03 Abril 2018
Em 'Crítica da Razão Negra', Achille Mbembe aborda segregação racial nos últimos 5 séculos.
"O discurso ocidental sobre o negro, portanto, foi menos unívoco do que Mbembe faz parecer em seu livro. Em geral, contudo, o pensamento ocidental tinha certeza da inferioridade do negro, daí derivando a conclusão de que seu continente —a África— não possuiria uma história. Em consequência, o protagonismo pertenceria à Europa", escreve Thiago Krause, doutor em história pela UFRJ, é autor de “Em Busca da Honra” (Annablume) e professor de história do Brasil Colonial na Unirio, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 01-04-2018.
Raros são os livros que suscitam reflexões profundas sobre o passado, o presente e, principalmente, o futuro. “Crítica da Razão Negra” [n-1 edições, 315 págs., R$ 65], do camaronês Achille Mbembe, 60, é uma dessas obras, que finalmente chega ao Brasil, depois de ser publicada em francês (2013) e traduzida para diversos idiomas.
É tão difícil classificar o livro quanto seu autor. Historiador especializado na África do século 20, Mbembe dialoga constantemente com a psicanálise, a literatura e a filosofia. Essa combinação de diferentes saberes é característica dos chamados estudos pós-coloniais, que investigam os impactos do colonialismo na estruturação da modernidade e a especificidade do pensamento crítico produzido sob a experiência colonial.
A própria trajetória de Mbembe, um dos principais intelectuais africanos da atualidade, tem como marca um contínuo vaivém entre a África e o Ocidente: ele se doutorou na França e atuou em instituições prestigiosas nos EUA e no Senegal antes de se radicar na África do Sul.
“Crítica da Razão Negra” analisa a escravidão, o colonialismo e a segregação racial nos últimos cinco séculos, mas não o faz de forma sistemática —o leitor que busca uma abordagem linear faria bem em optar pelo também recém-lançado “Racismos” (Companhia das Letras), de Francisco Bethencourt.
Mbembe utiliza a história “para propor um estilo de reflexão crítica sobre o mundo do nosso tempo”, o que torna seu livro mais instigante do que muitos trabalhos acadêmicos presos em suas fronteiras disciplinares. Leitores brasileiros devem estar avisados, porém, de que o autor não aborda a experiência latino-americana, privilegiando as regiões francófonas e anglófonas da África, da América e da Europa.
São limites geográficos, sem dúvida, mas em nada diminuem a ambição do livro de oferecer uma visão afrocêntrica da modernidade. Já em seu título aparece explícita a referência a uma das obras canônicas da filosofia ocidental: “Crítica da Razão Pura ” (1781), de Emmanuel Kant (1724-1804), que propôs uma explicação universal sobre a razão humana e o conhecimento.
Abre-se assim o caminho para a primeira faceta da crítica de Mbembe: uma análise das formas como o Ocidente concebeu o negro, não como indivíduos, mas sim como uma figura homogênea imaginada de acordo com os propósitos e as fantasias europeias.
Apesar de suas pretensões universalistas, o Iluminismo de Kant excluía o outro —nomeadamente o negro— por não possuir razão, de modo que não poderia contribuir para o progresso da humanidade.
Verdade que é possível apontar uma minoria de intelectuais que, a exemplo de Montesquieu (1689-1755), afirmaram explicitamente a semelhança entre europeus e não europeus. O discurso ocidental sobre o negro, portanto, foi menos unívoco do que Mbembe faz parecer em seu livro.
Em geral, contudo, o pensamento ocidental tinha certeza da inferioridade do negro, daí derivando a conclusão de que seu continente —a África— não possuiria uma história. Em consequência, o protagonismo pertenceria à Europa.
Tal visão perpetua-se até hoje. Há cerca de uma década, Nicolas Sarkozy, então presidente da França, afirmou em discurso no Senegal: “A tragédia da África é que o africano ainda não entrou plenamente na história”.
Para Mbembe, a consciência ocidental do negro é inseparável do tráfico de africanos escravizados e do imperialismo, pois o racismo seria necessário para legitimar tais mecanismos de acumulação essenciais para o capitalismo.
A própria categoria “negro” teria sido forjada a fim de justificar a utilização de vasta mão de obra na produção para exportação, o que transformou a escravidão americana em uma instituição radicalmente diferente das formas africanas de cativeiro.
Uma característica essencial do domínio europeu sobre o mundo seria, portanto, a classificação do restante da humanidade como inferior e anormal.
O negro é, então, uma criação europeia para representar “um vínculo de submissão. No fundo, só existe ‘negro’ em relação a um ‘senhor’”. Da mesma maneira, o branco não passa de uma invenção fantasiosa que o Ocidente buscou naturalizar através da concessão sistemática de privilégios jurídicos e econômicos, da Virgínia (EUA) na segunda metade do século 17 à África do Sul do apartheid, continuando até o presente.
Essa representação do outro como inferior permitiria que a Europa dissociasse o governo da metrópole do domínio colonial, pois não haveria nada em comum entre colonizadores e colonizados. Ao mesmo tempo em que ocorriam processos de democratização no Ocidente, os territórios ultramarinos eram comandados de forma despótica.
A violência seria constituinte dessa forma de domínio, como já havia notado o martiniquense Frantz Fanon (1925-1961), uma das principais inspirações de Mbembe. Mas foram o racismo e a crença na inferioridade alheia que permitiram apresentar a exploração brutal como empreendimento civilizatório e humanitário.
A descolonização não apagou essa visão negativa que enxerga o outro como algo “à parte, pelo qual não somos responsáveis, com o qual muitos dos nossos contemporâneos sentem dificuldade de se identificar”. Até hoje a consciência ocidental não trata o negro e a África como semelhantes, mas como diferentes e inferiores, de quem no máximo podemos ter piedade. É uma vontade de ignorância que apaga a realidade e as especificidades regionais, permitindo que se desconsiderem as atrocidades constitutivas de nosso presente.
A inferiorização da alteridade não se limita à África. Está presente na indiferença ocidental para com as principais vítimas do terrorismo (os muçulmanos do Oriente Médio), na idealização do Império Britânico que caracteriza os apoiadores do Brexit e no encarceramento em massa de jovens negros no Brasil e nos EUA, dentre muitos outros fenômenos.
Mesmo que a diferença seja apresentada sob o signo da religião ou da cultura, é a lógica racial que permite circunscrever e vigiar os movimentos de grupos marcados como diferentes para garantir a segurança da sociedade, desde os escravos numa colônia agroexportadora até os muçulmanos na França da guerra ao terror.
Mbembe recorre a outra de suas grandes influências, o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), para notar que o racismo é essencial para justificar a “função assassina do Estado” —percepção especialmente pertinente para o Brasil, onde foram registradas 7.549 mortes em decorrência de intervenção policial em 2015 e 2016, com 76% das vítimas sendo negras.
Essas manifestações globais de violência e hierarquização compõem o que o autor denomina de “devir-negro do mundo”. Os subalternos inevitavelmente reagiram a tais processos de dominação, dando origem à consciência negra do negro, que busca recriar uma comunidade contra a lógica escravista que tentou lhes negar as relações de parentesco e contra um colonialismo que desestruturou as relações comunitárias.
Embora reconheça a resistência perene dos escravizados e colonizados, Mbembe concentra-se nos intelectuais negros que, a partir do século 19, refletiram nos EUA, no Caribe e na África sobre suas lutas contra a escravidão, a segregação e o colonialismo, proclamando orgulhosamente o seu pertencimento à humanidade. Nessa visão, a categoria negro passaria a simbolizar a luta pela liberdade, em razão de seu protagonismo em um combate no qual todos poderiam (e deveriam) se reconhecer.
Para Mbembe, o limite dessa consciência estaria na ausência de questionamento da ficção racial ou da ideologia da diferença cultural, abraçando-as para defender sua própria especificidade e o valor de suas contribuições para a civilização.
Não haveria, portanto, ruptura com a maneira de pensar o mundo transmitida pela colonização. A consciência negra também seria caracterizada por uma vitimização maniqueísta que só reconhecia o negro como sujeito da história caso ele lutasse contra a dominação.
Não conseguiria aceitar, por exemplo, a participação de africanos no tráfico e no imperialismo, que se daria principalmente em razão de seu desejo pelos produtos europeus — fenômeno que Mbembe classificou como “pequeno segredo” da colônia no quarto capítulo de seu livro.
É preciso notar, entretanto, que sua crítica não se dirige aos movimentos negros que enfrentam desigualdades estruturais nas Américas, mas sim às elites que tomaram o poder após as independências e continuaram a culpar o legado do colonialismo por todos os problemas.
Um exemplo está no Congresso Nacional Africano, há duas décadas no poder, mas incapaz de melhorar as condições de vida da maior parte da população da África do Sul, que permanece um dos países mais desiguais do mundo.
E quanto ao futuro, qual é o projeto de Mbembe? Não uma reafirmação das diferenças criadas pela modernidade ocidental, mas sim a sua superação. Para o autor, a característica mais importante das lutas negras é que elas permitiram a expansão de prerrogativas que até então eram exclusividade dos brancos, e tais reivindicações continuarão a ser legítimas enquanto africanos e afrodescendentes tiverem seus direitos negados.
Entretanto, “a celebração da alteridade só tem sentido se ela se abrir para a questão crucial do nosso tempo, a questão da partilha, do comum e da abertura à exterioridade”, afirmando a dignidade de todas as pessoas e a ideia de uma comunidade humana.
Para construir uma consciência comum do mundo que abarque toda a humanidade, também é preciso que o Ocidente adote uma ética da reparação para lidar com as cicatrizes causadas por suas ações. Somente então seria possível vislumbrar uma realidade na qual o destino “é universal, um mundo livre do fardo da raça e livre do ressentimento e do desejo de vingança que toda e qualquer situação de racismo suscita”.
Um sonho, talvez, mas que nem por isso deixa de ser inspirador: todos precisamos de um pouco de utopia, especialmente em tempos tão sombrios.
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Intelectual busca oferecer visão afrocêntrica da modernidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU