05 Setembro 2016
"O Conselho de Direitos humanos do Estado do Rio Grande do Sul aprovou uma recomendação para o governo do Estado, autor da reintegração de posse, que, por sua bem fundamentada argumentação, pode auxiliar iniciativas similares de outros Conselhos, visando impedir os conhecidos e maus efeitos das execuções judiciais feitas com o uso da força publica, em ações desse tipo", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Porto Alegre está acompanhando, há meses, a ocupação promovida por 70 famílias pobres, de um prédio de domínio público do Estado, situado na esquina das ruas Gal. Câmara e Andrade Neves, antes relegado ao abandono e atualmente sendo objeto de uma ação de reintegração de posse, com liminar suspensa provisoriamente. As próprias famílias estão dando uma função social a esse bem, realizando assembleias periódicas com as/os ocupantes, reuniões com assessorias técnicas de defesa do seu direito de moradia, ONGs de defesa dos direitos humanos. Acomodaram as crianças numa creche improvisada e até uma biblioteca infantil foi organizada.
Em sua sessão do dia 31 de agosto passado, o Conselho de Direitos humanos do Estado do Rio Grande do Sul aprovou uma recomendação para o governo do Estado, autor da reintegração de posse, que, por sua bem fundamentada argumentação, pode auxiliar iniciativas similares de outros Conselhos, visando impedir os conhecidos e maus efeitos das execuções judiciais feitas com o uso da força publica, em ações desse tipo. Vai ela transcrita aqui na íntegra:
Recomendação CEDH/RS nº 02/2016. Recomenda ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul que não proceda o despejo das famílias da Ocupação Lanceiros Negros ocupantes do prédio público situado na esquina das ruas General Câmara e General Andrade Neves, no Centro de Porto Alegre, sem que haja solução de reassentamento digno.
O CONSELHO ESTADUAL DE DIREITOS HUMANOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (CEDH-RS), no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo inciso V, do artigo 9°, da Lei Estadual nº 14.481, de 28 de janeiro de 2014,
CONSIDERANDO o amparo constitucional do direito à moradia, uma vez que previsto, dentre os direitos sociais, no artigo 6º da Constituição Federal, decorrente do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e também previsto no inciso IV, do artigo 7º, como necessidade básica a ser atendida pelo salário mínimo;
CONSIDERANDO o dever constitucional de que a propriedade cumpra sua função social, independentemente da natureza jurídica do proprietário, conforme expresso no inciso XXIII, do artigo 5°, e no caput e § 2º, do artigo 182, da Constituição Federal;
CONSIDERANDO a competência comum dos entes federativos para realizar políticas públicas de promoção do direito à moradia, mediante a previsão constitucional de construção e melhorias das condições habitacionais (artigo 23, inciso IX, da Constituição Federal);
CONSIDERANDO que o Brasil é signatário de Tratados que, em âmbito internacional, reconhecem o direito à moradia como direito humano fundamental, conforme o previsto no artigo XXV, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU); no artigo 11.1 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU); no artigo 17 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU); no artigo 5° alínea e, iii, da Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (ONU); no artigo 13.2, alínea h, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU); no artigo 27, itens 1 e 3, da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU); nos art igos 11, 22 e 26, da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (OES), combinado com os §§ 2º e 3º, do artigo 5º , da Constituição Federal;
CONSIDERANDO, especialmente, que o Brasil ratificou, em 1992, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ao qual se seguem o Comentário Geral nº 4 e o Comentário Geral nº 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (ONU), ambos relativos à proteção do direito à moradia, os quais vinculam as ações do Estado brasileiro e de seus entes federados;
CONSIDERANDO que os despejos forçados, mesmo quando determinados por autoridade judicial competente e seguindo o devido processo legal, não podem resultar em pessoas desabrigadas ou vulneráveis a violações de direitos humanos, conforme o Comentário Geral nº 7, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ONU), e artigo 22, item 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (OEA);
CONSIDERANDO o impacto real dos despejos forçados na vida das pessoas, especialmente crianças, valendo aqui citar RAHMATULLAH quando afirma que “as remoções forçadas tendem a afetar toda a família, mas têm um impacto ainda mais devastador sobre as crianças. Após as remoções forçadas, a estabilidade da família e seus meios de subsistência são frequentemente ameaçados, sendo que o impacto dos despejos no desenvolvimento da criança é considerado semelhante ao dos conflitos armados” (T. Rahmatullah, The Impact of Evictions on Children: Case Studies from Phnom Penh, Manilla and Mumbai - New York, United Nations Economic and Social Commission for Asia and the Pacific and th e Asian Coalition for Housing Rights, 1997, apud “Direito à moradia adequada. – Brasília: Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2013”).CONSIDERANDO a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Ricardo Lewandowski, na Ação Cautelar n. 4.085-SP, a qual suspendeu reintegração de posse em razão da ausência dos meios necessários para o reassentamento das famílias, e tendo em vista a possibilidade de violações aos direitos fundamentais;
CONSIDERANDO a decisão da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Recurso em Mandado de Segurança n. 48.316-MG, que suspendeu a ordem de reintegração de posse argumentando a partir dos tratados internacionais, do Comentário Geral nº 7, acima referido, e do artigo 6º da Constituição Federal, determinando a observância da proporcionalidade e o respeito aos direitos humanos em matéria possessória;
CONSIDERANDO que na Ocupação Lanceiros Negros, ameaçada de reintegração de posse, residem dezenas de famílias, além de abrigar cerca de 36 crianças, das quais 6 são bebês de colo, além de idosos e um adulto portador de síndrome de down;
CONSIDERANDO o Parecer Técnico n. 0789 da Unidade de Assessoramento Ambiental do Ministério Público do Rio Grande do Sul, levado à Ocupação pela Promotoria de Justiça de Habitação de Defesa da Ordem Urbanística, com a conclusão de que o prédio tem condições de albergar as setenta famílias nesse momento e de ser convertido em moradia;
CONSIDERANDO o Parecer Técnico n. 140/2016 da Unidade de Assessoramento em Direitos Humanos do Ministério Público do Rio Grande do Sul, levada à Ocupação pela Promotoria de Justiça de Habitação de Defesa da Ordem Urbanística, com a conclusão de que as famílias se encontram vivendo com dignidade no prédio, com higiene, cuidado e disciplina, estando cadastradas e recebendo atendimento médico junto ao Centro de Saúde Santa Marta e estando as crianças matriculadas e frequentando as escolas do Centro de Porto Alegre;
CONSIDERANDO a Portaria nº 304/2016, através da qual o Prefeito José Fortunati instaurou Grupo de Trabalho para análise da possibilidade de implantação do projeto da Casa de Acolhimento e Passagem Lanceiros Negros;
ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul, especialmente aos seus órgãos diretamente envolvidos com a política pública de regularização fundiária, que:
Diante da decisão judicial que, em recurso incidental ao Processo nº 001/1.15.0192440-1, revogou a medida liminar que suspendia a ordem de reintegração de posse, abstenha-se de a executar, ao menos até que sejam apresentadas e acordadas soluções de moradia digna às famílias ocupantes;
a) Seja estabelecido real e efetivo diálogo com as famílias ocupantes, tomando conhecimento e buscando meios reais de acolher suas reivindicações, priorizando sua inclusão em programas habitacionais, caso não seja encaminhado a regularização fundiária do local;
b) Seja avaliada a proposta de cedência do prédio para implantação da Casa de Acolhimento, voltada a acolher transitoriamente pessoas em situação de vulnerabilidade durante o período em que aguardam a moradia definitiva;
c) Seja observada, além de todas as normas do direito pátrio, bem como a legislação internacional referidas, o disposto na Recomendação n. 1 do CEDH/RS.
O CEDH-RS entende que, atendidas tais recomendações, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul (PGE-RS) estará efetivando o direito humano fundamental à moradia adequada e respeitando os direitos humanos das famílias ocupantes da Lanceiros Negros. Porto Alegre, 31 de agosto de 2016. PAULO CÉSAR CARBONARI Presidente CEDH-RS
As ideologias podem sacrificar as utopias dos direitos humanos e a própria democracia
O outro golpe: tirano, permanente e crescente
Por direito à moradia, 98 famílias ocupam prédio público abandonado no Centro da Capital
‘Nosso grande problema não é o déficit de moradia, mas sim o déficit de cidade’
Quarto ato ‘Fora, Temer’ em Porto Alegre é marcado por apoio a ocupação Lanceiros Negros
Porto Alegre. Desocupação suspensa da Lanceiros Negros vira documentário
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O que pode um Conselho de Direitos Humanos fazer em defesa da moradia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU