10 Novembro 2017
Duas seleções de documentos, diários, artigos, ensaios e relatos ligados à Revolução Russa trazem ao Brasil textos de alguns de seus principais personagens, políticos e escritores, além de manifestos e cartas de soldados e operários que se rebelaram e derrubaram o czar Nicolau II. Há inéditos de Bábel, Tsvetáieva, Búnin, Trotski, Martov e Kollontai. Organizadas por Daniel Aarão Reis, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e por Bruno Gomide, professor de literatura russa da Universidade de São Paulo (USP), elas são um artigo raro neste País.
A entrevista é de Marcelo Godoy, publicada por O Estado de S.Paulo, 28-10-2017.
Manifestos Vermelhos, o livro organizado por Reis (Penguin Companhia), parece ter como modelo não muito distante o volume Les Hommes de la Révolution, organizado pelo historiador Marc Ferro, publicado em 2011. Há diferenças entre os dois livros. A primeira é que Ferro não restringiu tanto sua seleção. Há muitos relatos de opositores aos vermelhos, como os do general Anton Denikin, um dos líderes dos exércitos brancos na guerra civil ou como o trecho da entrevista que o autor fez com Alexander Kerenski, o chefe do último governo provisório deposto pelos bolcheviques. O período abrangido por Ferro é também maior: das origens da revolução até o testamento de Lenin, em 1924.
Os manifestos na obra de Reis vão de 1912 a março de 1918. Predominam os bolcheviques – há exceções, como os textos do jornal Novaia Jizn, dirigido pelo escritor Máximo Gorki e escritos do menchevique internacionalista Julius Martov. Os internacionalistas eram parte da ala esquerda dos mencheviques. Não há, porém, anarquistas ou o Partido Socialista Revolucionário, com suas alas direita e esquerda – esta última formou um governo de coalizão com os bolcheviques após a derrubada do governo provisório na Revolução de Outubro.
A edição de Manifestos Vermelhos escolheu ainda textos de artistas, principalmente, os papéis do grupo futurista, assinados por poetas como Maiakovski e Khlebnikov. Há manifestos como Uma bofetada no gosto público em que os poetas reivindicam “ampliar o volume de palavras no léxico por seu arbítrio e labor (Novi-vocabulismo)”. A coletânea traz ainda artigos do jornal Pravda (bolchevique), textos de Lenin, atas de reuniões partidárias, cartas do front e decisões de operários das fábricas e três documentos fundamentais sobre a revolução: a ordem de serviço número 1 do Soviete de Petrogrado, que inicia a transferência do poder no interior do Exército e da Marinha para o conselho dos operários e soldados; o manifesto de abdicação do czar e a declaração do programa do primeiro governo provisório, dirigido pelo príncipe Lvov. Há ainda trechos do relatos do escritor e político menchevique Nikolai Sukhanov, sobre a Revolução de Fevereiro de 1917.
A apresentação de Reis (As Revoluções que Mudaram a História) é um texto esclarecedor. Reis enfrenta todas as questões espinhosas sobre 1917. Outubro, para o autor, “foi um golpe e uma revolução”. Golpe por ter sido “preparado e desferido sem acordo ou prévia autorização das instituições democráticas existentes”. E revolução “no sentido de que efetuou de fato profundas transformações sociais, econômicas, políticas e culturais”. Segue aqui Marc Ferro. O balanço que Reis faz da política dos partidários de Lenin diz que os “bolcheviques, de fomentadores da desagregação e da ruptura”, converteram-se, “uma vez no governo em força centrípeta, campeões de um processo de centralização autoritário da sociedade”. Mas é em seu livro A Revolução que Mudou o Mundo, também lançado pela Companhia das Letras, que Reis deixa explícita sua admiração por Ferro e por outro historiador de 1917: o inglês Alexander Rabinowitch. Em vez de uma realidade dual – de poder e de beligerantes – Reis caracteriza a realidade russa após o início da Revolução de 1917 por meio da multiplicidade de poderes e de guerras civis na primeira parte, para depois analisar o papel de camponeses e das mulheres na constituição do evento.
Escritores. O segundo livro – organizado por Gomide e publicado pela Boitempo – é Escritos de Outubro. A seleção cobre os anos 1917 e 1924 e traz autores como Búnin, Blok, Bábel, Bogdánov, Mandelstam, Gorki, Maiakovski, Tsvetáieva e Trotski. São trechos de diários, como os de Búnin e de Tsvetáieva, manifestos, artigos, cartas, reportagens, ensaios e textos políticos.
As reportagens de Bábel prenunciam as cenas que capturam “a reconciliação de elementos díspares” – expressão de Aurora Bernardini e Homero Freitas de Andrade – de O Exército de Cavalaria. Publicadas no Novaia Jizn, elas mostram a Petrogrado resplandecente, cheiram a pobreza e morte, e desordem quotidiana se une ao descaso burocrático. A cidade é disputada pelas visões do caos e da nova ordem. Entre os mortos desconhecidos e descalços trazidos ao necrotério, dois trazem um bilhete que os identifica: é um nobre e sua mulher. A sínteses das tendências antagônicas concilia a tradição com o novo e lembra Guedáli, o comerciante judeu de Jitomir que explica ao narrador – alter ego de Bábel – que disse “sim” à revolução. “Mas ela esconde-se de Guedáli e manda para frente somente a fuzilaria...” É a ordem revolucionária que surge do caos e da incompreensão.
O historiador Daniel Aarão Reis é hoje um dos principais intérpretes da revolução e dos revolucionários no Brasil. Sua pesquisa sobre o nascimento e os anos iniciais da Revolução Russa só encontra paralelo no país no trabalho sobre o colapso da União Soviética feito por Angelo Segrillo. Reis está lançando dois livros no ano do centenário do evento que fundou o século 20. Com os ensaios de A Revolução que Mudou o Mundo, o historiador leva sua análise de 1917 a 1921, período que ele caracteriza como de multiplicidade de poderes, guerras e revoluções. Mas o historiador não parou aí. Também lançou neste ano a coletânea Documentos Vermelhos, em que predominam os textos de revolucionários de 1917. Eis sua entrevista.
Em The Bolsheviks Come to Power, o historiador Alexander Rabinowitch mostra que a ideia de um partido fortemente disciplinado e constituído apenas por poucos e bons não corresponde à realidade do partido bolchevique em 1917 e, portanto, não serve para explicar a chegada do partido ao poder. Você adota a mesma visão em A Revolução que Mudou o Mundo. Mas em pouco tempo, esse mesmo partido, onde Lenin se viu em minoria passou a pouco a pouco a diminuir os espaços para a democracia interna. Esse processo é explicado somente pelo contexto da guerra civil ou por alguma causa social, política ou econômica?
A pesquisa de Rabinovitch mereceria ser sempre citada. Ele e Marc Ferro demonstraram, com base em fontes elucidativas, como, no ano de 1917, partidos e lideranças muito zigzaguearam em busca de caminhos. O próprio Lenin, considerado pela historiografia liberal como uma cabeça de "cimento armado", hesita e muda de opinião constantemente à luz das mudanças de conjuntura. Estes dois autores são referências fundamentais, há muito tempo, em tudo que escrevo sobre as revoluções russas.
Acredito que as guerras civis jogaram um papel fundamental na derrocada da democracia radical que marcou o ano de 1917. Eu chegaria a dizer que as guerras civis, e não Outubro, foram o verdadeiro berço do socialismo soviético e do socialismo autoritário, hegemônico ao longo do século XX. No entanto, as guerras civis não esgotam o assunto. É preciso adicionar, entre outros, mais dois outros fatores, que precisam ser melhor explorados: as tradições autoritárias e patriarcais da sociedade russa e também as concepções autoritárias de revolução que estavam presentes na consciência dos socialdemocratas e, em especial, dos bolcheviques.
Você considera que as ideias de multiplicidade de poderes (cacofonia) e de múltiplas guerras são centrais em seu A Revolução que Mudou o Mundo?
São realmente duas referências fundamentais. Os poderes múltiplos ou a multiplicidade dos poderes, questionando o lugar comum do "duplo poder" (governo provisório X soviete de Petrogrado), é uma formulação avançada por Marc Ferro, embora, a meu ver, ele não explore todas as potencialidades do fenômeno. Os múltiplos poderes assinalam a face democrática radical das revoluções russas. Já as guerras civis evidenciam a face autoritária do mesmo processo.
Ainda sobre as múltiplas guerras civis, embora descritas, não chegaram a alterar a visão da historiografia sobre o assunto. Continua-se a falar em guerra civil, no singular, como se a polarização entre vermelhos X brancos esgotasse o assunto. Subestima-se muito, a meu ver, o caráter autônomo, a especificidade e as consequências das guerras entre vermelhos e contra as nações não-russas.
Em The Bolsheviks in Power, Rabinonowitch mostra como o soviete de Petrogrado e do governo da província manteve ainda durante algum tempo sua autonomia em relação ao centro, inclusive na questão chave da coalizão com os SRs de esquerda. Em seu livro A Revolução que Mudou o Mundo você acentua a importância dessa ruptura para a relação dos bolcheviques com os camponeses. Pode-se dizer que essa é uma das causas para a adoção de soluções autoritárias para resolver os conflitos do regime com o campo?
Os bolcheviques romperam o pacto democrático de Outubro de diversas maneiras: fechando a Assembleia Constituinte; estatizando os comitês agrários e os sovietes urbanos; assinando o tratado de Brest-Litowski, desconhecendo o direito dos povos não-russos à independência, e, finalmente, mas não menos importante, adotando políticas de requisição forçada de grãos, violentando a autonomia dos comitês agrários. Cumpre observar que, ao formular esta última política, os bolcheviques tentaram fazer reviver seu velho programa agrário, que apostava na aliança com os assalariados agrícolas e os camponeses pobres. Ora, o pacto democrático de Outubro passava pela renúncia dos bolcheviques ao próprio programa e pela adoção, sem reservas, do programa do I Congresso dos Camponeses, realizado em maio de 1917, que previa a distribuição igualitária da terra a todos os camponeses, sem distinção.
A guerra civil entre brancos e vermelhos foi consequência de Outubro. Mas as guerras civis entre vermelhos e entre russos e não russos foram consequência da ruptura do pacto democrático firmado em Outubro. Em outras palavras: na medida em que se rompe o pacto, explodem estas últimas guerras civis. No contexto destas, o pacto se inviabiliza.
Como a violência na guerra civil condicional a violência posterior do regime – penso, sobretudo, após 1928-1929?
Como disse, a meu ver, as guerras civis são o verdadeiro berço do socialismo soviético e do socialismo autoritário russso.
Primo, a "brutalização das relações sociais", própria das guerras civis, condicionou um futuro marcado pelo verticalismo, pelo caráter expeditivo das decisões, pela hierarquia do mando, em uma palavra, pela ditadura política. Secundo, as guerras civis, e o autoritarismo consequente, potencializaram enormemente as tradições autoritárias e patriarcais da sociedade russa. Tertio, ao longo das guerras civis, com o rompimento do pacto com os camponeses, firmado em Outubro -e desrespeitado em maio e junho de 1918 - fortaleceram-se concepções que subestimavam a agência revolucionária camponesa. Tais concepções seriam retomadas, em ampla escala, pela revolução pelo alto de fins dos anos 1920, referida na sua pergunta.
Poderíamos ainda nos estender, mas nos bastaria um registro, muito simbólico: a imagem do militante bolchevique típico, em 1917, é a do revolucionário desleixado, roupas amarrotadas, boina de pano na cabeça, um militante político da cabeça aos pés. Já a do militante bolchevique em 1921, é a do revolucionário vestido com uniforme militar impecável, botas altas e lustradas, quepe militar na cabeça e revólver na cintura. Um militante militarizado da cabeça aos pés. Uma mutação cultural. Registre-se que Lenin foi um dos pouco a ignorar esta mutação.
Moshe Lewin (O século soviético) e Tamás Krausz dizem que os russos estavam diante na guerra civil diante de uma única alternativa: a ditadura bolchevique ou a ditadura branca. Parece-me que essa também é a sua conclusão no livro (Krausz afirmou que essa violência foi uma das causas do colapso soviético). É correto? Quais as consequências dessa violência para o regime?
Há nas conclusões destes autores um movimento que chamamos em História de "profecias do passado", ou seja, o que aconteceu tinha mesmo de acontecer. Tenho minhas dúvidas. Mas é difícil elaborar uma história contra-factual. A meu ver, se o pacto democrático de Outubro não tivesse sido rompido, em 1918, a revolução teria melhores chances de conservar seu caráter democrático. Por outro lado, em 1921, o atendimento, mesmo parcial, das reivindicações democráticas formuladas pela revolução de Kronstadt, atenuaria o caráter ditatorial do socialismo soviético. A Rússia não estava destinada à ditadura revolucionária. Havia outas portas abertas que foram fechadas em proveito da porta aberta à ditadura.
Corrija-me se eu estiver errado, mas creio não ter encontrado nenhum documento anarquista ou socialista revolucionário em Manifestos Vermelhos. O mesmo não ocorre com os mencheviques e mencheviques internacionalistas. Por quê?
A questão é pertinente e registra uma lacuna da antologia...Havia uma orientação editorial de traduzir os textos diretamente do russo. Quando, porém, consegui os originais russos destes textos, já era tarde para traduzi-los e editá-los. Numa próxima edição, se houver, ampliada, certamente deverão figurar tais documentos. Procurei "compensar" a lacuna, referindo-me aos SRs e aos anarquistas na Introdução da Antologia e nos ensaios de A Revolução que mudou o mundo.
Em que medida Les hommes de la révolution, organizado por Marc Ferro, serviu como inspiração para os Manifestos Vermelhos?
Como disse acima, Rabinovitch e Ferro (e eu acrescentaria M. Lewin, E. Carr e I. Berlin), são referências maiores para minhas reflexões sobre as revoluções russas.
Capa do livro 'A Revolução que Mudou o Mundo', de Daniel Aarão Reis (Foto: Divulgação/ Estadão)
A Revolução que Mudou o Mundo
Autor: Daniel Aarão Reis
Editora: Companhia das Letras
264 páginas
R$ 49,90
Capa do livro 'Manifestos Vermelhos', organizado por Daniel Aarão Reis (Foto: Divulgação/ Estadão)
Manifestos Vermelhos
Autor: Daniel Aarão Reis
Editora: Companhia das Letras/Penguin
488 páginas
R$ 34,90
Capa do livro 'Escritos de Outubro', organizado por Bruno Gomide (Foto: Divulgação/ Estadão)
Escritos de Outubro
Autor: Bruno Gomide
Editora: Boitempo
312 páginas
R$ 59
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