22 Fevereiro 2016
"É preciso que se ponha em prática a Sacrae Liturgiae Gaudium! Para isso é preciso pôr um fim às contorções disciplinares e institucionais que apenas resultam em paralisia e perda de tempo, e que não se baseiam na alegria, mas no medo; elas não se fundamentam na esperança, mas na resignação", destaca Andrea Grillo, teólogo italiano, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua, em artigo publicado por Blog Pray Tell, 09-02-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Na estrutura do pontificado do Papa Francisco – conforme já se disse várias vezes –, a liturgia tem um lugar, não de um “discurso direto”, mas de uma “prática indireta”. Isso porque o papa é um “filho do Concílio”, o que ele incorpora de modo flexível e concreto
Em suas missas na Casa Santa Marta, em suas audiências gerais às quartas-feiras e em suas homilias de domingo, bem como em seus principais discursos e medidas litúrgicas específicas (por exemplo, a modificação das rubricas para o Lava-pés da Quinta-Feira Santa), fica claro que Francisco celebra a liturgia com “a alegria do Evangelho”.
E tem mais: o texto “programático” de Francisco, Evangelii Gaudium, apresenta uma visão eclesial de uma Igreja em missão – como um “hospital de campanha” – de um jeito que atrai uma renovada atenção à relação entre liturgia e vida, e entre liturgia e cultura. Essa visão se manifesta na intenção do papa em descentralizar o poder curial, confiando uma competência aos episcopados regionais que é até mesmo doutrinal em seu caráter. A apropriação de uma tal descentralização dentro do ensino da própria Evangelii Gaudium já é algo altamente significativo.
Tudo isso está em contrariedade fundamental com o que tem vem acontecendo na área da liturgia dos últimos 15 anos, desde a promulgação da Quinta Instrução “Para a correta implementação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia”, Liturgiam Authenticam (2001). Esse documento estagnou com eficácia no nível universal todo o esforço na inculturação autêntica da liturgia.
A Liturgiam Authenticam convidou a uma reconstrução universal da liturgia baseada em seu protótipo latino – inevitavelmente estático e fechado – favorecendo uma tradição obstinada e escolasticamente literal e fingindo que as línguas vernáculas carregam a mesma estrutura e os mesmos elementos retóricos que o latim. Ele tem sido, desde o início, um projeto que carece de qualquer fundamentação sólida, não só na simples experiência humana, mas também na tradição da Igreja.
Nunca os “idiomas de chegada” foram tratados com tal desconsideração. É como se o conhecimento do texto original fosse essencial para se compreender a sua tradução! Mas quando um idioma que não mais é ensinado por nenhuma mãe ao seu filho se torna a medida basilar e decisiva das línguas vivas, quem pode continuar vivendo dentro de uma tal “Laranja Mecânica”? Quem poderia ter concebido um tal sistema abstruso e autorreferencial? Se a estrutura inteira é determinada por um idioma que “não tem futuro” – o que é o caso do latim, uma língua sem a capacidade de renovação, qualidade que alguns acham tranquilizadora, pois significa que ela também é privada de uma história –, quanto tempo vai ter de passar antes que a tradição seja reduzida a nada mais que um “museu de cera”?
Depois de um reinado conturbado de quinze anos, a Liturgiam Authenticam chegou ao final da linha. Ele não só tem críticas legítimas feitas desde o começo, seja do ponto de vista doutrinal, seja do ponto de vista pastoral, mas também os fatos o demonstraram ser, ao longo dos anos, simultaneamente falho na teoria e praticamente inaplicável na prática.
E onde o seu conteúdo foi forçado apesar desses problemas, o resultado foram textos litúrgicos que são documentos tecnicamente “corretos” – isto é, coerentes com normas pobremente concebidas –, mas que carecem, consequentemente, de qualquer relação com a língua viva, com a vida real, com a fé vivida daqueles para os quais o uso dos textos se destina. A raiz de tudo não reside em algum problema filosófico, mas em um problema teológico e antropológico: uma tradição rígida e a pressuposição de que a experiência do sujeito litúrgico não é importante.
Os bispos hoje, ao redor do mundo, encontram-se numa situação difícil: eles querem continuar a “obedecer o que vem de Roma”, é claro; mas também querem e devem servir à fé das pessoas. Eles sabem muito bem que a obediência em Roma significa produzir textos inutilizáveis. Mas também sabem que promover um verdadeiro crescimento de suas igrejas significa que precisam se desviar substancialmente dos “critérios romanos”. A única solução possível é “parar tudo”. Não pedir nada a Roma, a fim de evitar tropeçar num processo de controle central distorcido, pelo medo de que a evolução venha a se tornar uma involução e de que a obediência venha gerar ainda mais confusão, encorajando apenas os espíritos mais sectários.
O radicalismo literalista do documento Liturgiam Authenticam vem gerando divisão e desespero, e isso era facilmente previsível quinze anos atrás. Está claro agora que o sentimento mais generalizado entre as lideranças das conferências episcopais em todo o mundo é o medo.
Em quinze anos, a Liturgiam Authenticam produziu – pelo menos entre a hierarquia – um verdadeiro “angor liturgicus”, uma ansiedade e um sofrimento que, agora, alcançou níveis intoleráveis. A “alegria do evangelho” não pode coexistir com o “medo da liturgia”. E se começarmos, em questão litúrgica, com “luctus et angor” – frase incluída no título original do que acabou se tornando a constituição conciliar Gaudium et Spes –, como poderíamos assumir o verdadeiro e grande reavivamento da gaudium e da spes conciliares a que o Papa Francisco nos chama?
O documento Evangelii Gaudium visualiza uma Igreja em missão, capaz de uma liturgia autêntica. Mas não pode haver uma liturgia autêntica até que rejeitemos a postura sem vida e defensiva do Liturgiam Authenticam, que somente nos dará uma Igreja fechada e trancada em seu próprio passado, onde a liturgia se torna um “museu diocesano”, com ar-condicionado e vidros à prova de balas.
Eis a atual conditio sine qua non: ou se escreve uma nova, sexta instrução sobre a reforma litúrgica, ou seremos cada vez mais dominados pelo medo, pela paralisia e imobilidade. E as boas autoridades romanas, trancadas em seus departamentos, continuarão gastando o seu tempo aprovando juízos sobre palavras particulares, sinais de paz, formas diferentes de cantar, as estruturas latinas ignoradas... o olhar deles dirigido apenas em direção ao passado, sem alegria, tementes do menor abuso litúrgico, ignorando os costumes e a grande e inexaurível experiência dos homens e mulheres.
Mas até mesmo estas autoridades estão entre as vítimas: a Liturgiam Authenticam os tem “forçado” a trabalhar desse modo! Como é possível que recebam uma carta do papa explicitamente pedindo pela reforma de uma rubrica a fim de que eles “abram os seus olhos” e respirem?
Com certeza, a tarefa da Congregação deveria ser a de incentivar, propor aberturas. Como pode haver, numa Igreja que se vê essencialmente em missão, uma congregação que se especializa somente em sistemas de fechaduras e alarmes?
Creio que uma redescoberta da nossa “vocação à alegria” só pode acontecer se essa congregação for capaz de adotar, finalmente, uma nova instrução. Muito tempo e energia já foram gastos ao longo dos últimos quinze anos em esforços para se evitar aplicar princípios que são inaplicáveis, tanto em teoria como na prática.
No estágio atual da nossa história, não precisamos de lamentações litúrgicas; precisamos de canções à alegria. Sei que muitos especialistas, teólogos e pastores estariam prontos e dispostos a colaborar na preparação de uma instrução que traduza a Evangelii Gaudium em orientações práticas para uma área tão importante como a liturgia.
Em resumo, precisamos de um texto que ponha em prática a Sacrae Liturgiae Gaudium! E precisamos pôr um fim a essas contorções disciplinares e institucionais que apenas resultam em paralisia e perda de tempo, e que não se baseiam na alegria, mas no medo; elas não se fundamentam na esperança, mas na resignação.
Em vez de criarmos “irrealidades” – como línguas artificiais baseadas no latim que não existe e que jamais existirá, mesmo por decreto de uma congregação romana –, ouçamos o convite a dar primazia à realidade, a verdadeiramente darmos um passo para o lado de fora dos muros que construímos ao nosso redor, a respirarmos um ar puro, falar línguas vivas, estarmos entre os nossos irmãos e irmãs, inalar o cheiro: escrevamos, agora, uma nova instrução. Essa é a única maneira em que seremos capazes de restaurar um pouco de senso comum.
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Evangelii Gaudium promove a liturgia autêntica. Um ponto de inflexão em direção à sexta Instrução sobre a Reforma da Liturgia? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU