07 Novembro 2017
Papa Francisco aparece descontraído em livro de entrevistas com um jornalista também argentino, revelando, entre outras coisas, que em 2005 pediu apoio aos colegas cardeais à eleição de Joseph Ratzinger, que se tornou o Papa Bento XVI. Ele sentia que a América Latina não estava preparada..., em partes, porque a Conferência de Aparecida, que ele ajudou a estruturar, ainda não tinha acontecido.
A reportagem é de Austen Ivereigh, jornalista, publicada por Crux, 06-11-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
A recente entrevista do Papa Francisco sobre a América Latina com o correspondente de Roma da agência de notícias argentina Telam é incrivelmente curta para um livro. São menos de 200 páginas, apesar do layout generoso e do apêndice de discursos, que ocupa mais de um terço do texto.
América Latina: conversas com Hernán Reyes Alcaide (Latinoamérica: Conversaciones con Hernán Reyes Alcaide) situa-se, portanto, no extremo oposto da recente exaustiva - e muitas vezes desgastante - megaentrevista, Política e Sociedade (Politique et Societé), na qual, ao longo de muitos encontros, o sociólogo Dominique Wolton fez com que o Papa se confrontasse com as perguntas de alto nível típicas dos intelectuais seculares franceses.
Ao contrário de Wolton, Reyes é um entrevistador modesto - um repórter, e não um erudito -, e suas perguntas são mais diretas e indeterminadas. Por isso, Francisco aparece muito mais tranquilo, o que pode explicar por que há tantas preciosidades num texto tão curto.
(Prova da tranquilidade que Francisco sente com Reyes é a maneira como usa - pela primeira vez em uma entrevista papal - o ‘vos’ informal de seu espanhol argentino, assim como algumas palavras da gíria de Buenos Aires conhecida como lunfardo. Ao falar de pessoas pobres que vão para as cidades, por exemplo, menciona que elas perdem o contato direto com a terra e acabam com uma changa - ou seja, um emprego no setor da economia informal, sem qualquer tipo de proteção social.)
A entrevista marcou os dez anos do encontro dos bispos latino-americanos em Aparecida, no Brasil, para a chamada "quinta conferência" do CELAM, organismo da Igreja Católica. O editor-chefe do documento final foi o então arcebispo de Buenos Aires, e sua visão claramente embasa os primeiros dois documentos de ensinamentos do Papa Francisco, Evangelii Gaudium e Laudato Si'.
O encontro de Aparecida, em maio de 2007, ocorreu dois anos depois do conclave que elegeu Bento XVI, no qual - como foi revelado pelo diário secreto de um cardeal italiano, no final de 2005 - Jorge Mario Bergoglio teria conquistado muitos votos de cardeais pastorais e reformistas. Bergoglio, segundo o diário, havia implorado para que não votassem nele, mas em Joseph Ratzinger.
Na minha biografia de Francisco, O Grande Reformador, sugeri que era porque Bergoglio acreditava que a América Latina não estava preparada para assumir o manto da Igreja Católica universal. Não pude confirmar diretamente, mas o amigo e guia de Bergoglio, o grande historiador e intelectual uruguaio Alberto ("Tucho") Methol Ferré, disse, em entrevista a um jornal um pouco antes do conclave, que não era a hora certa para um papa latino-americano, e que Ratzinger era o melhor candidato. Pessoas próximas de Francisco me disseram que os dois concordaram nesse ponto.
Curiosamente, Francisco confirma a Reyes que compartilhava da visão de Methol e que, ao ler a entrevista antes de sair para o conclave, considerou a ideia excelente. Depois, falou com ainda mais veemência de sua convicção de que Ratzinger era o único candidato de verdade em 2005.
"Apesar da ação do Espírito Santo que atua no conclave, naquele momento da História, o único homem com o nível, a sabedoria e a experiência necessários para ser eleito era Ratzinger", diz Francisco a Reyes, acrescentando: "Caso contrário, corria-se o risco de eleger um ‘papa ameaçado’. E eleger um ‘papa ameaçado’ não vai, digamos, ao encontro do Evangelho".
Reyes não pergunta por que Francisco não achava que a América Latina estava preparada, mas a resposta parece clara: o encontro de Aparecida ainda não havia acontecido. O último encontro da Igreja havia sido em Santo Domingo, em 1992, em uma conferência amplamente considerada próxima de um fracasso, devido à pesada tentativa de Roma de controlá-la e à forte resistência do CELAM.
Francisco claramente concorda, pois diz a Reyes que Santo Domingo "não foi um fracasso, mas foi muito estressante", e acrescenta, mais tarde, que logo após as grandes conferências, em Medellín (1968) e Puebla (1979), "tudo pareceu trancado" em Santo Domingo.
O que esse encontro produziu, comentou, elogiando o papel do bispo jesuíta brasileiro Luciano Pedro Mendes de Almeida - que liderou uma rebelião contra o texto preparado por Roma, fato que não menciona -, foi "um documento, visto por alguns como uma ameaça, mas que não fechava as portas".
Em Aparecida, por outro lado, a Igreja latino-americana conseguiu maturar os frutos de Medellín e de Puebla. O papa sugere isso ao dizer que "parece que a intuição de Paulo VI para a América Latina foi suspensa, aguardando o amadurecimento do processo pós-conciliar".
Esse amadurecimento gerou frutos em Aparecida. Segundo Francisco, a maneira como o encontro aconteceu na Basílica, próximo dos fiéis, foi crucial para seu sucesso. Aparecida, afirma, "foi para as pessoas e com as pessoas".
Francisco considera Aparecida um trabalho em andamento, declarando firmemente que a Igreja precisa implementar o documento antes de pensar em uma sexta conferência geral do CELAM.
Em relação ao âmbito em que a Igreja da América Latina menos progrediu desde Aparecida, Francisco diz: "na conversão pastoral. Ainda está no meio do caminho".
("Conversão pastoral" é um termo-chave em Aparecida, bem como para o papado de Francisco. Refere-se a um movimento de manutenção a missão, e um foco pastoral nas próprias pessoas e suas necessidades, sem esconder-se na abstração e no legalismo.)
Ao ser perguntado sobre a razão disso, Francisco culpa o clericalismo, dizendo a Reyes que continua sendo difundido na América Latina, onde a vocação leiga na Igreja "tem que ser redescoberta, desenvolvida e adequadamente valorizada".
Como sempre, Francisco atribui as falhas da Igreja à distância. O surgimento do evangelicalismo e do pentecostalismo, por exemplo, deve-se ao fato de a Igreja não estar "próxima das pessoas. As pessoas procuram a Deus de uma forma religiosa e querem proximidade... O padre não é e não pode ser um chefe, mas sim um pastor".
Olhando pelo lado positivo, Francisco vê o que chama de "consciência" como a área de maior progresso desde Aparecida, "tanto consciência de pertença das pessoas" como "a consciência que dá uma capacidade de análise crítica da situação histórica que a América Latina está vivendo atualmente".
Ele critica as “visões interpretativas” anteriores da Igreja, que vêm do que ele chama de "Paris de 1968, ou de certas teologias alemãs extrapoladas”, que "não têm nada que ver com a interpretação da América Latina". A Igreja latino-americana, em outras palavras, está melhorando no discernimento de suas realidades, usando sua própria visão, e não a visão de fora.
Mas, apesar do sentimento crescente de individualidade da Igreja latino-americana, Francisco vê uma diminuição do compromisso do continente com a unidade, um sonho que ele - e o CELAM - tem alimentado há muito tempo.
O que ele descreve como "o verdadeiro projeto da América Latina", a pátria grande que era sonhada na independência, no início do século XIX, "não é mais visto", lamenta, em um certo momento. Ele atribui esse fato à corrupção, ao tráfico de drogas e ao que considera a subserviência do continente ao "sistema monetário internacional", que está minando a integração.
"Alguns dizem", acrescenta, "que o melhor que a América Latina pode fazer é uma saída estratégica, em vez de morrer lutando. Voltar às raízes, voltar a pensar sobre si mesma, esperando o momento de desabrochar e amadurecer de dentro para fora".
Como sempre acontece em entrevistas desse tipo, há lampejos que revelam a personalidade e a natureza do Papa, ou reforçam o que já conhecemos.
Um exemplo de sua famosa e incrível capacidade de lembrar nomes e detalhes surge quando fala do contexto de Laudato Si', ao citar um discurso feito pelo então presidente Juan Domingo Perón em 1950, mencionando o uso do plástico e a biodegradação.
Como se não bastasse, nomeia, ainda, dois ministros do segundo mandato de Perón, da saúde e da agricultura, elogiando suas conquistas na erradicação da tuberculose e da praga de gafanhotos.
Mas minha parte favorita do livro, que revela um pouco de sua natureza, é quando Reyes pergunta sobre o uso de tecnologia e o Papa confirma que o mais longe que já chegou nessa área foi comprar uma máquina de escrever eletrônica de segunda mão com uma memória, quando estudava na Alemanha.
"O que me salva é a intuição", acrescenta o Papa. "E digo isso com toda a sinceridade, porque é um dom".
(Papa Francisco: América Latina: Conversas com Hernán Reyes Alcaide (Latinoamérica: Conversaciones con Hernán Reyes Alcaide) foi publicado na Argentina pela Editora Planeta e estará à venda em outros países da América Latina nas próximas semanas.)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Um papa tranquilo reflete sobre a América Latina e diz que Ratzinger era o “único candidato” em 2005 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU