18 Agosto 2017
Tínhamos saído, pelos critérios da ONU, do mapa da fome, e, vergonhosamente, para lá voltamos a passos largos. A chamada elite que fez o golpe e seu governo coloca em prática políticas de Estado destrutivas de direitos elementares, e para dizer o mínimo, irresponsável, mas, sobretudo, cruel, escreve Walquiria Domingues Leão Rego, professora titular de Teoria Social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e autora do livro Vozes do Bolsa Família - Autonomia, Dinheiro e Cidadania (Ed Unesp, 2013), em artigo publicado por GGN, 16-08-2017.
Eis o artigo.
Espero que as pessoas de bem saibam que cortar a Bolsa Família das pessoas extremamente pobres do Brasil poderá produzir um verdadeiro genocídio, porque em sua grande maioria, em especial nos sertões, estes brasileiros poderão morrer de fome e das doenças derivadas da subnutrição. As pessoas atingidas são normalmente muito pobres habitantes de regiões, de modo geral, dominadas por grandes propriedades, em que a oferta de empregos é mínima. São brasileiros que tradicionalmente foram por gerações e gerações abandonados pelo Estado brasileiro, não tiveram escolaridade e tudo o mais que faz de uma sociedade não um amontoado de pessoas mas uma nação.
O Bolsa família e suas condicionalidades, como a obrigação da família de vacinar as crianças e colocá-las na escola, produziram resultados muito bons. As crianças, mais bem alimentadas, cresceram, adoeceram menos, e, assim, as taxas de mortalidade infantil caíram enormemente. A tuberculose infantil quase desapareceu, antes matava muito as crianças antes de um ano de idade. Afora outros benefícios que a renda dinheiro, mesmo muito pequena, trouxe às mulheres pobres em termos de expansão da liberdade pessoal. Ou seja, a positividade do programa é reconhecida em todo o mundo. Não se pode esquecer que a dinâmica de um programa imenso como o Bolsa Família exigiu o tempo todo correções no sentido de torná-lo mais justo e eficiente.
Não é demais sublinhar que a busca de sua melhoria foi uma constante, Prova disto foram os aperfeiçoamentos de sua gestão e amplitude distributiva.
O programa foi-se aperfeiçoando ao longo dos anos, com a criação de programas transversais como, Brasil Carinhoso, dirigido as mulheres grávidas, com os cuidados de exames pré natais e o programa de amamentação- Brasil nutriz, ambos trouxeram benefícios muito grandes a saúde das crianças. Tal fato foi comprovado por pesquisadores médicos. Por tudo isto, o programa Bolsa Familia recebeu inúmeros prêmios internacionais, inclusive da própria ONU.
Os cortes já feitos ao programa pelo governo ilegítimo de Michel Temer tiveram como justificativa correção de desvios o que representa uma grande mentira.
O combate as fraudes foram permanentes, houve premiações internacionais por isto. Não é pouca coisa ter tido muito controle sobre fraudes, que sempre ocorrem, mas no caso do Bolsa Familia, estatisticamente, foram relativamente raras. Não é ninharia para um programa-o maior do mundo- em dimensão populacional e distributiva, que administrava quase 50 milhões de brasileiros, ter garantido grande transparência tanto no seu modus operandi como nos seus critérios distributivos.
Cortar uma família do beneficio exige cuidados na verificação da sua condição de trabalho e vida familiar, desde que a solidariedade e a responsabilidade moral, política e administrativa forem os critérios centrais das políticas de correção de possíveis desvios de cadastramento e execução da política pública. Porquanto, quem faz pesquisa sabe que a população assistida pelo programa de transferência estatal de renda só consegue empregos eventuais e muito precários, até porque esta população é muito destituída de escolaridade e de qualificação profissional.
Depende do mês do ano se pode adquirir um trabalho episódico, um bico, como dizem eles, um “beliscão”, e, assim, naquele período determinado, obter um aumento dos parcos rendimentos.
Desta feita. é necessário todo cuidado na averiguação antes de se promover cortes de rendimentos. Os aumentos da renda, na maioria das vezes, são sazonais e depois de uma colheita ou outra se pode permanecer um tempo longo sem nenhuma renda.
O PBF, pela primeira vez na história destas pessoas, na maioria dos casos, proporcionou continuidade de renda, e, assim, tornou possível a gestão racional do orçamento familiar. Um aprendizado duro, pois a renda é muito pequena, mas estava sendo feito e com bons resultados. Por outro lado, se deve analisar os efeitos coletivos da renda monetária contínua para o país. Isto estimulou muito os mercados locais, às vezes expandindo-os significativamente.
Certa vez em conversa com o prefeito de Inhapi, uma pequena cidade no Alto Sertão alagoano, disse-me ele que o comercio da cidade havia crescido enormemente, depois da chegada do Bolsa Família. Naquele ano, 2007, havia trazido para a cidade mais de 250 mil reais ao mês e este aporte de dinheiro, obvio, havia se convertido em ampliação significativa das receitas da cidade.
Isto posto, vem a pergunta que se pergunta, como diz Riobaldo. O que justifica cortar os recursos destas pessoas? Nada, apenas crueldade social para responder à sanha preconceituosa e mal informada da classe média paneleira. Na verdade, tornar ainda mais garantido o saque a nação para ampliar os lucros de rentistas de todos os naipes.
O feito inacreditável dos cortes é sua absurda lógica. Ora, tais cortes empobrecerão ainda mais os municípios que abrigam esta população, tornando-a mais miserável, menos consumidora de bens e serviços. Resultado imediato desta perversa lógica: aumento do sofrimento social, politicamente evitável com políticas públicas bem desenhadas e bem debatidas.
Sinto informar, os cortes já feitos aumentaram o sofrimento, basta ir a estes lugares, já se vê, se ouve o lamento, como ouvi no último junho, o lamento pungente de Dona Andrea, nas cercanias de Inhapi, que me disse com muita emoção. Voltamos a passar fome. Não bastasse isto, percebi semblantes amedrontados, retornou o medo do destino, o medo de viver sem nenhuma segurança.
Afinal, do que se trata é fácil saber, se efetiva mais uma vez uma grande violação dos direitos mais elementares da pessoa humana, como o direito à vida. Na pesquisa mais recente, nos sertões nordestinos do Ceará e de Alagoas pude verificar o retorno da fome e com ela a presença dolorosa de crianças com 9 e 10 anos de idade pedindo esmolas, nos bares e postos de gasolina.
Pesquiso nestas regiões há mais de dez anos, estas cenas tinham diminuído muito, em algumas cidades havia quase desaparecido. Seu reaparecimento, como figuras “normais" do cotidiano das pessoas, é uma imagem assombrosa de um passado que não nos deixa passar, como diz o poeta. Tínhamos saído, pelos critérios da ONU, do mapa da fome, e, vergonhosamente, para lá voltamos a passos largos. A chamada elite que fez o golpe e seu governo coloca em prática políticas de Estado destrutivas de direitos elementares, e para dizer o mínimo, irresponsável, mas, sobretudo, cruel.
Darcy Ribeiro sempre nos alertou sobre este traço de nossa dita elite. Esta gente dizia: é escravocrata, desenvolveu durante séculos uma insensibilidade social pouco vista no mundo. Sua crueldade com os pobres e desvalidos não tem limites. Não se espere dela nenhum sentimento humanitário. Pensa apenas em rapinar o país e usufruir de sua rapinagem lá fora. Não possuem nenhuma ética coletiva, reproduzem em fornadas sucessivas, indivíduos dotados, cada dia mais, do espírito de ave de rapina, com suas gerências nada republicanas dos fundos públicos, tornando pratica governamental sua perene torrente de bandalheiras administrativas, para falar a linguagem do grande Manoel Bonfim. Nossas ruas voltaram a exibir o dantesco espetáculo de mendigos dormindo ao relento, esfarrapados, famintos, pedindo esmolas de olhos inchados e esbugalhados.
São tratados como coisas, como pedras renitentes no caminho dos transeuntes, devem ser queimados, espancados, ou até mortos pela polícia. Foi assim que fez um policial em Pinheiros outro dia atrás. Em plena luz do dia executou a tiros o carroceiro miserável. É assim que se manifesta a aspereza, a desumanidade desta elite e de seus governos. Sua profunda ignorância das causas da pobreza, o faz seguir e andar como embriagada pelo ódio aos pobres, vitaminada pela televisão e pelas revistas de baixo nível, compondo um conjunto sinistro de iniquidade moral e politica. E a grande mídia, sem nenhuma grandeza, todos os dias zomba, insulta o povo brasileiro, com suas mentiras sistemáticas, com seu jornalismo manipulativo que omite a informação dos fatos para propagandear sua tosca visão de mundo.
Temos propaganda e não jornalismo. O resultado disto sobre os consumidores desta pobreza intelectual é a perpetuação da desinformação em todas as classes sociais, impera uma espessa e profunda incultura que torna a classe média, por exemplo, incapaz de raciocinar e a conduz ao abraço de morte com as soluções antidemocráticas no que esta tem de mais grotesco. Ou seja, sua recusa obscurantista ao argumento fundamentado, e de qualquer reflexão. Hannah Arendt sempre advertiu sobre os perigos totalitários inerentes a irreflexão. Dizia ela, que a generalização da não reflexão constitui a pavimentação mais segura para o triunfo de qualquer regime totalitário. Por isto, torna-se imperativo denunciar mais este crime do golpismo, efetivado nos cortes aos programas sociais voltados para combater a imensa desigualdade existente entre nós. Ainda uma vez, porque nossa chamada grande mídia não analisa o significado trágico dos cortes de recursos essenciais a vida social minimamente civilizada. Onde está o direito civil dos cidadãos a verdade informativa?
Economia de gastos estatais para que e para quem? Vejamos. Quanto custa ao país o programa Bolsa Família que gasta 0,5 do orçamento nacional. Os juros da dívida pública, que se constituem em pagamento, ou melhor, em drenagem pura e simples de recursos da nação para ricos banqueiros e rentistas e é apresentada pelos analistas financeiros, colunistas cativos de jornais e televisões como fenômeno natural, inevitável da vida social.
A naturalização da rapinagem conforma talvez o fetiche mais enevoado da contemporaneidade brasileira. A operação divida publica expropria dos brasileiros mais de 40 por cento do orçamento da União. Isto sim drena recursos da nação. (Lazzarato, M. Governing by Debt.) Os juros pagos altíssimos, a maior taxa do mundo-- favorecem, com este privilegio a apropriação do orçamento nacional por pouco mais de 70 mil famílias bilionárias. Este grupo derruba governos, impõe sua agenda politica e social sem nenhum pudor democrático, pois não respeita, como se viu, o voto popular. A isonomia das urnas o horroriza. Tal agrupamento social é um associado decisivo dos poderes midiáticos na manipulação dos sentimentos públicos, fez de nossa classe média um poço sem fundo de preconceitos sociais de todos os tipos. Para tanto, compra muito bem certos jornalistas que se transformaram em verdadeiros jagunços da palavra.
Além disto, encontra em certa parte da burocracia pública, setores do poder judiciário, um aliado eficaz na manutenção das brumas de sua dominação politica e econômica. Formam junto um campo unificado de poder muito duro, difícil de ser percebido, e, por conseguinte, ser vencido.
O rentismo constitui hoje o centro do poder efetivo, tem quase o monopólio do poder de vetar, sem ser visto como tal, a democracia em todas as suas formas e manifestações. Tal associação de puro domínio se apropria da alma das pessoas, manipula seus sentimentos mais profundos, as anestesia, as torna indiferentes ao sofrimento dos semelhantes.
Por esta razão, não se vê nenhum protesto aos cortes do programa Bolsa Família, pois cortam a carne dos sem voz pública, dos invisíveis. Nenhuma solidariedade com o destino de seus concidadãos. Ouçamos a voz liberal de Willian Beveridge, um dos designers do Welfare State inglês que dizia em seu famoso relatório apresentado ao parlamento da Inglaterra em 1942, “(...) libertar o homem da miséria é algo que não pode impor-se à democracia, nem ser a ela oferecido, mas que deve ser por ela conquistado.”
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Crueldade Social como política de Estado: cortes do Bolsa Família - Instituto Humanitas Unisinos - IHU