09 Outubro 2017
O padre americano Stephen Rossetti é um dos principais participantes do encontro ocorrido entre os dias 3 e 6 de outubro na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, sobre “Dignidade do menor no mundo digital”. Há décadas Rossetti envolve-se nos programas antiabuso sexual na Igreja e tem alguns conselhos concretos a dar.
A reportagem é de John L. Allen Jr. e Inés San Martín, publicada por Crux, 05-10-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Poucos na Igreja Católica, em todos os níveis e lugares, possuem uma experiência mais profunda dos escândalos de abuso sexual clerical e dos programas para promover a segurança dos menores do que o monsenhor americano Stephen Rossetti, ex-presidente do St. Luke’s Institute, em Silver Spring, no estado de Maryland.
Portanto quando Rossetti fala, as pessoas tendem a escutar. Ele faz parte do comitê científico organizador do congresso, ocorrido nos dias 3 e 6 de outubro na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma sobre “Dignidade do menor no mundo digital”. Rossetti tem uma mensagem clara sobre o que constituiria um compromisso sério por parte do Vaticano a ser tirado deste grande evento: ter pés no chão.
“É preciso pessoas trabalhando [em Roma] 24 horas por dia, sete dias por semana. Pessoas que estejam de fato colaborando com a Unicef, a ONU, a Interpol”, disse.
Segundo ele, um lugar lógico para uma equipe assim dedicada dentro do Vaticano seria a Secretaria de Estado, principal órgão vaticano no estabelecimento de novas políticas e porque, entre outras coisas, “ela é internacional”, ou seja, lida com a diplomacia mundial.
Rossetti falou com o Crux no último dia 4, durante o congresso na Gregoriana.
Sobre outros assuntos, ele disse também:
De onde surgiu a ideia de realizar este congresso, qual sua importância e o que o distingue?
Estou bastante animado com o congresso organizado pelo Centro de Proteção à Criança, da Universidade Gregoriana de Roma. Faço parte do conselho consultivo científico. Acho que uma das coisas que distingue o evento é que ele reuniu especialistas do mundo inteiro. Não é um evento interno da Igreja apenas, mas realmente um encontro em nível mundial de especialistas leigos do mundo todo que dizem: “Vamos todos nos reunir e colaborar”.
O que me anima é aquilo que tenho dito há anos: a Igreja Católica deveria ser um líder na tutela dos menores, e não tentar ser apenas mais um entre outros. Isso em decorrência da nossa obrigação, daquilo que Jesus falou sobre a importância dos menores e de que é melhor pendurar uma pedra de moinho no seu pescoço e ser lançado ao mar “do que escandalizar um desses pequeninos”. Nós temos a obrigação, estabelecida diretamente por Jesus, de cuidar, proteger as crianças. E por que é que não estamos sendo os líderes nesse fronte?
Este congresso é o primeiro caso de que tenho notícia, onde a Igreja agora se transforma em uma plataforma para reunir todos estes recursos e afirmar: “Vamos trabalhar juntos e resolver este problema”.
Sim, há uma obrigação evangélica pela proteção infantil, e mesmo não havendo escândalos de abuso sexual nós, ainda sim, estaríamos obrigados a dar exemplo nesse campo. Mas os escândalos acontecem. E para pessoas como você, que fazem parte da solução desde o começo, esta experiência, por mais dolorosa que seja, deve ser tomada como uma experiência de aprendizagem e se tornar uma força motivadora para ser exemplo ao mundo. Estou certo?
Sim. E também aqueles de nós que começaram a trabalhar com isso nas décadas de 80 e 90 não podem supor que as novas gerações vão entender o que aconteceu. Há uma safra inteiramente nova de bispos. Por exemplo, quando se revisou a Carta [de Dallas, documento da conferência episcopal dos EUA], que lida com a proteção dos menores e que iniciava com um pedido de desculpas, um dos prelados falou: “Por que eu deveria me desculpar, eu não fiz isso?” O que eu disse foi: “O que o senhor não compreende é de onde isso veio, isto veio de décadas e mais décadas de abuso. E nós, enquanto Igreja, precisamos nos desculpar”.
Portanto, há uma consciência comum sobre essa questão? E o que a torna tão difícil é que ela não é simplesmente uma ideia que colocamos em nossa cabeça; é uma mudança na maneira como vemos e fazemos as coisas; uma conversão.
O senhor mencionou o grupo de especialistas que se reuniram para este evento. É um grupo impressionante, e eu sempre achei que o papa, o Vaticano, Roma, possuem um poder único de convocação. Ninguém diz não a um convite que se percebe como tendo a bênção do papa, e aqui estamos vendo isso esta semana...
Estamos falamos da representação moral do Santo Padre. O que precisamos, e o Cardeal Pietro Parolin [número 2 no Vaticano] disse isso na terça-feira à noite em sua fala de abertura, é não só lidar com isso a partir dos pontos de vista da justiça e psicológico, como também a partir do ponto de vista moral. Ele disse: não nos esqueçamos do aspecto espiritual, moral, porque, em vários sentidos, o abuso infantil é um exemplo da perda de um compasso moral.
Então a Igreja pode ser uma base neutra para reunir as pessoas e pode também ajudar a garantir uma orientação moral.
Esta não é puramente uma questão psicológica ou de aplicação da lei?
Penso que um dos erros que cometemos é dizer: “Bem, isso acontece porque é apenas o caso de umas poucas pessoas más”. Em parte, sim, mas, na verdade, trata-se de um sintoma de uma sociedade que é pecadora. E estes tipos de comportamentos ultrajantes decorrem da pecaminosidade de todos nós.
Como alguém que compreende a situação atual, os números que ouvimos até agora no congresso o surpreenderam?
É sempre chocante toda vez que ouvimos estes números, e daí uns pensam: “Estes caras aí são alarmistas; a situação não está tão ruim assim”. Mas, sim, está.
Os números apresentados não foram reunidos por grupos de defesa, e sim pela Interpol?
Sim. Quando fiz o meu próprio estudo nos Estados Unidos, com pessoas que trabalham na Igreja, perguntei para elas quantas haviam sido abusadas sexualmente por alguém antes dos 18 anos. O número que encontrei era de aproximadamente 19%. E toda vez que divulgávamos estes dados, recebíamos a mesma resistência alarmista. A diferença agora é que este câncer oculto da sociedade e ao redor do mundo está começando a ser visto, notado, visível.
A outra coisa é que esse mal acontece em todo o mundo. Veja os participantes deste evento; eles vêm de todos os lugares.
Uma frase para capturar o que está acontecendo, pelo menos em parte, aqui seria: Lançando uma luz sobre a “dark web”?
Sim.
“Dark web” porque este termo é usado para dizer daquele imenso domínio da internet que é feito deliberadamente para ser anônimo e difícil de ser descoberto, permitindo com que as coisas aí sejam fétidas. E uma das estatísticas que vimos é que 80% do tráfico na dark web tem a ver com a pornografia infantil, seja na produção, distribuição, ou no consumo. Parte do que vocês estão tentando fazer aqui é permitir que as pessoas percebam este mal e tenham as ferramentas para abordá-lo. Certo?
Sim. Eu diria que uma das coisas que começo a perceber é que temos os nossos recursos enquanto líderes, civis e eclesiásticos; fazemos o que podemos. Mas, no fim, será preciso uma mudança de consciência, do mundo, das pessoas, e isso terá que começar com as famílias. Uma antiga estatística trazida aqui, e que é bem conhecida, é que 80% dos casos de abuso acontecem dentro do círculo de confiança: membros familiares, amigos próximos da família, vizinhos.
Portanto, onde temos de começar a prevenção é na família. Os pais precisam saber, os familiares precisam saber, nós precisamos conscientizar as pessoas dentro das famílias.
Os participantes deste congresso serão recebidos pelo Papa Francisco na sexta-feira, e nos foi contado que a ideia é presentear o Santo Padre com um plano de ação. Tem como nos dar uma ideia de como poderá ser este plano de ação?
Se fizer isto estarei apenas adivinhando... Mas acho que vão falar de colaboração, de concentrar os recursos, de trabalhar em conjunto em nível internacional. Eu espero que uma das coisas do plano seja pedir à Igreja para que seja nossa parceira, que, além da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, ela tenha na verdade alguém trabalhando dentro do Vaticano para esta colaboração internacional.
As pessoas que trabalham na Pontifícia Comissão têm empregos em tempo integral, e apenas se reúnem duas vezes ao ano para assessorar o Santo Padre...
Está dizendo que precisamos de pessoas que atuem nela em tempo integral?
É preciso pessoas trabalhando aí 24 horas por dia, sete dias por semana. Pessoas que estejam de fato colaborando com a Unicef, a ONU, a Interpol.
Acha que isso pode acontecer dentro da Comissão?
Imagino sendo um outro departamento. Obviamente estariam trabalhando com a Comissão.
Na Secretaria de Estado, por exemplo?
Quem sabe? Esse seria o lugar óbvio, já que é um ambiente internacional.
Toda vez que a Igreja ergue a voz para falar da segurança dos menores, há os que dizem: “Só ouviremos vocês quando tiveram colocado a própria casa em ordem”. O exemplo mais recente disso são os desdobramentos que acontecem em paralelo a este congresso, porque estamos aqui, falando da dignidade das crianças num mundo digital, enquanto o Vaticano lida com o seu próprio caso de pornografia infantil, na forma de um empregado da embaixada vaticana nos Estados Unidos, funcionário chamado de volta depois que se anunciou que investigadores americanos o haviam sinalizado como um sujeito possível em uma investigação sobre, exatamente, pornografia infantil, e desde então o Canadá emitiu uma ordem de prisão contra o Monsenhor Capella. O que podemos esperar que a Santa Sé faça neste caso?
Em meu limitado italiano, eu diria “sono d’accordo” [estou de acordo]. Não tenho dúvidas. Sei que estão investigando, mas eles precisam dizer alguma coisa. Especialmente nós americanos, nós esperamos algum tipo de declaração. Não esperamos que o Vaticano fale dos detalhes, pois se está investigando ainda. Mas queremos saber: “Sim, está sendo investigado, sim, iremos processar este caso de maneira apropriada, e sim estamos levando o caso a sério”.
E acreditamos que estas coisas sejam verdadeiras; apenas estamos frustrados que o Vaticano não venha a público dizê-las...
Sim, exatamente. Um dos desafios para nós enquanto Igreja é que tendemos a agir com mais lentidão no compartilhamento de informações.
O surpreendente neste caso é que o paralelo seria a situação com o falecido arcebispo polonês Józef Wesołowski, ex-núncio apostólico na República Dominicana. Neste caso, quando ele foi chamado de volta a Roma, todas estas coisas foram ditas, de forma que é um mistério o mesmo não acontecer desta vez...
O Vaticano é uma organização bastante grande, com um número enorme de departamentos, e há a questão de quem é o encarregado...
Em última instância, o senhor acha que a coisa certa será feita, mas que o fluxo de informação deveria ser melhor?
Sim. A confiança que tenho é a de que, segundo a minha compreensão, o caso está sendo investigado. Eu diria que a pornografia infantil é reconhecida com a mesma seriedade com que se reconhece o assédio a menores. Isso me deixa com a esperança de que não diremos: “Ah, são apenas fotos”. Não. Trata-se de um crime grave e a pessoa receberá a mesma punição como se tivesse, de fato, abusado alguém.
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O Vaticano precisa ter pés no chão para promover a segurança dos menores, diz especialista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU