04 Mai 2016
A tradução inglesa do livro Grito da Terra, Grito dos Pobres, Cry of the Earth, Cry of the Poor, Orbis Books, 1997, é comentada por Dawn Nothwehr, irmã franciscana, professora de Ética Católica na Catholic Theological Union, em Chicago, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 02-05-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O livro de Leonardo Boff intitulado “Cry of the Earth, Cry of the Poor” apareceu em inglês no ano de 1997. A obra definiu o que são hoje os pilares principais da ecoteologia católica e da ética ambiental: justiça para os pobres e justiça para a terra. O texto veio após o primeiro congresso em Estocolmo das Nações Unidas sobre o meio ambiente (1972) e após a Cúpula da Terra (Rio de Janeiro, 1992), que primeiramente conceitualizaram um “desenvolvimento sustentável”. Nesse período, um conjunto de ideias relacionadas ao ensino social católico sobre a ética ecológica surgia a partir das conferências episcopais católicas e do discurso do Papa João Paulo II em 1990 para o Dia Mundial da Paz.
O grito dos pobres por vida
Esta importante obra de Leonardo Boff ampliou o olhar da Teologia da Libertação para incluir o meio ambiente natural, e fechou as brechas entre a teologia e o ambientalismo. Ela reafirmou o lugar das pessoas dentro da criação e a obrigação moral delas de serem as suas guardiãs.
Boff salientou as fontes bíblicas e doutrinais fundacionais para as perspectivas cristãs sobre questões ecológicas, e as relações com as estruturas sociais, políticas, econômicas e eclesiásticas. Ele lançou mão dos clássicos franciscanos (Encarnação, Trindade, pobreza, Espírito Santo), construindo uma síntese ecoteológica revolucinária.
E o que é mais significante ainda: este livro também carrega as marcas de um pastor entre os pobres. Boff afirma:
“A teologia da libertação e o discurso ecológico têm algo em comum: partem de duas chagas que sangram. A primeira, a chaga da pobreza e da miséria, rompe o tecido social dos milhões e milhões de pobres no mundo inteiro. A segunda, a agressão, sistemática à Terra, desestrutura o equilíbrio do planeta, ameaçado pela depredação feita a partir do tipo de desenvolvimento montado pelas sociedades contemporâneas e hoje mundializadas. Ambas as linhas de reflexão e de prática partem de um grito: o grito dos pobres por vida, liberdade e beleza (…) e o grito da Terra que geme sob a opressão”.
A mesma lógica leva as populações dominantes a oprimir os marginalizados e a depredar a Terra. Uma forte interconexão vincula os aspectos ecológicos, humanos, sociais e espirituais da vida. Boff sustenta que este mal possui profundas raízes no mal-estar espiritual que caracteriza o socialismo e o capitalismo.
Ouvindo o clamor
Boff nasceu em Concórdia, Santa Catarina, em 1938. O seu pai era professor escolar que tinha uma identificação com os negros pobres do município. Leonardo foi ordenado padre franciscano em 1964. Estudou teologia na Universidade de Munique, foi assistente de pesquisa de Karl Rahner, e Joseph Ratzinger orientou a sua tese.
Durante 22 anos, ele lecionou no Instituto Franciscano de Petrópolis, Rio de Janeiro, tornando-se num autor da Teologia da Libertação internacionalmente reconhecido. Após uma dolorosa censura emitida por Roma, renunciou ao sacerdócio e à ordem franciscana em 1992, mas não abandonou a teologia e a espiritualidade franciscanas.
Como outras figuras transformadoras, Boff via relações que outros deixaram passar despercebidas. Ele fez conexões teológicas e éticas radicais entre teologia, pobreza, espiritualidade e a violência sistemática contra toda a criação – incluindo os seres humanos – em termos coerentes com as realidades modernas. Os seus detratores não distinguiam termos básicos como panteísmo/panenteísmo; análise marxista/comunismo stalinista; a Trindade de Boaventura/a Trindade de Aquino.
Análise e método
Duas experiências de vida importantes levaram Boff a abraçar a ecojustiça e a justiça social dentro da Teologia da Libertação. Primeiro, como pastor em uma favela de Petrópolils, ele se encontrava com pessoas que tinham procurar comida em depósitos de lixo, mas que mantinham também uma esperança e um valor próprios a partir de suas comunidades cristãs de base.
Na selva amazônica exuberante da antiga Prelazia do Acre-Purus (atual Diocese de Rio Branco, no Acre), Boff via a derrubada das florestas, situação que ameaçava a própria sobrevivência das pessoas. Aí, fé e vida, Deus e sofrimento, eram tudo uma coisa só.
Boff insiste que os pobres devem ser “o ponto a partir do qual se tenta conceber Deus, Cristo, graça, história, a missão das igrejas, o significado da economia, da política e futuro das sociedades e dos seres humanos”. A preocupação para com os pobres provoca uma preocupação pelo todo da criação, exatamente porque os pobres são os mais prejudicados pelos abusos capitalistas e socialistas da Terra.
“Cry of the Earth, Cry of the Poor” começa com uma análise em profundidade das doenças ecológicas da Terra causadas pelo homem. Influenciado por Jan Smuts, Boff em seguida articula um modelo ecológico holístico. Usando a “nova física”; a biologia evolutiva; a ciência ambiental; e as tradições agostinianas, de Boaventura e pascaliana, Boff convida a uma fusão das preocupações ecológicas e teológicas.
Ele encontra garantias teológicas para a proteção dos pobres e da Terra no panenteísmo cristão (“tudo em Deus, Deus em todo”), na sacramentalidade da criação e na doutrina do Espírito Santo (“a paixão absoluta de Deus, o amor absoluto”). Isso tudo sustenta uma cosmologia baseada na ecologia, enraizada em processos evolutivos, e sustenta uma definição de pecado como “quebra de conectividade”.
Juntamente com Brian Swimme, Thomas Berry, Mestre Eckhart e Teilhard de Chardin, Boff encontra Deus dentro do “processo cosmogenético do universo”.
Além disso, a visão libertária da sociedade justa é modelada após relações sociais das pessoas com a Trindade, seguindo as tradições cappadocianas e vitorinas. O cumprimento desta visão requer a conversão espiritual.
Boff apresenta as “virtudes ecológicas cardeais”, como exemplificado por São Francisco de Assis, como o caminho a seguir. Orar era o primeiro passo de São Francisco para o seu autoentendimento como um poeta-místico ontológico, capaz de captar a sacramentalidade de todas as coisas. Ele deleitou-se no encantamento erótico religioso, no fascínio e no desejo pelas – e com todas as – coisas no universo (amor). O Deus radicalmente relacional de Francisco leva a humanidade a cuidar os seus semelhantes em toda a criação como Deus cuida deles (obediência). Francisco vivenciou a sua própria dignidade vinculada em toda a criação na medida em que tudo se origina no Único Criador (humildade). A partir deste ponto, Francisco encontrava todas as relações como uma relação completamente disponível à necessidade dos demais (pobreza).
Por meio da penitência, da pobreza e da oração, Francisco viveu com segurança e apaixonadamente, fundado em sua relação com Deus e toda a criação – especialmente os pobres.
Conhecendo o Irmão Leonardo
O livro “Cry of the Earth, Cry of the Poor” de Leonardo Boff mudou a minha vida ao fortalecer as minhas convicções sobre a autoidentidade enquanto pessoa, cristã, franciscana comprometida com a vida; ela fortaleceu-me enquanto professora de ética teológica. Frequentemente a minha visão de mundo é “contra la corriente”, em maior grau do que os meus colegas.
Este livro eu li pela primeira vez em 1997 durante um retiro que marcava o 25º aniversário de minha profissão de fé como católica, o 20º ano desde que havia entrado no noviciado franciscano, o 13º na qualidade de irmã franciscana com votos perpétuos e o terceiro ano como eticista teológica, tendo completado o doutorado em 1995 na Marquette University.
A minha tese doutoral em ética libertária feminista (“Mutuality: A Formal Norm for Christian Social Ethics”) andava de mãos dadas com as fontes e ideias de Leonardo Boff concernentes ao poder. A “mutualidade”, com as suas manifestações quádruplas (gênero, gerativo, social, cósmico), poria limites ao poder destrutivo da vida humana e planetária.
Como Boff, o meu trabalho utilizava modelos, metáforas e perspectivas disponíveis à teologia a partir da “nova física”, fontes franciscanas e análises sociais feitas “a partir da base”. Imediatamente me identifiquei com Boff em termos intelectuais, descobri uma sinergia com a sua paixão por justiça.
Fui presenteada com pais luteranos sábios, bem-educados, comprometidos, pessoas que modelaram um respeito profundo pela dignidade de cada pessoa e que se deleitavam com as maravilhas da criação. Minha mãe era professora, e mais tarde revisora de textos para um semanário local. Ela encantava-se com o seu grande jardim de rosas híbridas. As viagens que a família fazia ao interior do país eram ambientes para lições interdisciplinares em teologia e ciências naturais. Nessa atmosfera, fui seduzida, de coração e alma, para dentro de uma consciência profunda da Presença compassiva – Deus.
Mas rejeitei a teologia centrada no pecado da tradição luterana do Sínodo de Missouri. Eu descobri o catolicismo através das lentes de uma franciscana: uma abordagem apaixonada ao pecado, ao perdão, ao “batismo do desejo”, ao “chamado e resta” a Deus, e à ética da virtude agapística.
De maneira providencial, recebi uma bolsa de estudos para uma faculdade feminina franciscana. Aí, li teologia e ciências sociais com educadoras franciscanas que usavam uma abordagem integradora.
Terminado o bacharel em serviço social e em psicologia, juntei-me ao programa “Volunteers in Diocesan Action”, em Pueblo, Colorado. Como agente comunitária e ministra jovem entre os mexicanos recém-chegados ao país, aprendi sobre a combinação mortal da guerra, pobreza, destruição ecológica, preconceito racial e sobre o poder cego e sufocante da maioria branca e rica.
Ao voltar para Minnesota, tornei-me a coordenadora de grupo vivendo em um hospital psiquiátrico para crianças violentadas e negligenciadas. Com os psiquiatras da Clínica Mayo, esforçamo-nos para curar as feridas infligidas por pais que, eles próprios, estavam também machucados. Aí, testemunhei várias vezes momentos de plena graça quando vi as crianças brincarem pelo pátio com suas feridas sendo curadas.
Como irmã franciscana, fiz mestrado em Estudos Religiosos na Maryknoll School of Theology, de 1981 a 1985. Os meus professores eram importantes figuras da Teologia da Libertação, entre eles estava Boff. No segundo semestre de 1985, estive na Nicarágua sandinista junto com algumas irmãs maryknoll; depois, fiquei com a jornalista Penny Lernoux e com franciscanas em “comunidades de paz” colombianas ameaçadas por cartéis de drogas.
Mais tarde, já trabalhando para a NETWORK, grupo que busca promover ideias de justiça social católica entre os políticos em Washington, DC, por vezes entrei nos salões do Congresso, experimentando o poder palpável presente neste lugar, como se fosse a boca de um dragão. Não se podia prever quando ele cuspiria fogo ou quando iria simplesmente ronronar. Assisti aquele poder cru, usado tanto para prejudicar como para ajudar os pobres.
Em seguida, como consultora de educação para a Divisão do Ministério Social da Diocese de Rochester, Nova York, o meu trabalho com Dom Matthew Clark focou-se na elaboração de sua carta pastoral sobre a HIV/Aids e, então, na implementação de um plano de ação local. Muitos me incentivaram a estudar para o doutorado – e o resto é história!
A sabedoria da Teologia da Libertação de Boff – onde a ecologia e a teologia são parceiras, não rivais – confirmava as verdades que aprendi entre os pobres e em minha imersão na espiritualidade e na teologia franciscanas. Isso me comoveu, me moldou, me motivou e me fez cair de paixão por um tipo de energia sagrada ainda hoje palpável.
A consciência intensa do nosso Deus incarnacional, a humildade impressionante de Deus em Cristo, a imagem d’Ele como uma fonte transbordante de plenitude (Boaventura), a particularidade penetrante em meio à diversidade extremamente criativa da expressão panenteísta de Deus no mundo material (haecceitas, Duns Scotus) – tudo encontrava o seu lugar de maneira prazerosa dentro de cada fibra do meu ser.
Com certeza, as virtudes vividas por Santa Clara e São Francisco de Assis, agora conhecíveis através de modelos da “nova física”, delineiam um marco teológico e uma visão moral que, profundo em meus ossos, sei que podem transformar os corações humanos – o mundo.
A minha vida e as influências de Boff cruzaram-se no caminho novamente. A sua obra foi integrada na encíclica do Papa Francisco Laudato Si’ (Sobre o Cuidado da Casa Comum). Tem sido um prazer proferir inúmeras palestras sobre este documento em vários lugares, servindo como uma assessora de ética para várias comissões que apoiam os esforços de Dom Blaise Cupich em implementar a citada encíclica na Arquidiocese de Chicago. De fato, “o Senhor ouve o grito dos pobres. Bendito seja o Senhor!”
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“Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres”. Uma resenha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU