05 Setembro 2017
Rhoda não esqueceria a sua primeira vez. Ela tinha 15 anos. A pele muito negra se confundia na escuridão de uma sala sem janelas. Os cabelos amarrados em densas trancinhas. O coração que palpita. “Estavam em cinco, quatro a prenderam no chão, enquanto ela gritava. O quinto, ‘o bastardo de Zuara’, foi o seu primeiro homem”, conta uma companheira, cristã como ela, em fuga da Nigéria dos milicianos Boko Haram. “Depois, como sempre, eles se revezaram.”
A reportagem é de Nello Scavo, publicada por Avvenire, 03-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Rhoda era muito bonita. “Por isso, mesmo que ela tivesse pago, nunca a deixavam partir.” O buraco negro das prisões clandestinas tem números do Terceiro Reich. De acordo com fontes locais da Organização Internacional dos Migrantes, são cerca de 400 mil os refugiados “contabilizados” pelas autoridades de Trípoli, mas os que permanecem presos no país, de acordo com estimativas oficiosas confirmadas também por fontes de inteligência italianas, estariam entre os 800 mil e um milhão.
No entanto, a OIM informa que os centros de detenção sob o controle do governo e dos 14 prefeitos que concordaram com a Itália para frear as partidas são cerca de 30, e, no momento, estariam trancadas neles não mais do que 15 mil pessoas. Onde foram engolidos os outros?
Em Zuara, encontramos algumas dezenas deles. Seres humanos em armadilhas sem saída. É aqui que Rhoda morreu depois das primeiras noites à baila entre os caprichos dos traficantes. Foi há um ano. Dizem que ela se matou enquanto todos dormiam. Primeiro, ela procurava algo para se desfigurar. Ácido, alvejante ou fogo. Até quando – conta a amiga – encontrou a lâmina de uma navalha usada pelos migrantes homens.
Entre os vilarejos e os campos petrolíferos, quem lidera é Fathi al-Far, comandante da brigada al-Nasr, forte aliado do primeiro-ministro al-Sarraj, reconhecido pela comunidade internacional. Al-Far, antigo coronel do Exército de Gaddafi, de acordo com os investigadores da ONU, “abriu um centro de detenção”, justamente entre Tripoli e Zuara. “O centro – dizem as Nações Unidas – é usado para vender os migrantes aos contrabandistas.”
Chegamos a Zuara através da fronteira tunisiana. Vigiada o suficiente para evitar a passagem de armas, mas não da nafta de contrabando, da qual estão sedentos em Túnis. Quando Karim puxa com força a alavanca do câmbio das marchas do velho caminhão-tanque italiano, a tensão aumenta à medida que a velocidade cai. É de madrugada. Serão necessárias algumas horas antes que os oficiais da alfândega nos deixem partir.
O casario dos negros, ao lado da estrada que acompanha o mar, está escondido por um muro perimetral de quatro metros de altura, feito de blocos de tufo amarelos apoiados um sobre o outro, sem sequer uma camada de cimento. A fronteira está a menos de uma hora de distância. A cidade, logo atrás das últimas curvas, entre areia, terra bruta e arbustos.
A prisão é um retângulo semelhante a um campo de futebol. Entreveem-se os postes de alguns poços de petróleo desmontados. Dentro, de um lado, há “les chambres”, como os tunisianos chamam os alojamentos fedorentos de migrantes e, de outro, a praça com alguns enormes tanques enferrujados que assam ao sol. É aqui que é guardada a nafta que será vendida aos contrabandistas. Karim, que vem ao nosso encontro algumas vezes por semana, já tem a permissão para espreitar no interior.
Os migrantes são escravizados. Em turnos, trabalham no pátio dos caminhões-tanque. De mãos nuas, arrastam os funis que cospem combustível. É nesses momentos, quando a confusão é tão grande quanto a pressa de abastecer os distribuidores das províncias tunisianas, que Karim consegue falar com os “pauvres diables”, coletando as histórias dos “pobres diabos” que fazem com que ele maldiga o dia em que optou por renunciar à “clandestinidade” na Itália pela ilegalidade na sua pátria. “Eu não posso fazer nada, mas rezo todos os dias a Alá por eles”, diz.
A blasfema jihad dos estupradores líbios se realiza todas as noites, depois que os caminhões-tanque dos contrabandistas regressam. “Allah Akbar”, gritam, enquanto torturam os homens e atacam as mulheres. Ao lado da vítima, colocam um telefone, enquanto batem ainda mais forte, de modo que as vítimas implorem piedade e mais dinheiro dos parentes que ficaram nos vilarejos.
No dia 2 de agosto, referindo-se à Comissão Schengen, o diretor do Escritório de Coordenação para o Mediterrâneo da OIM, Federico Soda, disse que as condições dos complexos “governamentais” não deixam alternativa: “Deveriam ser fechados imediatamente”.
A agência da ONU tivera acesso apenas a cerca de 20 estruturas, “razão pela qual imaginamos que as condições dos centros que não pudemos ver sejam ainda piores”. Basta isso para imaginar o que são os campos de concentração que escapam de qualquer controle esporádico.
Também na sexta-feira, para a festa do Hajd, o Grande Dia do Sacrifício, “o bastardo de Zuara”, voltou a desonrar o Islã. Dizem que ele é militar de dia e traficante de noite. “É ele quem comanda o campo de concentração”, explica a amiga de Rhoda. Ela tem os cabelos desarrumados e modos rudes. Encontramo-la às escondidas, enquanto varre a lama de areia e petróleo. “Eu quero ser feia, cada dia mais feia. Assim, vão parar o que estão fazendo.”
Há algumas semanas, dizem os traficantes de gasolina, só há pessoas que entram, e ninguém que vai embora com os botes. Uma situação explosiva, que faz com que os traficantes sejam ainda piores, talvez pelo medo de não conseguir enfrentar sozinhos uma revolta de centenas de pessoas.
As janelas dos alojamentos dos migrantes estão cobertas com cortinas que impedem de ver bem dentro. O zumbido, nenhuma barreira pode pará-lo. Ouve-se o choro de um bebê. Depois, por um momento, o pano esfarrapado que serve de tenda é removido. Observamos um grupo indistinto de seres humanos acocorados no chão. Homens e mulheres reunidos em grupos de 30 ou 40 por sala. Cada “ambiente” não supera os 50 metros quadrados. De repente, os olhares de milhares de olhos sobem até a janela. E nos olham. Qualquer gesto, uma saudação, um sorriso, uma careta de raiva ou de compaixão soaria como zombaria ou como uma nova humilhação. Depois, a tenda é fechada às pressas. A cisterna, enquanto isso, já encheu. Karim deve ir embora.
Ao longo da estrada, Karim resmunga. Ele também tomou um bote para ir à Itália. “Eu os odeio”, diz, pensando nos grupos de traficantes e repetindo duas vezes o nome de Rhoda. “Talvez até eu a conheci vindo aqui”, reflete. “Destruir o homem”, escrevia Primo Levi, “é difícil, quase tanto quanto criá-lo: não foi fácil, não foi rápido, mas vocês conseguiram”.
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Inferno líbio: um milhão de refugiados em uma armadilha sem saída - Instituto Humanitas Unisinos - IHU