17 Novembro 2017
Sergio Ramírez (Masatepe, Nicarágua, 1942), publicou seus primeiros contos aos 18 anos. Cinquenta e sete anos depois destas histórias, o escritor foi agraciado com o prêmio Cervantes 2017, a maior honraria literária da língua espanhola - e concedido pela primeira vez para um nicaraguense. O anúncio foi feito nesta quinta-feira. Ramírez foi um revolucionário sandinista; deixou o poder, no qual foi vice-presidente, desde que alertou sobre a deriva ditatorial de seu colega Daniel Ortega, agora líder da Nicarágua. Desde que se despediu - com o livro Adiós, Muchachos (1999) - daquela que havia sido sua dedicação ao processo revolucionário, escreveu muitos romances. Mas até agora nunca havia publicado uma denúncia tão explícita sobre a corrupção como pilar do regime com Ya Nadie Llora Por Mí (Editora Alfaguara), que protagoniza um revolucionário da primeira hora, Dolores Morales, um policial que se tornou detetive de causas menores.
A entrevista é de Juan Cruz, publicada por El País, 09-12-2017.
Seu personagem é Dolores Morales, um homem.
Muito comum entre nós. Dolores, Asunción, Mercedes: são confiados às virgens. Alguém se chamava assim e lhe disseram: "Melhor chamar-te Prazeres Físicos", era muito mulherengo. Mas nunca pensei na palavra moral para encaixá-la ao personagem como se vivesse da ética. Embora sua trincheira final seja a ética.
Vem do sandinismo.
Isso mesmo. O fundamento do que ocorreu na Nicarágua com a revolução é que as pessoas deixaram tudo, até suas vidas, pela ética. Meu personagem perde uma perna, de fato. E vai pela vida com sua perna postiça sem perder esse sedimento ético, apesar das vicissitudes: o sandinismo parte, vem um regime neoliberal e, depois, o sandinismo vem novamente para ficar, mas agora com Daniel Ortega transformando em neoliberal neossocialista.
E assim segue Morales...
Resiste a tudo com uma atitude irônica, com seu humor amargo, lutando contra a adversidade ética.
Diante de tudo isso, você também sofre de dores morais?
Isso é certo.
Em que consistem?
As feridas não podem ser curadas, você tem que aprender a viver com elas. Entreguei minha juventude à vida ferida. Queria ser escritor, mas a revolução interveio. E não podia abandonar um país que se livrava de uma ditadura e adentrava em um novo caminho. Depois, obtive o poder. Entreguei tudo, e não é que esperava receber nada em troca. Mas, pelo menos, compensações morais em vez de dores morais.
O que desviou a revolução da moralidade?
Uma ideia equivocada do poder. O modelo era, no fundo, o cubano; acreditava-se que uma revolução não poderia ser bem-sucedida se não fosse para sempre, e que o modelo político era o do partido único para poder fazer mudanças com continuidade. Essa contradição entre democracia e mudança social era falsa, mas também estava na alma a triunfante revolução nicaraguense.
A revolução resultou em um Governo imoral?
Um Governo que não se baseia em pressupostos éticos, sim. Baseia-se no interesse de permanecer no poder, inclusive com base no atropelo ético. A riqueza já não é pecado, como foi para os revolucionários originais. Acumular riqueza é parte do que se consegue com a defesa do poder; é preciso dinheiro para estar no poder.
Esta é uma crônica da corrupção na Nicarágua?
Da Nicarágua que vivemos hoje sob o comando de um casal presidencial entre esotérico e corrupto, que engana o país com projetos fantásticos e que tem uma estreita aliança com a empresa privada. Essa Nicarágua está no meu romance.
O personagem na qual se baseia, um bilionário, é um corrupto que corrompe. Essa é a realidade?
Sim. Há muito capital novo na Nicarágua. Segundo a Forbes, existem 200 novos milionários, mais do que em qualquer outro país centro-americano. Nasceram da noite para o dia com base nas regras do dinheiro fácil, à sombra de um regime que o estimula, porque assim cria uma nova burguesia leal aos seus interesses.
Não existe lei moral que se oponha?
A lei moral permanece na consciência de pessoas como Dolores Morales. Ele tem sua resistência ética muito internalizada, mas não tem muita força. A sociedade é muito passiva, sujeita a um regime que cria controles sociais, lealdades por meio de sinecuras, que exerce um poder social completo.
Soto contrata esse detetive. Seria possível pensar que o escolhe também para corromper o sandinismo?
Não acredito que tenha esse alcance. É uma maneira de vê-lo como um instrumento; o que existe por baixo é uma trama mais obscura, mais corrupta.
A realidade o inspirou?
Sim, porque a Nicarágua é um país no qual esse tipo de caso ocorre muitas vezes e não tem nenhuma sanção social.
É possível pensar que o casal presidencial está ciente dessas manobras?
São conscientes de que têm um projeto, que é permanecer no poder. Um poder assim se choca com as aspirações da sociedade. Esse choque ocorrerá.
Poderíamos dizer que essas são as dores morais da Revolução...
Pode ser...
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Nicarágua. “As dores morais são feridas que não se curam”. Entrevista com Sergio Ramírez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU