27 Março 2018
Será que há alguma chance de o processo desigual realizado até agora, com decisões improvisadas, pode tomar um caminho mais claro?
A pergunta é de Robert Mickens, jornalista, formulada em artigo publicado por La Croix International, 23-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O Papa Francisco fez mais do que qualquer outro papa, pelo menos desde São João Paulo II em seus primeiros anos como Bispo de Roma, para restaurar a imagem global do papado e da Igreja Católica.
O papa jesuíta tem tido notável sucesso ao remodelar essas instituições, mesmo constantemente trabalhando em meio a polêmicas para construir bases sólidas para uma reforma substancial e irreversível de ambas.
Mas no decorrer de uma semana turbulenta as fachadas remodeladas do papado e da Igreja Apostólica Romana – em particular sua sede burocrática no Vaticano – quase se desintegraram. No mínimo, arriscaram sofrer danos sérios e irremediáveis durante, pelo menos, o atual pontificado.
No centro da confusão quase fatal estava o Mons. Dario Viganò, um sacerdote de 55 anos, especialista em cinema italiano, escolhido por Francisco quase três anos atrás para prefeito fundador de uma nova Secretaria para a Comunicação. O papa confiou-lhe a difícil missão de reformar e coordenar vários escritórios de imprensa do Vaticano em um único conglomerado.
O sacerdote milanês não ganhou popularidade com os funcionários, que o criticaram pela realização do projeto de reorganização como um trator, sem sensibilidade humana, competência profissional midiática e até mesmo um planejamento claro.
As críticas vêm principalmente de pessoas de dentro do Vaticano. O resto do mundo geralmente não está interessado nessas disputas internas, a menos que cheirem a escândalo sexual ou financeiro, que – graças a Deus – não foi o caso.
Mas o último passo em falso de Viganò foi além das paredes do Vaticano. Ainda que sem a intenção, ele teve um erro de cálculo ao tentar conseguir o apoio de Bento XVI a uma série de volumes publicada pelo Vaticano para reforçar as credenciais teológicas do Papa Francisco. Foi, além disso, uma tentativa de mostrar que não há ruptura essencial entre os ensinamentos dos antigos papas e o atual.
Mas foi uma ideia estúpida e perigosa desde o início, uma tentativa de induzir o aposentado "papa professor” e antigo chefe doutrinal da Igreja a violar mais uma vez seu silêncio autoimposto para dar uma nota que aprovasse seu sucessor, o latino-americano e não acadêmico "papa do povo".
A intenção aparentemente nobre de Viganò foi silenciar as poucas vozes vibrantes de alguns católicos tradicionalista e inflexíveis na doutrina que continuam acusando Francisco de tentar romper com a visão e as políticas de seu antecessor teólogo e da longa tradição da Igreja. Mas o prefeito só aumentou sua indignação irracional.
O que aconteceu foi o seguinte: Viganò escreveu para Bento (em uma carta que nunca veio a público) pedindo que ele escrevesse uma espécie de prefácio à série. O antigo papa, quem faz 91 anos no próximo mês, delicadamente recusou o pedido com uma carta de duas páginas "privada" e "confidencial".
Isso deveria ter encerrado toda a questão. No entanto, durante o lançamento oficial da série de livros, Viganò decidiu divulgar partes selecionadas da resposta privada de Bento XVI, mas escolheu apenas trechos que apoiavam o objetivo original do prefeito das comunicações: provar que não há nenhuma ruptura teológica entre o atual e o antigo papa.
Os jornalistas chamaram sua atenção quando ficou evidente que ele não tinha divulgado o conteúdo da comunicação de Bento XVI na íntegra. Alguns também o acusaram de espalhar notícias falsas e violar normas éticas do jornalismo ao deliberadamente falsificar uma foto (o que ele chamou de uma edição "artística") da carta de Bento XVI, deixando duas frases borradas e omitindo um parágrafo.
Depois de ser bombardeado pela pressão da mídia internacional, o departamento de comunicações do Vaticano acabou tendo que publicar o texto do antigo papa na íntegra, quatro dias após o incidente original. Na verdade, o apoio não era tão forte quando Viganò levou o público a acreditar.
Os críticos de Francisco aproveitaram a gafe para atacar ainda mais o papa, alegando que foi apenas o último caso de um padrão recorrente e perturbador do pontificado atual de deliberadamente enganar o público a respeito de uma série de questões.
O Vaticano tentou encerrar o caso na quarta-feira passada, quando a assessoria de imprensa anunciou que o papa relutou para aceitar a renúncia de Viganò do cargo de prefeito da Secretaria para a Comunicação, chegando a publicar a carta de renúncia do padre e a carta em que o papa aceitou o pedido de demissão.
Francisco afirmou que estava permitindo que Viganò se afastasse, mas "não sem alguma dificuldade". Na mesma carta, disse que o padre continuaria trabalhando na Secretaria no cargo recém-criado de "assessor". Segundo o papa, isso permitiria a Viganò dar sua "contribuição humana e profissional ao novo prefeito" (ainda não nomeado).
Em outras palavras, Viganò foi rebaixado, não despedido. Foi um procedimento incomum para o Vaticano, cuja maneira habitual de se ver livre de funcionários incompetentes ou inadequados é promovê-los a um cargo mais elevado, de acordo com o adágio latino promoveatur ut amoveatur.
Mas disseram a Viganò que ele permaneceria e seus métodos questionáveis de reforma foram ratificados, não eliminados ou modificados. O Papa Francisco deixou isso claro na carta, afirmando que o Conselho de Cardeais (C9) tinha pedido a realização do projeto de reforma de imprensa e que ele havia "aprovado e regularmente apoiado" seus vários estágios.
Acredita-se fortemente (como foi sugerido na semana passada na carta de Roma) que o Papa escolherá o bispo Paul Tighe para substituir Viganò. O dublinense de 60 anos foi secretário do Pontifício Conselho para a Cultura desde 2015, após oito anos como o segundo principal funcionário do extinto Pontifício Conselho para a Comunicação Social, um departamento que se extinguiu com a criação da Secretaria para a Comunicação.
O bispo Tighe – ou quem quer que o papa escolha como prefeito – terá uma tarefa extremamente difícil. Basicamente, ele deverá finalizar o projeto de Viganò e trabalhar com o antecessor rebaixado ao seu lado.
Para ter a autoridade incontestável de colocar sua própria marca em sua realização, bem como para resolver quaisquer diferenças de opinião, o novo prefeito vai ter de ser um bispo. Goste ou não, os bispos estão acima dos sacerdotes. Neste caso, será a garantia de que o prefeito está realmente no comando e que o fato de Viganò ter sido rebaixado/substituído não é apenas um exercício de relações públicas em prol do mundo exterior.
No universo interior, haverá um desafio mais grave para o novo prefeito. Ou seja, como escreveu o Papa Francisco na carta recente: a "iminente fusão do L'Osservatore Romano no sistema comunicativo da Santa Sé e a incorporação da imprensa do Vaticano".
Isso será uma tarefa extremamente difícil. O jornal semioficial do Vaticano tem resistido a todas as tentativas de ser controlado ou absorvido pela Secretaria de Viganò. E seu editor, Giovanni Mari Vian, encontrou forte apoio à resistência de vários altos funcionários do Vaticano, bem como alguns de dentro da Secretaria de Estado.
Uma das maiores prioridades do novo prefeito terá de ser a construção de uma relação construtiva de confiança e diálogo com Vian, sua equipe e seus apoiadores. Também vai ter de ganhar o respeito dos outros funcionários desiludidos já sob a égide da Secretaria.
O bispo Tighe tem as qualidades humanas, bem como credibilidade pessoal e profissional na equipe do Vaticano, a ponto de ter chances equivalentes a qualquer outra pessoa de conseguir esse feito.
Mas permanecem questões mais importantes. Qual é o objetivo final e qual será o produto final desta reforma geral da mídia e das comunicações do Vaticano? Será que o processo desigual conduzido até agora, com decisões improvisadas, pode tomar um caminho mais claro?
São problemas particularmente graves para as pessoas que trabalham nos diversos setores de imprensa do Vaticano. Compreensivelmente, o mundo externo se preocupa menos com elas.
No entanto, quando a Sala de Imprensa da Santa Sé anunciou a criação da nova Secretaria para a Comunicação, em junho de 2015, este escritor afirmou:
"O Papa Francisco deve ser aplaudido pela tentativa. Mas muitos terão dificuldades de elogiá-lo pelos quatro principais funcionários que ele escolheu para liderar a Secretaria”.
A "carta de Roma" que surgiu em 1º de julho na antiga Global Pulse Magazine (precursora da La Croix internacional) observou que três das quatro pessoas que o papa colocou no comando eram italianas, assim como o Mons. Viganò, o novo prefeito.
O único que não era italiano era o secretário, Mons. Lucio Ruiz, um sacerdote argentino que havia trabalhado no Vaticano nos últimos 18 anos, primeiro como assistente pessoal do cardeal Dario Castrillon Hoyos na Congregação para o Clero e a partir de 2009 como chefe (webmaster) do gabinete de Internet. Dois leigos italianos – um era empresário que trabalhava para o L'Avvenire, o jornal diário da Conferência Episcopal italiana, e o outro advogado civil envolvido com a administração da Rádio Vaticano e do Centro Televisivo Vaticano (CTV) – arrematavam os principais cargos.
A principal preocupação sempre girou em torno das qualificações questionáveis do prefeito que agora renunciou, que era especialista em cinema italiano, mas nunca tinha se envolvido na liderança de um departamento de comunicações.
Não se sabe se o Papa Francisco chegou a entender ou compartilhar esta preocupação generalizada, que vários bispos e cardeais chegaram a manifestar.
Mas se entendeu, o Papa tem agora a oportunidade de consertar uma escolha mal aconselhada feita três anos atrás. Infelizmente, para a maioria dos que trabalham no departamento de comunicações do Vaticano, já deva ser tarde demais.
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O 'motu proprio' mais recente do Papa: Dario Viganò fica onde está - Instituto Humanitas Unisinos - IHU