxílio venezuelana recebido nestes anos.
O mal-estar da população se manifestou em aumentos na abstenção eleitoral. Contudo, as origens da rebelião podem estar na resistência ao canal, há quatro anos. Para enfrentar a ameaça de despejo, foi articulado o mais forte movimento camponês dos últimos 20 anos. As quase cem marchas foram reprimidas com um desproporcional uso de forças antimotins para impedir que as marchas tivessem um alcance nacional. O massacre da Cruz de Rio Grande aumentou a indignação e a participação em todo dia 10 de dezembro, dia dos direitos humanos. Assim como acontece no dia internacional da mulher para rejeitar o aumento dos femicídios e a impunidade dos assassinos. Assim, a “digna raiva” vinha aumentando.
Nos primeiros dias de abril de 2018, um grande incêndio na Reserva Biológica Indio Maíz mobilizou, pela primeira vez, estudantes da Universidade Centro-Americana, motivados pela displicência governamental. Já havia sido denunciada a conivência do governo com os colonos, que invadem as reservas ou as terras indígenas como as do Rio Coco, aterrorizando as populações para tomar posse de suas terras. Há crimes denunciados e documentados na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O governo formou contramarchas (com grupos de choque), militarizou a zona de incêndio e impediu que jornalistas independentes e a ONG do Grupo Cocibolca (Fundación del Río y Popol Na) fossem à região.
Dias depois, em um erro de cálculo, o governo impôs a reforma do sistema de seguridade social, mas já era público que os fundos do INSS estavam sendo usados em investimentos de risco e que a instituição inflou a folha de pagamento e os privilégios de alguns funcionários, o que já tinha gerado críticas e mal-estar.
Primeiro, foram os estudantes que, com a presença de alguns aposentados, se mobilizaram pacificamente e enfrentaram uma brutal repressão, claramente dirigida contra jornalistas e algumas lideranças já mais visíveis, como as do movimento feminista. Grupos de choque armados com tubos, correntes e chuços elétricos golpearam os manifestantes, ao mesmo tempo em que lhes retiraram câmeras e telefones celulares. Tudo foi filmado e divulgado nas redes sociais, pois conjuntamente o governo fechou três canais de TV privados (100% noticias, canal 23, e canal 12) e emissoras locais foram tiradas do ar. Estes fechamentos provocaram reação em novos setores, incluindo os da cúpula empresarial organizada no Conselho Superior da Empresa Privada (COSEP), que desta vez não conseguiram consenso com o governo pela reforma do INSS, como ocorria habitualmente em outros temas.
Esta repressão rapidamente aumentou o protesto nas principais cidades, mas também em pequenos povoados, incorporando setores populares: aposentados, desempregados, trabalhadores autônomos, operários e, principalmente, jovens humildes das cidades. As marchas nos povoados mais distantes, onde a Polícia não conseguiu chegar, foram tranquilas. No pequeno povoado de Niquinohomo, berço de Augusto César Sandino, cerca de mil manifestantes retiraram o lenço vermelho e preto, da gorvernista Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), do monumento do herói e colocaram um lenço azul e branco. Contudo, em Manágua e nas principais cidades, a polícia lançou bombas lacrimogêneas, balas de borracha e de chumbo e utilizou abertamente escopetas em evidente ação conjunta com civis organizados em grupos de choque.
Pela primeira vez, desde 2007, somaram-se estudantes das universidades controladas ferreamente pelo governo por meio de suas organizações como a União Nacional de Estudantes da Nicarágua (UNEN). O movimento nas universidades Agrária e de Engenharia, após alguns dias, foi desarticulado. A polícia penetrou em seus locais, baleou os jovens enquanto fugiam e capturou dezenas deles, repetindo este procedimento nos bairros que se solidarizavam com os protestos. Todos os capturados estiveram desaparecidos e mais de 15 deles foram entregues mortos. Outros detidos foram deixados 4 dias depois, torturados, seminus, descalços e rapados, nas estradas, violando as normas primárias de respeito a seus direitos humanos. Na Universidade Politécnica (UPOLI), inserida entre os bairros populares, a polícia não pôde desalojar os estudantes: a população levantou barricadas para proteger centenas de jovens que se refugiaram nas salas e que mantiveram este lugar como um bastião de luta até hoje.
Nos lugares mais reprimidos, o povo passou rapidamente à construção de barricadas, enquanto expressava sua raiva derrubando os inapropriados chamados “árvores da vida” (imensas estruturas metálicas que replicam formas do quadro de Gustav Klimt), que Rosario Murillo fez proliferar como símbolo de poder e expressão de misturadas concepções esotéricas. Ao mesmo tempo, está comprovado por abundantes testemunhas que o governo provocou incêndios em escritórios governamentais e o saque em lojas e supermercados (há abundantes testemunhas).
É de muita importância que as forças de esquerda, de centro-esquerda e gente progressista de todas as partes entendam que Ortega não é Hugo Chávez e nem a Nicarágua é a Venezuela, e não se deve fazer uma transferência mecânica do movimento venezuelano contra Maduro ao que acontece hoje na Nicarágua. O regime de Ortega já começou a dizer que é um “golpe brando”, que por trás está a embaixada dos Estados Unidos, a CIA e a direita mundial. Mas, na Nicarágua, a direita econômica e política governa junto com Ortega. É o modelo de “alianças público-privadas” que é aplaudido pela direita mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM) e grandes corporações e investidores. Atualmente, 96% do PIB da Nicarágua provém do setor privado. Ou seja, este governo acabou de aniquilar o que restava de propriedade social, na forma estatal e de cooperativas, e deixou o país sem riqueza pública.
Que a esquerda mundial não se engane que este governo é de esquerda. Já não resta nada disso. Por exemplo, as outrora entranháveis relações de duas revoluções (Cuba e Nicarágua) são hoje para o governo de Ortega e Murillo relações formais entre estados amigos, limitadas à celebração de efemérides, saudações de aniversário e de baixo perfil protocolar.
Aqui, a direita e governo são a mesma coisa. Ortega e os banqueiros formam a aliança que governa a Nicarágua por mais de uma década. Aqui, não há meios de comunicação “imperialistas”, nem grandes redes como RCTV, O Globo, porque, como dissemos, quase todas são de Ortega e seus sócios. Aqui, a maior parte de fundos estadunidenses é especialmente os que o governo recebe, por sua cumplicidade com a Agenda de Segurança de Donald Trump, atropelando e reprimindo os imigrantes. Aqui, os dólares estão do lado do governo e de seus aliados. Aqueles que protestam estão se movendo com seus próprios recursos, como ocorreu com o movimento camponês, que durante quatro anos custeou suas marchas.
Aqui, também não há grandes partidos de direita liderando as mobilizações. Porque o orteguismo primeiro pactuou com os partidos de direita tradicionais, que depois se viram reduzidos porque assumiram a representação aberta dos interesses dos setores endinheirados. Para que partidos de direita, se a direita está no poder, se banqueiros e empresários são os que legislam e cogoverna no país? Aqui, os empresários foram e são os principais sócios do governo de Ortega. A eles, os milionários, não causa preocupação que o governo se autoproclame de esquerda, socialista e sandinista, sempre e quando garanta estabilidade para seus interesses.
Após uma semana de marchas e manifestações, já não se trata da reforma do INSS. De fato, Ortega revogou o decreto para deter as mobilizações. Mas, com tantos mortos e feridos, muitos nicaraguenses não se conformam em ter parado a reforma. Querem que pare a repressão, sejam destituídas as principais cabeças da polícia, reestabeleça-se o princípio constitucional de livre mobilização e o direito ao protesto, reabram-se os meios de comunicação que foram fechados, que os militares voltem para os seus quartéis, e se faça justiça aos mortos e mutilados. É claro, há aqueles que pensam que sendo o mandato de Ortega produto de uma fraude, é necessário o desconhecer e que o problema irá continuar enquanto não forem convocadas eleições limpas. De fato, nas manifestações, esse foi o grito mais ensurdecedor: que se vayan!.
No domingo, dia 22, um Ortega rodeado pelos donos das empresas da Zona Franca compareceu para anunciar a abertura de um diálogo. E convocou como interlocutora a Conferência Episcopal e os empresários, tratando por todos os meios de ignorar os verdadeiros atores deste formidável movimento cidadão. Contudo, até hoje não conseguiram. A Conferência e o COSEP adiantaram que devem ser incorporados no diálogo setores que lutaram, em particular camponeses e estudantes. Como sabemos, o povo da Nicarágua esteve muito desmobilizado frente as arbitrariedades do governo. Mas, nestas jornadas de abril, o povo, em particular a juventude, passou em um só movimento de uma exigência social a demandas em favor da democracia e as liberdades cidadãs e políticas, em virtude do mal-estar acumulado e a repressão. A repressão provocou tal indignação que se perdeu o medo e rapidamente se redescobriu o poder dos setores populares mobilizados.
No entanto, um movimento desta natureza tem a fragilidade de não contar, imediatamente, com lideranças visíveis. O que vimos foi o povo sublevado e milhares de rostos e figuras. Nestes protestos, não há dirigentes de partidos, nem caudilhos. Só estudantes e povo mobilizado que elaboram suas próprias exigências.
Um exemplo: o COSEP, que aparece em um distanciamento do governo, colocou como condição para continuar dialogando que se permita organizar uma marcha sem repressão. A beligerância dos jovens “autoconvocados” tornou a marcha do dia 23 de abril uma verdadeira mobilização popular. Modificaram a rota para que a marcha se dirigisse à UPOLI, centro que se tornou o símbolo da resistência. Assim, os manifestantes percorreram uma distância de 7 km que formou um imenso rio que se calculou em 100.000 pessoas. Milhares de pessoas caminhando cada um em seu ritmo e por seus próprios meios. E simultaneamente foram realizadas marchas multitudinárias em outras cidades, municípios e comunidades.
Há perspectiva de continuidade? Ao que parece, os protestos continuarão. Em termos públicos, fala-se de diálogo. Somente se falam das condições para o realizar. Mas, em termos do movimento popular, será urgente organizar, como dizia Rubén Darío “os vigores dispersos”. Quase com segurança, essa organização não será partidarista, menos eleitoreira. O que aconteceu na história recente de pactos e arranjos tornou os nicaraguenses céticos.
O desafio é construir um potente movimento cidadão, para demandar mudanças nas atuais regras da política e no rumo do país. A tendência do governo será, segundo vem fazendo, aumentar a repressão. Forte, mas seletiva e encoberta. No descenso, iremos experimentar a repressão dirigida. Por isso, será decisiva a solidariedade com aqueles que sofrem a repressão, embora sejam muitos que querem a organização para retirar do poder o casal presidencial, que consideram o responsável pelo ocorrido.
A política nicaraguense historicamente foi mediada pela ingerência, em especial dos norte-americanos. Os políticos historicamente disputavam o apoio e a bênção dos gringos. Hoje, o desafio é sermos capazes de desenhar nosso próprio país sem intervenções externas.
Contudo, nem todos pensam assim. Por isso, as diferentes expressões da esquerda devem fazer o enfrentamento junto com as pessoas, e apostar em que os resultados não sejam mais do mesmo: mais capitalismo, mais entreguismo e extrativismo que acaba com os recursos e depreda a natureza. Que a Nicarágua não seja o reinado dos capitais estrangeiros... que seja para os nicaraguenses. Que sejamos capazes de construir uma massa crítica que não se conforme apenas em mudar as caras no governo, mas que se abra à possibilidade de um modelo diferente de sociedade.
Na Nicarágua, o termo “esquerda” está desprestigiado por um Ortega que se autoqualifica como de esquerda, anti-imperialista e revolucionário. Lastimosamente, ocorre o mesmo com o termo sandinista. Nestas jornadas, vimos jovens que queimaram a bandeira vermelha e preta. Não porque não reconheçam Sandino, ou a luta sandinista heroica dos anos 1960 e 1970, mas, sim, por uma rejeição a atual FSLN.
Para os que desde nossa adolescência estamos lutando sob os princípios, valores e programa do sandinismo de Carlos Fonseca, não deixa de ser doloroso. Mas, precisamos entender que estes jovens identificam essa bandeira com o governo que abominam. Seria absurdo pensar que por isso são de direita. Já há muitos que entendem que para o orteguismo o sandinismo acabou sendo apenas uma bandeira eleitoral esvaziada de conteúdo real de mudanças. Hoje, a bandeira sandinista é patrimônio da Nação inteira, já que Sandino é um dos símbolos mais importantes da identidade nicaraguense. Enquanto isso, milhares de sandinistas, de diferentes gerações, alguns já bem velhos, acompanhamos de diferentes trincheiras estas lutas que voltam a trazer esperança. Cumpriu-se o sonho do padre Fernando Cardenal, que dizia “Eu sonho com aquele dia em que os jovens voltem às ruas para fazer História”.
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A rebelião do povo da Nicarágua. Artigo de Mónica Baldotano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU