24 Agosto 2017
O trabalho regular, normativo, com renda satisfatória pode ser a âncora da ‘solidariedade’ social. O trabalho desregulamentado, intermitente e desprovido de direitos, entretanto, empurra a sociedade para a ‘anomia’. A coesão social ou a sua ausência é resultado da tensão entre dois conceitos chaves para Durkheim: o da solidariedade e o da anomia.
O artigo é de Cesar Sanson, professor na área da Sociologia do Trabalho, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Eis o artigo.
Uma das principais obras de Durkheim, Da divisão do trabalho social, foi publicada em 1893, época em que a França assistia a um vertiginoso crescimento econômico na esteira da industrialização e das tensões sociais intensas com agitação operária, especialmente dos anarquistas. Um pouco antes, em 1885, Émile Zola havia publicado O Germinal, romance que descreve as condições de vida duríssimas e subumanas de trabalhadores de uma mina de carvão.
É nesse contexto de fortes contradições sociais que precisam ser compreendidos dois conceitos chaves presentes na obra: solidariedade e anomia. A possibilidade de coesão social, uma preocupação permanente de Durkheim, numa sociedade complexa – urbana e industrializada - apenas será possível quanto mais se aproximar da ‘solidariedade’ e se afastar da ‘anomia’.
É conhecida a clássica divisão societária de Durkheim em ‘solidariedade mecânica’ e ‘solidariedade orgânica’. A solidariedade mecânica corresponde às sociedades tradicionais, pré-capitalistas, com baixa divisão do trabalho, marcadas por uma homogeneidade social muito grande. As culturas tradicionais partilham de crenças e valores comuns, cujos controles e padrões morais são fornecidos pela religião e fundados no consenso, havendo pouco espaço para a divergência.
O processo de transição para a industrialização e urbanização trouxe o colapso da solidariedade mecânica e, à medida em que crescia a especialização das tarefas e a diferenciação social, uma nova solidariedade, nomeada de orgânica, se estabelece. A solidariedade orgânica, portanto, é própria da sociedade capitalista. Supõe uma complexidade social maior, em que os indivíduos são diferentes.
A questão central para Durkheim é como assegurar coesão social numa sociedade plural complexa, industrializada, secularizada e cada vez mais propensa aos conflitos. A exacerbação dos conflitos gera anomia - uma condição de desregramento que torna precária a vida em comum. O sociólogo francês considera aceitáveis manifestações de anomia, que classificará como patologias, desde que não excedam determinados limites e ameacem a vida em comum na sociedade.
Embora não esteja descrito de forma explícita por Durkheim, depreende-se do conjunto da obra que a superação da anomia em direção à solidariedade, base da coesão social, pode ser encontrada no trabalho digno para todos. A condição assalariada pode gerar consensos e ser portadora de um pacto de convivência. Os indivíduos aceitam o lugar social que lhes é dado desde que impere uma ordem social que leve justiça a todos os seus membros. Uma premissa importante, porém, é que o trabalho de que fala Durkheim seja regulamentado e normativo, ou seja, portador de direitos e dignidade.
Logo, o trabalho, a condição assalariada podem ser fontes de solidariedade ou anomia. Uma sociedade que não garante trabalho para todos, que não respeita direitos ou distribuição de renda satisfatória resvalará para a anomia, assim como a permanente agitação do movimento operário não contribui para o estabelecimento do equilíbrio social.
O trabalho regular, normativo, com renda satisfatória pode ser a argamassa que cimenta a coesão social na sociedade urbano-industrial. Durkheim vai mais longe ainda: sugere que o ideal na perspectiva da integralidade de direitos e dignidade é a formação de associações profissionais, algo similar às corporações de ofício que possibilitam a valorização do trabalho e uma identidade em comum.
Evidentemente que o autor tem consciência de que não se trata de recuperar o modelo do ancien régime, mas de adaptá-lo aos tempos de industrialização, ou seja, corporações profissionais de caráter nacional, ancoradas em ramos de atividades que, no seu interior, garantiriam direitos e benefícios aos seus associados.
É clara a condenação por Durkheim à desregulamentação da vida econômica, ou seja, a subtração de direitos. Essa situação empurra para a anomia. Trabalho para ele é necessariamente constitutivo de direitos, regulamentado, normatizado e regular.
Pouco mais de um século da publicação Da divisão do trabalho social, o agressivo ataque do capital ao trabalho, o intenso e permanente processo de desregulamentação da normatividade da legislação do trabalho, a queda dos rendimentos da massa salarial e a condição de trabalho intermitente permitem a conclusão de que o projeto durkheimiano de coesão social alicerçado sobre o trabalho fracassou.
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O projeto de sociedade idealizado por Durkheim fracassou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU