31 Janeiro 2018
Há dez anos, bancos inundaram os parlamentos de dinheiro para “azeitar” decisões a seu favor e culpar sociedades e Estados pelo desastre. Mas há um segundo round em curso.
O artigo é de Walden Bello, autor e acadêmico filipino, coordena o centro de pesquisas Focus on the Global South, baseado em Bangkok, Tailândia e eleito recentemente deputado no Parlamento das Filipinas, em artigo publicado por Telesur e reproduzido por Outras Palavras, 29-01-2018. A tradução é de Eduardo Sukis.
Quando o chão se abriu sob Wall Street em setembro de 2008, muito se falou sobre dar aos bancos o que eles mereciam, prender os “banksters”, banqueiros gângster, e impor uma regulação draconiana. O então recém-eleito Barack Obama chegou ao poder prometendo uma reforma bancária e mandando um aviso a Wall Street: “Meu governo é a única coisa que separa vocês da ira popular”.
Porém, quase dez anos após a erupção da crise financeira global, é evidente que os responsáveis por ela conseguiram sair completamente impunes. E não foi só isso, eles conseguiram convencer os governos a mandar a conta da crise, e o fardo da recuperação, para as vítimas.
Como eles tiveram êxito? A primeira linha de defesa dos bancos foi fazer os Estados resgatarem os bancos do desastre financeiro que eles haviam criado. Nos EUA, os bancos recusaram categoricamente a pressão do governo para montar uma salvaguardas coletivas com seus próprios recursos. Manipulando o colapso dos preços de ações, causado pela falência do banco Lehman Brothers, os representantes do capital financeiro conseguiram chantagear tanto os liberais quanto a extrema direita no Congresso para aprovar o programa TARP (Troubled Asset Relief Program) de US$ 700 bilhões. A nacionalização bancária foi descartada como sendo algo inconsistente com os “valores americanos”.
Depois conseguiram, em 2009 e 2010, estripar da lei Dodd-Frank os três itens principais vistos como necessários para uma reforma genuína: reduzir o tamanho dos bancos separando institucionalmente as instituições comerciais das de investimento; banir a maioria dos produtos financeiros derivativos e regular eficazmente o chamado “sistema bancário paralelo”, que havia provocado a crise.
Eles fizeram isso usando o que Cornelia Woll chamou de “poder estrutural” do capital financeiro. Uma dimensão desse poder foram os US$ 344 milhões gastos pela indústria com pressões sobre o Congresso norte-americano nos primeiros nove meses de 2009, quando os parlamentares estavam se dedicando à reforma financeira. Só o senador Chris Dodd, presidente do Comitê Bancário do Senado, recebeu US$ 2,8 milhões em contribuições de Wall Street em 2007 e 2008. Porém, talvez tão poderosa quanto a pressão de Wall Street entrincheirada no Congresso foram as vozes potentes da então novo governo Obama, que simpatizavam com os banqueiros. Destacaram-se principalmente o secretário do Tesouro, Tim Geithner, e o chefe do Conselho de Assessores Econômicos, Larry Summers, ambos ex-colaboradores próximos de Robert Rubin, que possuía sucessivas encarnações como copresidente da Goldman Sachs, chefe do Tesouro de Bill Clinton e presidente e conselheiro sênior do Citigroup.
Finalmente, o setor financeiro teve sucesso exercendo seu poder ideológico, ou talvez a descrição mais precisa seja atrelando sua defesa à ideologia neoliberal dominante. Wall Street foi capaz de mudar a narrativa sobre as causas da crise financeira, jogando a culpa totalmente no Estado.
Isso fica bem claro no caso da Europa. Assim como nos EUA, a crise financeira na Europa foi uma crise centrada na oferta de produtos financeiros. Os grandes bancos europeus procuraram substituir os lucros baixos, obtidos nos empréstimos à indústria e agricultura, por operações de alto lucro e retorno rápido, como crédito imobiliário e especulação em derivativos financeiros. Ou então, aplicaram seus fundos excedentes em títulos de alto rendimento vendidos pelos governos. Realmente, na busca por lucros cada vez maiores, provenientes do crédito imobiliário a governos, bancos locais e construtoras, os bancos europeus despejaram US$ 2,5 trilhões na Irlanda, Grécia, Portugal e Espanha.
O resultado foi o aumento da relação dívida/PIB da Grécia para 148% em 2010, levando o país à beira de uma crise da dívida pública. Pensando em proteger os bancos, a abordagem das autoridades europeias para estabilizar as finanças da Grécia não foi penalizar os credores pelo crédito irresponsável, mas colocar nos ombros dos cidadãos todo custo dos ajustes.
A narrativa construída, que via como causa da crise o “Estado gastador”, e não em um setor financeiro privado desregulado, chegou rapidamente aos EUA. Aí foi usada não só para descarrilhar a verdadeira reforma bancária, mas igualmente para impedir a sanção de um programa de estímulo efetivo à economia, em 2010. Christina Romer, chefe do Conselho de Assessores Econômicos de Barack Obama, avaliou que seriam necessários US$ 1,8 trilhões para reverter a recessão. Obama aprovou menos da metade, ou US$ 787 bilhões, acalmando a oposição republicana, mas impedindo uma recuperação rápida. Assim, o custo da insensatez de Wall Street recaiu não sobre os bancos, mas sobre os norte-americanos comuns. O desemprego atingiu quase 10% da mão de obra em 2011, e o desemprego entre os jovens superou os 20%.
O triunfo de Wall Street em inverter a revolta popular contra si, após a erupção da crise financeira, ficou evidente na disputa para as eleições presidenciais de 2016. As estatísticas norte-americanas eram claras: 95% dos rendimentos econômicos de 2009 a 2012 foram para as mãos do 1% mais rico; o rendimento médio anual das pessoas havia caído 4 mil dólares em comparação com 2000; a concentração de ativos financeiros aumentou após 2009, com os quatro maiores bancos detendo quase 50% do PIB. Regular Wall Street não havia sido uma questão debatida nas eleições primárias republicanas, enquanto nos debates dos democratas era uma questão secundária, apesar dos esforços do candidato Bernie Sanders de torná-la o ponto central.
As instituições políticas de uma das democracias liberais mais avançadas do mundo não foram páreo para o poder estrutural e recursos ideológicos do establishment financeiro. De acordo com Cornelia Woll: “Para o governo e para o Congresso, a principal lição da crise financeira em 2008 e 2009 foi que eles tinham uma influência muito limitada sobre o comportamento do setor financeiro em casos de necessidade urgente pela sobrevivência de todo o setor e da economia em geral”.
Na Grécia, as políticas de “austeridade” provocaram uma revolta popular, expressa no referendo de junho de 2015, em que mais de 60% do povo grego rejeitou o acordo com os credores. Porém, no final das contas, a vontade deles foi esmagada enquanto o governo alemão forçava o primeiro-ministro Alexis Tsipras a uma rendição humilhante. Está claro que o principal motivo era salvar a elite financeira europeia das consequências de suas políticas irresponsáveis, impondo o princípio de ferro de pagamento total da dívida e crucificando a Grécia a fim de dissuadir os outros, como os espanhóis, irlandeses e portugueses, de se revoltarem contra a servidão por dívida. Conforme admitiu há algum tempo Karl Otto Pöhl, um ex-chefe do Banco Federal Alemão, o exercício draconiano na Grécia se resumia a “proteger os bancos alemães, mas principalmente os bancos franceses, das anulações da dívida”.
Porém, é provável que a vitória dos bancos seja de Pirro. A combinação de uma profunda recessão induzida pela austeridade, ou de uma estagnação que engole grande parte da Europa e dos EUA, e a ausência da reforma financeira é fatal. A estagnação prolongada resultante e a perspectiva da deflação desencorajaram o investimento na economia real para expansão de bens e serviços.
Enquanto isso, durante a paralisação da ação para regular novamente as finanças, as instituições financeiras têm ainda mais motivos para fazer exatamente o que fizeram antes de 2008 e que disparou a crise atual: envolver-se em operações de muita especulação, criadas para gerar superlucros , antes que a lei da gravidade cause a quebra inevitável.
Atualmente, o mercado de derivativos não transparentes está estimado em um total de US$ 707 trilhões — consideravelmente superior aos US$ 548 bilhões em 2008, de acordo com o analista Jenny Walsh. “O mercado tornou-se tão incrivelmente vasto que a economia global está correndo o risco de prejuízos imensos, caso uma pequena porcentagem dos contratos não seja honrada. Seu tamanho e possível influência são difíceis de compreender, que dirá avaliar.” O ex-presidente da Comissão de Títulos e Câmbio dos EUA Arthur Levitt concordou, dizendo a um escritor que nenhuma das reformas pós-2008 “diminuíram consideravelmente a probabilidade de crise financeira”.
Por isso, a pergunta não é se outra bolha vai estourar, mas quando.
A próxima pergunta é: será que a próxima crise bastará para conseguir o que a reação à crise financeira de 2008 não conseguiu — ou seja, limitar a ação do capital financeiro? Em seu livro clássico A Grande Transformação (Editora Campus, Rio, 2ª ed, 2000) Karl Polanyi para a revista sobre ele falou sobre o “duplo movimento”, segundo o qual o excesso de capital cria um movimento contrário entre as pessoas, o que força o Estado a restringi-lo e regulá-lo.
Com relação a isso, podemos aprender com a experiência inédita na Islândia. Em outubro de 2015, o sistema judiciário islandês mandou para a cadeia os diretores dos maiores bancos do país, junto com 23 de seus principais assessores. A sentença foi a conclusão de um processo no qual a Islândia pegou um caminho diferente com relação aos EUA e ao resto da Europa. Ela deixou os bancos afundarem, em vez de resgatá-los com a desculpa de serem “grandes demais para quebrar”. Ela realizou operações de resgate sim, mas dos cidadãos comuns em vez de banqueiros, perdoando dívidas de hipoteca que ultrapassavam 110% do valor real da residência vinculada ao empréstimo.
A economia da Islândia não desmoronou quando permitiu que seus maiores bancos fracassassem. Conforme indicado por um artigo, a Islândia retomou o crescimento econômico muito mais rápido do que os céticos esperavam depois de romper com a abordagem conciliatória para com os atores do setor financeiro usada pela maioria dos países após o colapso global. A taxa de crescimento da pequena economia ultrapassou a média dos países europeus em 2012. Ela congelou sua taxa de desemprego desde o pico da crise.
O país foi capaz de domar o setor financeiro graças a vários fatores. Um foi o tamanho relativamente pequeno de sua democracia. Com uma população de apenas 329 mil pessoas, a maioria delas na capital, Reykjavik, os políticos da Islândia estavam suscetíveis a uma pressão muito direta do eleitorado, que em grande parte havia sofrido perdas terríveis. Outro fator: não fazia tempo que o setor financeiro havia emergido como o principal condutor da economia, e a elite financeira não havia alcançado o imenso poder estrutural e ideológico que o capital financeiro alcançou nos EUA, no Reino Unido e no restante da Europa.
A Islândia pode ter sido a exceção à regra, mas demonstra que o controle democrático sobre os bancos é possível.
Para evitar outras crises com custos sociais trágicos, temos a tarefa urgente de trazer novamente o setor financeiro sob o controle democrático, para redesenhar a relação da sociedade com o capital financeiro — aliás, com o próprio Capital.
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E quando vier a próxima crise financeira? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU