23 Janeiro 2017
Trump repousou a sua mão no livro da constituição nacional e prometeu um forte investimento em obras públicas para modernizar o país e gerar empregos. Deixou claro a sua inclinação protecionista e seu desgosto pela globalização. Deus, pátria e "o povo".
A reportagem é de Santiago O’Donnell, publicada por Pagina/12, 21-01-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Durou apenas 16 minutos, mas tirou o fôlego dos analistas de direita da rede de TV Fox. Nos degraus do Capitólio, diante de uma multidão de rostos brancos, Trump fez o melhor discurso de sua vida, pela opinião de muitos dos presentes. De qualquer forma, foi o mais escutado. "Juntos, vamos fazer uma América forte novamente. Faremos com que os Estados Unidos sejam ricos novamente, faremos com que os EUA fiquem orgulhosos novamente, vamos fazer com que a América seja grandiosa outra vez".
A mensagem pode agradar ou não, assim como o seu personagem, mas como nos melhores momentos de seu reality show "O aprendiz", da década passada, Trump foi claro, direto, conciso e eficaz.
Depois dos cumprimentos habituais e dos agradecimentos pela hospitalidade do casal Obama, quase sem alterar o tom de sua voz, e sem olhar para eles, chamou o presidente que se despede e os congressistas ao entorno do púlpito de usurpadores. Com a sua chegada à presidência, "o povo" recuperou o governo que havia sido perdido para as mãos da elite política da capital, disse o magnata imobiliário nova-iorquino. "Hoje não estamos simplesmente transferindo o poder de uma administração para outra, ou de um partido para outro, estamos retomando o poder de Washington D.C. e o estamos devolvendo a vocês".
E continuou: "Faz tempo que um pequeno grupo da capital de nossa nação tem se engrandecido com os benefícios de pertencer ao governo enquanto as pessoas pagam os custos. Washington se enriqueceu, mas as pessoas não compartilham dessa riqueza. Os políticos prosperaram, mas não há mais trabalho e as fábricas estão fechadas. O establishment protegeu a si mesmo, mas não aos cidadãos deste país. Tudo isso muda a partir deste momento, porque este é o seu momento".
Não foi um discurso conservador. Trump deve ser o primeiro presidente republicano desde Abraham Lincoln que a esta altura não falou sobre baixar impostos e cortar os gastos do governo. Pelo contrário, ele prometeu grandes investimentos em obras públicas para modernizar o país e gerar empregos. "Construiremos novas estradas, rodovias, pontes, aeroportos e túneis por toda a extensão do nosso maravilhoso país. Vamos tirar nosso povo dos programas de desemprego e o colocaremos a trabalhar na reconstrução de nosso país, a partir das mãos e do trabalho estadunidenses".
Ele deixou bem clara a sua inclinação protecionista e o seu desgosto pela globalização com uma frase memorável – "Vamos nos organizar com duas regras muito simples: comprar estadunidense e contratar estadunidense". Para martelar a mensagem até que se dissipe a última dúvida, insistiu solenemente: "Nós que que estamos aqui reunidos decretamos, para que seja ouvido em cada cidade, em cada capital estrangeira e em cada centro de poder. A partir de hoje, será apenas os Estados Unidos em primeiro lugar, Estados Unidos em primeiro lugar".
Ele prometeu "restaurar as fronteiras", mas evitou frases irritantes sobre os muros e os criminosos vindos de outros países.
Falou diretamente do "terrorismo islâmico radical", algo que seus antecessores haviam evitado, com a promessa de trabalhar com outros países para "erradicá-lo da face da terra."
Significativamente, Trump anunciou que durante seu governo, os Estados Unidos não tentarão exportar as suas ideias acerca da sua democracia e da sua sociedade civil. "Não buscaremos impor a nossa maneira de viver a ninguém, mas iremos brilhar como um exemplo. Brilharemos tanto que os outros seguirão".
Em uma tentativa estudada para superar sua longa lista de comentários racistas e xenófobos, o flamejante presidente parafraseou o famoso discurso "Eu tenho um sonho", que Martin Luther King proferiu na mesma cidade, em 1963. Na versão de Trump, cidadãos "de montanha à montanha, de oceano a oceano" não serão esquecidos, e que tanto nos subúrbios de Detroit (de população negra), quanto nas planícies de Nebraska (de população branca) as pessoas "olham para o mesmo céu e enchem seus corações com o mesmo sonho".
Ele não se esqueceu dos veteranos de guerra e fez diversas invocações ao patriotismo, a Deus, a Bíblia e ao Criador.
Misturou Deus com patriotismo: "Não devemos ter medo. Estamos protegidos e sempre estaremos. Estaremos protegidos pelos grandes homens e mulheres de nossas forças armadas e, mais importante ainda, estaremos protegidos por Deus".
E misturou o patriotismo com a luta antirracismo: "É hora de recordar um sábio conselho que os nossos soldados nunca se esquecem - sejamos negros, pardos ou brancos, todos nós sangramos o mesmo sangue vermelho dos patriotas, todos gozamos das mesmas liberdades gloriosas, e todos saudamos a mesma grande bandeira estadunidense... quando abres teu coração ao patriotismo, não há lugar para a discriminação".
Ainda que o tom nacionalista-isolacionista permeou todo o discurso, Trump também dedicou um parágrafo ou dois para o que será sua política externa. "Buscaremos a amizade e a boa vontade das nações do mundo, mas faremos isso com a convicção de que todas as nações priorizam seus próprios interesses."
Em um homem tão auto-referencial, que colocou seu nome em casinos, arranha-céus, perfumes e campos de golfe, chamou a atenção o uso constante que ele fez do pronome "nós", evitando a todo o momento a primeira pessoa.
Aliás, para alguém tão briguento e provocativo, chamou a atenção para o fato de não ter dedicado sequer um sarcasmo à sua longa lista de inimigos, começando pelos meios de comunicação.
Não é o primeiro presidente a chegar em Washington com promessas de balançar o establishment a favor do bem-estar do "povo", de vencer a burocracia da capital e os grupos de interesse que ameaçam o bem comum. Seus antecessores fracassaram, mas hoje é hoje, e Trump é Trump, e os Estados Unidos nunca tiveram um presidente como ele.
Terno azul, gravata vermelha, balançando uma flor laranja ao vento, com sua esposa modelo Melania vestindo azul, recordando a Jackie Kennedy. Durante toda a cerimônia, Melania pareceu um pouco mais do que uma figura decorativa a qual em nenhum momento seu marido lhe dedicou um olhar, nem para demonstrar um gesto afetuoso, em contraste notório com a família Obama, os Biden ou os Pence. Inclusive os Clintons pareciam mais doces se houver comparação.
Pode agradar ou não, poderá gerar desgosto ou até assustar. Mas depois do discurso de ontem, ninguém poderá dizer que não foi avisado.
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"Simples: EUA em primeiro lugar, EUA em primeiro lugar" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU