17 Janeiro 2018
Seria possível comparar o atual pontificado de Francisco com aquele do século XIX do Papa Pio IX (João Maria Mastai Ferretti, 1846-1878)? Recentemente, o confronto entre as duas eras da história da igreja foi proposto nestas páginas por Davide Zaffi, que queria enfatizar uma atitude, em sua opinião, excessivamente acolhedora do Papa Francisco em relação aos migrantes.
O comentário é de de Andrea Sarri, publicado por Il manifesto, 15-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao artigo de Zaffi já fizeram réplica Luigi Sandri e Gina Abbate. Gostaria brevemente de voltar, no entanto, para a comparação entre os dois pontificados na perspectiva histórica. Uma comparação histórica para tentar entender quais são as eventuais descontinuidades entre dois modos específicos de entender a relação igreja-sociedade na época contemporânea.
João Maria Mastai Ferretti nasceu em Senigallia, em 1792, Bispo de Spoleto (1831) e de Imola (1832), foi eleito papa em 1846, como sucessor de Gregório XVI. Inaugurou seu pontificado decretando uma anistia no Estado da Igreja, concedendo a liberdade de imprensa e, em março de 1848, até mesmo uma constituição. Acendeu também esperanças no mundo liberal italiano aderindo em um primeiro momento à guerra da independência contra a Áustria, mas recuando rapidamente da coalizão militar. Forçado a fugir após o assassinato do primeiro-ministro Pellegrino Rossi e da instauração da República Romana (1848-1849), retornou para Roma em 1850, apoiado por franceses e austríacos.
Naqueles anos turbulentos, o Papa Mastai Ferretti acolheu em seu magistério os princípios fundamentais do catolicismo intransigente, que remontava à Revolução Francesa (1789) e do posterior período napoleônico. Este pensamento, que permeou a cultura católica do XIX-XX séculos, considerava que a modernidade havia infelizmente dado origem a um modelo de convivência civil fundado na emancipação de Deus, do cristianismo e da Igreja. Tal "apostasia neopagã" teria conduzido a humanidade à desordem e à decadência. Apenas o retorno a um regime plenamente cristão, identificado em uma mitificada Idade Média, permitiria ao homem moderno encontrar a salvação da barbárie da modernidade sem Deus.
O Papa Pio IX, dizia-se, incorporou no magistério os fundamentos do movimento do catolicismo intransigente: fez isso com a encíclica "Nostis et nobiscum" (1849), na qual era denunciada uma "infame maquinação" que levaria os povos da Europa "aos nefastos sistemas do novo socialismo e do comunismo." Continuou com outra encíclica "Quanta Cura" (1864), cujo famoso apêndice (Syllabus) continha oitenta proposições condenadas como "principais erros" do mundo moderno, especialmente aqueles ligados ao secularismo liberal. O Concílio do Vaticano I (1870) teria mais tarde proclamado o dogma da infalibilidade do papa em questões de fé e moral e a primazia do próprio pontífice sobre toda a Igreja de Roma, definindo assim um domínio absoluto do sucessor de Pedro, que o Código de direito canônico de 1917 também ajudaria formalmente a confirmar.
A imagem recorrente da cultura católica dos tempos de Pio IX, difundida em vários níveis pelo clero e divulgada pela hierarquia episcopal no governo da atividade pastoral, era, no final das contas, aquela que designava a Igreja de Roma como uma "fortaleza sitiada" na luta contra a modernidade ateia.
Bem diferente é, ao contrário, a imagem usada como referência pelo primeiro papa jesuíta desde a sua eleição (março de 2013). A Igreja proposta pelo Papa Francisco é de “hospital de campo”, que atende as necessidades de homens e mulheres do mundo de hoje.
Nesse sentido, a intervenção da Igreja pensada pelo Papa Bergoglio não é mais marcada por um chamado à "lei natural" para a qual a sociedade deveria se direcionar para ordenar as regras da convivência civil. O chamado constante de Francisco é apenas para o Evangelho que se dirige à humanidade ferida, comunicando, em primeiro lugar, a misericórdia de Deus. Em outras palavras, mesmo através de uma comparação evidentemente superficial entre dois pontificados tão distantes no tempo, pode-se pensar que talvez estejamos vivenciando uma mudança de época.
Parece-me que o papa que "veio do fim do mundo" esteja propondo uma radical inovação na relação Igreja-mundo: anunciar o Evangelho da misericórdia abrindo mão do poder.
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Se Francisco abrir mão do poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU