05 Outubro 2017
Antes de se tornar uma das mais importantes vozes críticas da esquerda mundial, o filósofo italiano Antonio Negri, de 84 anos, passou quatro anos e meio preso sob a acusação de participar da morte do líder democrata-cristã Aldo Moro. Eram o fim dos anos 1970, anos de chumbo na Itália. Saiu da cadeia ao ser eleito deputado. Professor de filosofia do Direito e Teoria do Estado na Universidade de Pádua e depois na Universidade de Paris VIII e no Collège International de Philosophie, Negri conhece a realidade brasileira - esteve nessa semana em São Paulo participando de seminário 1917, o Ano que Abalou o Mundo e do lançamento do livro homônimo, organizados pela editora Boitempo. Aqui, ele fala sobre Lula, de Antonio Palocci, o futuro do PT e da esquerda no ano do centenário da revolução russa.
A entrevista é de Marcelo Godoy, publicada por O Estado de S. Paulo, 01-10-2017 .
Após cem anos da revolução, qual é o futuro da esquerda socialista. Seria o do PD italiano, seria o de Jean-Luc Mélenchon, na França, ou do Podemos espanhol?
Parece-me que essa esquerda se divide em coisas diversas. O PD italiano é hoje uma força social-democrática clássica, como o SPD (partido socialdemocrata) alemão. Podemos é uma experiência completamente diversa, de populismo de esquerda, organizado com base em uma movimento que balançou a ordem tradicional espanhola. Mélenchon é um outro tipo de populismo que se apresenta na França à esquerda, em relação a Macron (Emmanuel Macron, presidente francês), que está na direita. O confronto aqui opõe Mélenchon a Macron, e não este com os fascistas (referência ao partido de extrema-direita Front National, de Marine Le Pen).
Não creio que todos eles tenham um destino comum. Quem deve ter um destino comum é a social-democracia, que está indubitavelmente em uma crise extrema, de derrotas sucessivas, que não se resolvem nunca, pois perdeu a própria identidade. A derrota do partido social-democrata alemão é um clássico. Todos esperavam um debate entre Merkel (primeira-ministra conservadora alemã, Angela Merkel) e o presidente Schulz (Martin Schulz, líder do partido social-democrata), mas o debate mostrou que as duas posições se sobrepunham, demonstrando que, para a social-democracia, há um espaço reduzido na Europa hoje. Essa perda de identidade começou nos anos 1980 e precedeu a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética. Há crise, declínio e uma perda de identidade radical. Mas isso não afeta Podemos e Mélenchon, que são fenômenos que nascem da crise da social-democracia.
Podemos e Mélenchon criaram novas identidades?
Não gosto muito dessa palavra. Identidade é algo muito complexo e difícil de se construir. Mas novos posicionamentos no espectro político eu diria que sim. Podemos fez isso de uma maneira mais sólida, sobretudo porque Podemos não é só de Madri, mas também de Barcelona. São várias forças consolidadas em um processo de transformação da esquerda.
Se a luta de classe e as organizações revolucionárias são coisas do passado, qual seria o papel do trabalho na política que pode ser chamada de esquerda?
Mas eu não penso que a luta de classe tenha terminado. A luta de classe é feita sempre por duas partes. Há uma classe burguesa e outra proletária. Quando se diz que a luta de classes acabou, entende-se que terminou a luta de classes proletária. Mas a burguesa continua. O neoliberalismo é uma forma de luta de classes feita e conduzida pela burguesia. E que é hegemônica hoje em dia, sem dúvida. Que a luta de classe tenha acabado me parece estranho. Também o constitucionalismo deveria acabar, porque o constitucionalismo nasce do quê? Nasce de uma luta por meio da qual se chega a um acordo. A Carta Magna inglesa (assinada pelo rei João da Inglaterra, em 1215, após a revolta dos barões), fundamento do constitucionalismo, é um fenômeno de luta de classe. Portanto é preciso prestar atenção antes de dizer que a luta de classes acabou, até porque quando a luta de classe da parte da burguesia se torna tão dura e feroz e, quando essa hegemonia tenta se impor de forma forte, a resistência se torna inevitável.
A exceção de Grécia e Portugal, a imensa maioria dos governos europeus estão nas mãos de conservadores. Ao mesmo tempo, eles conheceram um crescimento da extrema direita. Esse crescimento seria mais uma reação à globalização?
O crescimento da extrema-direita é resultado da crise que começou em 2008, que é uma crise econômica global. Pode-se dizer que é uma consequência da globalização também, mas o problema é essencialmente europeu, pois a política central europeia, a de Bruxelas, acompanhada pela liderança conservadora do liberalismo alemão, impulsionou a crise forma muito grave. Não houve nenhuma intervenção keynesiana, não houve nenhum nenhuma tentativa de diminuir a crise por meio de uma política de consumo ou de investimentos. Houve apenas uma luta entre posições liberais conservadoras e governos que não eram de esquerda, mas centristas ligados a uma política keynesiana. A resistência hoje na Europa está posicionada em uma linha keynesiana. A esquerda é keynesiana hoje na Europa.
Nos anos 2000, a ação dos movimentos antiglobalização foi pensada como uma forma de se opor aos efeitos dessa política. Após quase 20 anos, foi a extrema direita que ganhou consenso e voto fazendo discurso contra o establishment. Por que a extrema direita recebeu os votos de quem está insatisfeito com a globalização?
Parece-me que há uma crise, uma incapacidade de resistir à crise. O número de pobres e miseráveis cresce de forma absurda em diversos países, não há políticas que façam frente a isso. Os partidos socialistas estão em crise . É claro que somente a demagogia da direita nacional, essencialmente nacional, e, portanto, contra a globalização tem uma resposta, que é uma resposta demagógica, pois não tem política econômica, não tem nada atrás de si, pois a política econômica deveria ser de grande intervenção para aliviar a pobreza, e a extrema direita não o fará jamais. São políticas demagógicas que são feitas na ausência de uma esquerda.
Em 2000, as pessoas ligadas ao movimento de Chiapas, no México, pensavam que a forma da resistência ao poder passava pela articulação em rede. Esse tipo de organização hoje em dia se tornou uma das formas mais usadas pela direita, que se reorganizou com esse instrumento...
Mas eu não creio que isso seja assim na Europa ou nos Estados Unidos, malgrado a força que a direita de Trump teve neste ano por meio de redes. Mas também ali os movimentos de esquerda são fortes, como os que lutam contra o racismo. Na Europa, a grande resistência de esquerda fora dos partidos socialistas é uma resistência que se organiza há anos sob a forma de redes. A direita aprendeu a utilizá-las assim como a esquerda. Não existe um anjo celeste que atribui à direita uma capacidade maior do que a esquerda.
A política de Trump transforma a política em guerra?
É fora de dúvida que a direita adquiriu uma forma belicosa. O discurso de Trump é um discurso de luta de classe, que se esconde por trás de uma terrível demagogia. Uma demagogia nacional que, entre outras coisas, está destruindo a globalização. E esse é o nosso problema. Hoje estamos diante de pessoas que - à direita ou à esquerda -, pensavam que o mercado mundial livre seria uma coisa boa, buscam se defender da China.
Para Trump a guerra não seria mais a ultima ratio?
Digamos que se ele pensa dessa maneira é um louco. Eu não seria o único a dizer que ele é um louco. Muitos democratas dizem o mesmo e também muitos conservadores. Obviamente ele não percebe o que significa usar de forma maciça a energia atômica.
Isso não é uma consequência de que é sempre mais difícil distinguir as ações de guerra das ações policiais?
De fato, escrevi isso em Multidão. Ali mostro claramente no que se tornou a guerra. Trump é o efeito de um certo capitalismo duro e absolutamente decidido a vencer sua luta de classe e de uma demagogia vencedora sobre o plano dos valores nacionais.
A paz ainda é uma condição para a liberdade da multidão?
A paz é sempre uma condição para a liberdade. Para Lenin também era. A paz é fundamental. É sobre ela que se pode construir um regime democrático. A guerra é sempre uma destruição do regime democrático. Não é coincidência que os militares em vários países não fizeram a guerra, mas negaram a democracia.
O historiador Tamás Krauzs diz que os mortos durante os grandes expurgos stalinistas tiveram um papel importante na queda do regime soviético. A esquerda já acertou suas contas com seu passado?
A esquerda da qual falávamos acertou essa conta há muito anos. A esquerda alemã fez isso em 1959, em Bad-Godesberg (refere-se ao congresso em que o SPD alemão abandonou o marxismo). A esquerda italiana, o que era o Partido Comunista Italiano, tornou-se um partido de centro, o PD. Veja a que ponto a derrota soviética foi absorvida e não representa hoje nem mesmo um trauma. Mas existe ainda como trauma na reconstrução de movimentos sociais, onde existe a vontade de evitar os impasses soviéticos, sem esquecer que a revolução soviética é uma coisa que se deve sempre ser recordada, pois sem ela não haveria o welfare na Europa, não teríamos o keynesianismo. Teríamos somente uma burguesia má e feroz, como hoje. Houve um século que foi coberto pela revolução de outubro, que bateu os nazistas e libertou a Europa, pela resistência comunista em cada um dos países. Esse é o trauma verdadeiro que procuramos negar.
Quando o senhor fala de Eric Hobsbawn e de seu século breve, o senhor diz que esse século tornou-se bastante longo, no sentido que é possível fazer nas praças novos formas de organização popular e que a autonomia produtivo do trabalho cognitivo traga uma novo projeto de transformação social?
Sobre isso não tenho dúvida. Exatamente como fez no passado Lula, representante de uma classe operária metalúrgica com características sociológicas precisas. Hoje devemos esperar que a retomada seja feita pelos novos operários. E quem são os novos operários? São essa classe de trabalhadores precários, de capital intelectual fundamentalmente, que hoje em dia ocupa o mercado. O mercado do trabalho é feito por essas novas pessoas desde o fim dos anos 1980.
A cooperação é central na vida desses trabalhadores, mas essa cooperação seria uma forma de obter consenso?
Não. É uma coisa diferente. É uma cooperação no trabalho.
Não se trata pois de consenso. Seria, portanto, diferente essa cooperação do ação comunicativa do filósofo Jurgen Habermas?
A ação comunicativa de Habermas é uma ação neutra, que se abre sobre a sociedade pública e não tem qualificação de nenhum gênero. A cooperação dos trabalhadores hoje é um fato no qual se verifica antes de tudo a autonomia dessas cooperação . Esse é um termo absolutamente fundamental. Um operário metalúrgico, um operário como Lula, era um operário que tinha necessidade do patrão para se organizar e se reunir com outros. Hoje o operário, chamemo-lo de novo trabalhador, não o chamemos de operário para não confundir as coisas. O novo trabalhador é alguém que se organiza socialmente para produzir, e o tipo de produção que ele faz é um tipo de produção que é de mercadoria, mas sobretudo de subjetividade. Aqui lembro de Foucault (Michael Foucault, filósofo francês): um dos elementos absolutamente centrais na teoria foucaultiana é o fato que hoje se trabalha na construção cooperativa de subjetividade.
Já que falamos de Lula, o que as bruxas de Macbeth lhe revelam sobre o futuro de Lula?
Não sei se suicídio ou uma tentativa desesperada de luta. Eu penso que Lula seja o maior homem político da América Latina na segunda metade do século 20. Ninguém é comparável a Lula. Foi alguém que conseguiu construir nesse país continente uma força popular necessária aos governos.
Mas e agora?
Não se governa sem Lula. Não se governa sem o que Lula deixou. Ele conseguiu pôr o Brasil na cena mundial, em ruptura com os americanos. Essas são coisas fundamentais que Lula fez e para as quais eu tiro o chapéu. Não creio que o capitalismo brasileiro tenha uma autonomia e uma capacidade inventiva para conseguir manter a herança de realidade popular que Lula trouxe ao Brasil. Destruir sua figura é um absurdo.
É o que está acontecendo?
Sim, eu sei que está acontecendo. Porque a direita não tem cérebro. Está destruindo a única coisa que ela devia salvar.
Mas o problema não é judiciário? O problema não é que Lula recebeu propinas e deve pagar por isso?
Eu não sou contrário a isso (que a Justiça puna os corruptos), desde que isso valha para todos. Se a Justiça bate em alguém é certíssimo, porém deve atingir a todos da mesma maneira. Eu não sei se a relação entre Justiça, jornais e TVs é igual para Lula e para os outros. Esse é um problema que devemos nos pôr se vivêssemos em uma democracia ideal.
A política feita pelo PT de governar o País se exauriu?
Sim. Eu creio que sim. E creio que no Brasil existe uma situação dramática de todos os pontos de vista.
Por que, professor?
Porque não há uma direita que seja capaz de interiorizar o passado desse país, isto é, essa democracia que se quer e não se quer, e que Lula a interpretou e a fez viver de um ponto de vista popular, com a adesão das grandes massas à democracia.
O ex-capitão do Exército e deputado Jair Bolsonaro, um ex-paraquedista, segundo as últimas pesquisas, deve ser bem votado na próxima eleição presidencial. Quais seriam as causas desse fenômeno, o crescimento da extrema-direita?
Isso acontece porque, à direita, falta uma posição política capaz de se opor, porque para fazer essa operação, com toda probabilidade, seria necessário aceitar que passamos 20 anos de hegemonia lulista. A direita sabe digerir e engordar, e os bons capitalistas sabem que precisam da força de trabalho. O capitalismo precisa de duas coisas: dar o trabalho e receber do trabalho.
Isso seria reflexo da onda na Europa e nos Estados Unidos?
Provavelmente não. Creio que o fenômeno brasileiro seja diferente. Existe uma queda geral de regimes de esquerda na América Latina, com fenômenos bastante contraditórios, como nos países andinos, como essa grande chaga que é a Venezuela. Mas creio que tudo isso tenha uma espécie de autonomia. A América Latina não sofre seguramente influência da situação europeia, muito fechada em si mesma, no problema da construção europeia e de sua colocação global.
O senhor conhece os programa sociais dos governos petistas. O senhor acha que eles não foram suficientes para criar uma nova identidade para a esquerda?
O governo Lula ficou muito limitado por suas contradição, não há dúvida. Ele errou em duas coisas fundamentais. A primeira é a reforma constitucional (ele se refere à reforma política). Como se pode aceitar uma Constituição na qual a corrupção é necessária para fazer qualquer lei? Esse é um erro extraordinário. A justificação de Lula é: "Estávamos há muito pouco tempo em uma situação democrática para nos dar o luxo de reformar a Constituição".
A segunda é o fato de não ter organizado os instrumentos midiáticos e de cultura popular que fossem à altura da estrutura esmagadora da grande produção midiática da burguesia. Esses são dois erros que eu aponto às pessoas do PT. Esses são erros que, infelizmente, devem ser pagos. Não é possível ter uma Constituição desse tipo, na qual cada igreja protestante elege o seu deputado, na qual se pode ter um presidente com 70% dos votos nacionais e não ter uma maioria parlamentar. São coisas que são incompreensíveis para qualquer constitucionalista europeu desde o século 19.
É enlouquecedor?
Sim, é uma loucura. Isso precisava mudar.
A experiência do PT deve ser reformada ou arquivada?
Eu não sei. Sei que na Europa, a corrupção se conhece desde sempre. Sou professor de direito constitucional. Estudei a histórica constitucional de todo o mundo. A corrupção existe em todo o mundo. Nos Estados Unidos, o lobby constituiu-se em poder. Quando me encontro diante da miséria, não porque a quantidade é pequena, mas porque os personagens são míseros - e também os juízes -, vejo que se trata de uma comédia. De uma trágica comédia, cujos personagens são figuras da commedia dell'arte (teatro popular surgido na Itália renascentista). Como professor de direito constitucional, eu me pergunto: Como é possível que alguém, para governar um país, precise ter dinheiro para pagar essa quadrilha de deputados.
Parece que há um paralelo entre o que foi descoberto aqui e o que havia na Itália durante a operação Mãos Limpas?
É profundamente diferente, porque os italianos eram ladrões. Aqui existem marionetes. Na Itália havia aqueles que pagavam os partidos. Os italianos eram ladrões. Aqui são marionetes. E, depois, de fato, consegue-se um apartamento... Ora, por favor, me poupe.
O senhor veio a São Paulo para um seminário sobre os 100 anos da Revolução Russa. O senhor diria que Lenin ainda conta em nossos dias, mas qual Lenin, aquele conspirativo de 'O que Fazer?' ou aquele considerado libertário de 'Estado e Revolução'?
Eu creio que ainda aquele de 'O que fazer?' não seja um Lenin de se jogar fora. A concepção de partido que ele exprime em O que fazer? é uma concepção muito diferente daquele que depois foi o partido bolchevique e os partidos da 3a. Internacional. A concepção que Lenin tinha em O que fazer? era a construção de uma organização sob a base do tipo de fábrica que existia. O partido devia reproduzir a fábrica e os operários esperavam isso. Hoje, evidentemente, Lenin de O que fazer?, se o tomamos do ponto de vista da fábrica ele se tornou nada. Mas se o analisamos do ponto de vista que hoje cada organização política deve respeitar a composição do trabalho, desse ponto de vista também O que fazer? tem o seu valor. E também a ideia que a liberdade pode existir somente quando o Estado não existe mais, bem essa é uma coisa que eu penso que não podemos deixar somente para os anarquistas, em suma, como desejo. Eu digo desejo, não utopia (risos).
O senhor falou muito em seu livro Multidão...
Agora saiu outro, Assembly (sua nova parceria com o cientista político americano Michael Hardt, Oxford University Press), faz um mês. Ali começo um discurso sobre organização sobre os modelos que nasceram a partir de 2011.
Em seu livro Multidão o senhor usa os Federalist Papers de James Madison. Como aqueles que desejam construir novas estruturas democráticas devem usar as lições de Madison?
Creio que a coisa absolutamente fundamental em O Federalista, que eu estudei em meu livro O Poder Constituinte, é a teoria do equilíbrio (pesos e contrapesos). Essa é a coisa fundamental. Creio que hoje, a estrutura do constitucionalismo, superando a figura dos partidos em parte, poderia reconquistar os novos contrapoderes. O grande problema da democracia é sempre aquele de entender quem são os sujeitos. Esse é o ensinamento de Madison: quais são os check que permitam equilibrar as coisas. O único medo - terrível medo - é o desequilíbrio. E aqui retornamos ao problema da direita brasileira, que quer reduzir a experiência de Lula a um sonho macbetiano.
Lula foi condenado a 9 anos de prisão...
E eu fui condenado a 28 anos.
O que muda para Lula?
Muda que ele não poderá fazer política. E que, provavelmente, também acabará na prisão.
E para a esquerda?
A esquerda ficará sem um líder essencial e fundamental.
Há pouco tempo um instituto ligado ao PT e constatou que boa parte dos trabalhadores em São Paulo queriam apenas se tornar empresários, ter um negócio...
Sei o que você quer dizer. Creio que a pressão hoje desses ideais do empreendedorismo seja absolutamente falsa, ilusório e mistificador. Vivo em uma região, em Veneza, em que na primeira metade dos anos 1970 aconteceu esse primeiro ataque neoliberal que destruiu fábricas grandes, onde a luta operária era muito forte, como no ABC paulista ou mais. As fábricas foram praticamente destruídas. E se deu um grande impulso ao empreendedorismo individual e com base nisso cresceram enormes sistemas industriais, como Benetton. Onde? A partir de casa. Cada um era empresário em casa. Essa ideia empresarial resistiu até o momento que chegou a crise. Chegou ao ponto que a ilusão dessa nova democracia industrial individualista (se mostrou) ilusória.
E como a esquerda pode enfrentar essa ilusão?
Que é isso, a esquerda nem mesmo compreendeu isso. A grande crise da esquerda não está no fato de que União Soviética acabou ou na globalização. A grande crise da esquerda está no fato de que ela não compreende como mobilizar o trabalho. A grande crise da esquerda está no fato de que crê até mesmo que as pessoas devem se tornar empresárias de si mesmo. Não. É a multidão que se torna empreendedora. É a metrópole que produz. São as relações que produzem. É o fato de reunir cultura e capacidade técnica, grandes escolas, capacidades de comunicação entre as pessoas e modificações dos corpos e de cérebros. E esse é o hoje o problema da esquerda. A esquerda, enquanto não conseguir fazer isso, deverá sempre sofrer a ilusão de que existem indivíduos que, com muito esforço, colocam para trabalhar a mulher a mãe e o filho e conseguem se tornar empresários.
Professor, para concluir, nesta semana Antonio Palocci, que foi ministro da Fazenda de Lula, fez acusações graves em uma carta ao PT. Palocci está na cadeia há um ano. A defesa de Lula diz que ele confessa para buscar benefícios legais. Dizem que o colocaram na cadeia para confessam..
Eu creio que isso é verdade. As pessoas são colocadas na cadeia, em particular em prisão preventiva, para que falem e cedam. Isso me parece que seja uma coisa que qualquer procurador ou juiz sabe que se faz assim. Se faz também na China. Somente nós duvidamos que as coisas sejam diferentes. Eu fui colocado na cadeia sem processo por quatro anos e meio. Quatro anos e meio! Obrigaram-me que eu fosse eleito deputado (pelo Partido Radical Italiano). Saí da prisão por causa disso. Se não, teria ficado oito anos, pois a lei permitia 12 anos de prisão preventiva. Tive sorte de sair porque fui eleito deputado. Entende? Palocci é, segundo me contaram, alguém que podia ser como Sansão, que é preciso cortar-lhe os cabelos para que se torne prisioneiro dos filisteus.
Mas não é possível que mesmo alguém na prisão fale a verdade?
É possível tudo. Mas digo que na prisão não estão as condições melhores para se dizer a verdade. Eu lhe asseguro. Dou minha garantia: quatro anos e meio de cárcere preventivo.
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‘Como é possível governar pagando uma quadrilha?’, questiona Antonio Negri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU