29 Janeiro 2018
"Memória, consciência, responsabilidade". Ao traçar as coordenadas de seu trabalho como diretor do Museu-Memorial de Auschwitz-Birkenau, criado onde existia o maior campo de extermínio montado pelo Terceiro Reich, e um lugar que também se tornou o trágico símbolo de toda a barbárie nazista, o historiador polonês Piotr M.A. Cywinski nunca teve dúvidas.
A entrevista é de Guido Caldiron, publicada por Il Manifesto, 27-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Conforme explicado em Non c’é fine ( Não há fim, Bollati Boringhieri, pp. 148, 15 €) "em Auschwitz julgamos muito mais do que uma especifica geração, julgamos a humanidade. Como consequência, julgamos a nós mesmos." O sentido dessa memória desafia de forma radical o presente e o futuro, o que é feito ainda hoje na presença da indiferença da maioria, e o papel e as responsabilidades da Europa "civil" que naquele lugar perdeu, definitivamente, a sua inocência. Como muitas perguntas que ecoam no Dia da Memória.
Desde 2006, você dirige o Memorial e Museu de Auschwitz-Birkenau, quais os desafios mais importantes que já enfrentou?
Um local de tal magnitude representa, para quem que tem que lidar com tudo isso, um grande desafio de várias naturezas. Exige tanto uma espécie de atenção técnica constante como uma preocupação emocional delicada. Tudo isso, tentando manter uma abordagem histórica e moral honesta.
No plano prático, a maior responsabilidade foi certamente para definir e garantir que fosse posto em prática um mecanismo de financiamento dos trabalhos de conservação que é essencial para o futuro. Da mesma forma, foi necessário o compromisso de manter a autenticidade do sítio, isto é, o que o torna um lugar sagrado e que "fala" para os visitantes. Isso porque milhões de pessoas que visitam a cada ano Auschwitz (50 milhões até agora, ndr) não o fazem com o espírito de quem vai visitar um museu qualquer. Esperam realizar seu próprio rito de passagem, se aproximar o máximo possível da compreensão do ser humano, com todas as consequências que isso comporta.
Você escreveu que esse lugar não deve parar de "gritar", que não pode ser nem normalizado nem pacificado de forma alguma. Corremos, de fato, esse risco?
Sem dúvida. O risco é evidente no longo prazo. Hoje, os instrumentos de tortura da Idade Média estão expostos nas feiras dos vilarejos para despertar a curiosidade das crianças. Uma evolução realmente macabra.
Portanto, o maior desafio é fazer entender que Auschwitz não é um evento entre muitos ao longo de um amplo eixo temporal da história da Europa. Auschwitz é um ponto de não retorno. Os enormes esforços realizados após a Segunda Guerra Mundial na perspectiva de criação de um mundo mais humano, do ponto de vista jurídico, político, cultural, econômico e religioso, representam uma praxe sem precedentes em nossa cultura, mas é justamente a compreensão do que foi Auschwitz que representa a chave para compreender plenamente o valor e o significado dessas mudanças. É sinceramente impossível entender o que aconteceu depois de 1945 sem ver no Holocausto um ponto de inversão total na civilização europeia.
Em seu livro você ressaltava como a voz dos sobreviventes e o Memorial sejam os dois pilares da narrativa de Auschwitz. Com o ocaso da “era das testemunhas" qual o papel que se espera seja desempenhado pelo que você chama justamente de o "Lugar"?
O Lugar faz com que as narrativas dos sobreviventes sejam mais presentes. Exatamente como esses testemunhos tornam o Lugar mais compreensível. É uma experiência totalmente diferente visitar Auschwitz depois de ter lido Primo Levi, Shlomo Venezia ou Elie Wiesel. E a leitura dessas páginas se torna algo diferente quando você está caminhando na mesma rampa de que estão falando, quando se entra em um dos galpões que estão descritos, ou quando se passa sob a insígnia onde se lê "Arbeit macht frei”. Portanto, na percepção de todos, Auschwitz deve e deverá funcionar de alguma forma também no futuro em uníssono com as vozes dos sobreviventes. É por isso que continuamos a recolher e publicar os seus testemunhos.
Seu escritório fica perto do ponto onde normalmente termina a visita ao "campo". Milhões de pessoas, especialmente os jovens, participam de viagens de memória que representam uma das maneiras com que, nos últimos anos, muitos têm abordado o que aconteceu em Auschwitz e, mais geralmente, durante o Holocausto. O que você lê em seus rostos ao sair do sítio e que acredita que levem junto com eles depois dessa experiência?
As pessoas que eu vejo todos os dias em Auschwitz são muito diferentes entre si. Esses jovens vêm de diferentes sociedades, países e continentes. E, claro, eles têm vários e diferentes pontos de referência. O que realmente me anima é que depois dessa experiência, imaginando o próprio futuro e o papel que pretendem desempenhar nele, eles cruzem o limiar da memória para adquirir graças ao que viram e ouviram aqui uma visão de sua própria responsabilidade individual. E para que isso aconteça, eu acredito que deva também ser feito um trabalho educativo concreto, tanto antes e especialmente depois da visita. A história por si só não é suficiente, deve ser vinculada com a ética e com a educação cívica. Temos um dever para com as novas gerações, oferecendo-lhes todas as ferramentas para que possam se tornar adultos conscientes.
Elie Wiesel, que morreu no ano passado, descrevia Auschwitz como o "lugar da verdade" e explicava como recordar não é suficiente, mas deva ser compreendido e transmitido como o Holocausto acabou sendo possível graças à ação e à indiferença de muitos, fazendo com que a memória possa ser posta ao serviço de uma tomada de consciência. Você não acredita que essa ferida poderia ser útil agora, que novas formas de discriminação e indiferença em torno do destino dos migrantes na Europa e das vidas de tantas vítimas da guerra estão às portas de nossa casa?
É justamente por isso que encerrar o Holocausto no espaço da história não é suficiente. O grito das vítimas não é apenas um grito que vem da história. É um grito moral, ético e civil. E se alguém pensa que provar que um "fato" aconteceu seja suficiente, está muito enganado. É refletir sobre o sentido, o significado de tal fato, para mim neste momento, que representa a verdadeira aposta, se quisermos chegar a uma nova compreensão da responsabilidade que pesa sobre cada um de nós. A nossa indiferença, hoje, nos acusa ainda mais do que aquela do tempo da guerra. De um lado, agora sabemos muito bem qual é o preço da indiferença e, pelo outro, os nossos meios de ação são de um nível bem diferente daqueles do passado.
E, o elemento que agrava ainda mais a nossa situação, é que vivemos em sociedades que conhecem a paz há longo tempo. É fácil sentir pena de um mundo que não fez o suficiente durante a Segunda Guerra Mundial. Mas esse sentimento só pode ser considerado sincero para aqueles que se esforçam para fazer todo o possível agora. Existirão, no futuro, museus dedicados à onda de refugiados ou a tragédia dos rohingyas na Birmânia. E então seremos todos nós responsabilizados pelo que aconteceu.
Nas nossas sociedades retorna o discurso da "defesa da raça branca", denuncia-se a presença de muçulmanos como um 'corpo estranho', ecoam palavras de ordem fascistas e slogans antissemitas, como é o caso também da sua Polônia natal. Se, como você escreveu, em Auschwitz a Europa se perdeu, como partir dessa conscientização para fazer frente à nova barbárie que se assoma ao horizonte?
Em todos os lugares, nas nossas sociedades estamos testemunhando o ressurgimento do extremismo e da xenofobia. Um fenômeno que é mais que perturbador e pede que se multipliquem os esforços e a presença no plano público e educacional. Nesse sentido, estamos desenvolvendo o trabalho na rede, por exemplo, através de uma revista internacional (para acessar o sítio clique aqui), e nós acabamos de lançar uma exposição itinerante sobre Auschwitz destinada, nos próximos anos, a ser exposta no Velho Continente e nos EUA.
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Memória do Holocausto. Como desfazer a banalidade do mal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU