22 Janeiro 2016
Há 15 anos o Fórum Social Mundial fala de um outro mundo possível. Um painel realizado nesta quinta-feira (21), na Assembleia Legislativa, defendeu que o outro mundo possível pode começar a ser construído pelas cidades. São elas que abrigam a maior parte da população mundial, que concentram renda e ações políticas, que definem questões de peso nacional. E é essa também a premissa do “Cidades Sustentáveis”, programa criado para fiscalizar e pressionar gestões públicas em agendas sustentáveis de desenvolvimento.
A reportagem é de Fernanada Canofre, publicada por Sul21, 21-01-2016.
O projeto tem como idealizador, o “pai do Fórum”, Oded Grajew. A ideia é utilizar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) das Organização das Nações Unidas – que deveriam ser alcançados até 2015 – e a partir deles traçar as metas para uma gestão sustentável de desenvolvimento para as cidades. Ou seja, parte do princípio de que para mudar o mundo, tem que começar mudando a própria aldeia.
“Nada está fora da sustentabilidade. Achamos por bem pegar esses objetivos e adaptar às cidades. Vamos lançar esse agenda este ano, que é um ano de eleições no Brasil, para que o máximo de partidos possa usar em sua plataforma [de governo]”, disse Oded em sua fala. O objetivo do Cidades também é levar o programa como um compromisso político nos três níveis do Executivo: prefeituras, governos estaduais e federal.
O trabalho do projeto iniciou em 2010, em São Paulo, tentando incentivar gestores e candidatos ao governo do estado e ao Senado a aderirem a agenda sustentável nas eleições do mesmo ano. Dois anos antes, o mesmo movimento já havia impulsionado a mudança na lei orgânica da cidade, que obriga todo prefeito que assume a capital paulista a entregar um plano de metas de governo – incluindo todas as áreas da administração pública – dentro de 90 dias.
“Obrigatoriamente, como está na legislação, ele tem que incluir suas promessas de campanha. Essa ação vai funcionar a medida que a sociedade acompanhar e exigir”, explicou Oded. Além de apresentar os objetivos aos gestores, o Cidades também tem função de fiscalizar e pressionar o cumprimento das metas. “Acreditamos piamente que estas coisas só vão acontecer a medida que a gente avance na democracia participativa”.
Segundo ele, 40 cidades brasileiras já seguiram a ideia de São Paulo. A última a assinar a mudança na lei orgânica foi Porto Alegre. O próximo prefeito ou prefeita que assumir a capital gaúcha já terá de cumprir a nova lei.
Em torno da ideia de Oded, se reuniram na mesma mesa Nelton Friedrich, diretor de Meio-Ambiente na Usina de Itaipu Binacional, Ieva Lazareviciute, representante do Programa da ONU de Desenvolvimento (PNUD), Eduardo Tadeu, presidente da Associação Brasileira de Municípios (ABM), Dorothy Martos, membro do GT Sociedade Civil para a Agenda 2030, e o sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos.
“A democracia participativa de Porto Alegre está se transformando numa farsa”
Boaventura não falou de utopias, tampouco temperou com otimismo sua visão de alternativa de mundo. Primeiro, ele falou sobre sua frustração com um sistema internacional envolvido em guerras, com crises migratórias sem planejamento, entregue cada vez mais ao capitalismo. “Esse é o mundo que vivemos. Não posso deixar de estar menos otimista hoje do que estava 15 anos atrás”, disse. Em seguida, retomou sua frustração com Porto Alegre – como havia feito ontem na cerimônia onde recebeu título de cidadão da capital – “A democracia participativa de Porto Alegre está a transformar-se numa farsa”.
A principal direção da crítica foi Porto Alegre ter caído numa receita velha conhecida para um português. Segundo Boaventura segue assim: municípios endividados se colocam nas mãos do capital privado para sair das dívidas. Ele se referia ao projeto do prefeito José Fortunati – aprovado na última sessão de 2015 na Câmara de Vereadores – que criou uma Empresa de Gestão de Ativos de Porto Alegre, vinculada à Secretaria Municipal da Fazenda. A empresa emite títulos dando como garantias bens públicos.
“Isso não é uma distopia abstrata. Isso aconteceu em Detroit e aconteceu na Grécia. Quando nós transformamos parte dos bens públicos em garantia da dívida, nós corremos o risco de as nossas cidades virem a ser tomadas pelos bancos. Não são apenas as moradias individuais, são os espaços públicos, os edifícios que constituem a identidade da cidade”, analisou Boaventura.
Em sua fala, ele defendeu que a grande crise das cidades está colocada em três temas: desigualdade social, injustiça espacial e violência urbana. Boaventura falou dos números de violência em Porto Alegre e no mundo. Ele foi aplaudido quando lembrou da violência policial nos Estados Unidos dirigida à população negra. “A violência é o outro lado da privatização do espaço público, porque aqueles que podem proteger-se da violência fecham-se em condomínios, urbanizações separadas, nos castelos neo-feudais. O que está acontecendo: são dois Brasis, o do neo, o do moderno e o outro. E infelizmente, o outro tem muito mais poder”, disse.
Boaventura fez uma leitura de como todas as crises se refletem no espaço das cidades, mesmo a política. “A rua da cidade é um espaço político cada vez mais importante e cada vez mais em disputa. É uma rua de contestação (…) daqueles que pensam que perderam o direito à cidade”, afirmou ele para em seguida lançar uma preocupação. “Aqui é algo que todos nós deveríamos nos preocupar bastante. A rua não é de esquerda. A rua também é da direita. Da direita reacionária. Da direita golpista. Ela está e vai ser um grande campo de disputa nas nossas cidades. Aí se põe a questão da segurança. A segurança vai criminalizar o protesto, em geral. Vai ter dois critérios, um para os movimentos sociais das classes populares e outro para os mais abastados”.
O sociólogo também abordou as crises do clima – chamando a atenção para o crescimento exponencial das migrações forçadas, causadas por mudanças climáticas – e classificou a Conferência do Clima, realizada em dezembro, em Paris, como uma “derrota”. “Foi uma fraude definir a COP21 como sucesso. Foi um grande fracasso. Por quê? Porque não foi possível assumir compromissos vinculantes por parte dos Estados. Porque não foi possível no documento final, sequer falar do petróleo, nem do carvão. Porque os Estados Unidos não deixaram”. A realidade mais provável, segundo Boaventura, é que a meta de aumentar apenas 1,5ºC da temperatura da Terra não será mantida até 2030.
“Eu penso que a gente continua a lutar por um outro mundo possível, mas o mundo real do 2001 era melhor do que esse. Então, houve retrocesso. Então, enfrentemos os fatos. Então, sejamos realistas”, disse ele durante a fala que classificou como “nota de inquietação”.
A esperança está no que Boaventura chama de “zonas de liberdade”, grupos que provam com suas experiências que “é possível tirar o capital da cidade”. Como exemplos, ele citou organizações envolvidas em hortas urbanas e jardins comunitários, além de grupos na Bolívia e na Índia que encontram em suas tradições a saída do modelo capitalista. Mesmo para um realista, sem muito otimismo, a economia solidária parece ser a única saída.
“Ninguém mais tem cheque em branco para governar”
Outros participantes do painel também salientaram a importância das políticas adotadas em municípios e dividiram suas próprias experiências.
“O programa do Cidades Sustentáveis agora é um novo capítulo, um novo momento e os prefeitos e prefeitas terão esse desafio”, declarou Jairo Jorge (PT), prefeito de Canoas, que aderiu a agenda em janeiro do ano passado. O petista estava representando a Frente Nacional de Prefeitos, entidade que apoiou a atividade do CS no Fórum. “A sociedade está empoderada para cobrar, para exigir que cumpram as metas de seus gestores. Ninguém mais tem cheque em branco para governar”.
Eduardo Tadeu, da Associação Brasileira de Municípios (ABM), que também apoiou o painel, falou da experiência prática da entidade e afirmou que “os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) só serão possíveis a partir do engajamento do município”. “Os ODSs têm um vínculo fundamental com o direito à cidade. Para que serve um governo local? Para garantir os interesses do capital ou para garantir a participação das pessoas nas cidades? (…) É aí que os governos têm de decidir se vão caminhar por um ou por outro”, ressaltou Tadeu.
Ele ainda lembrou de como as redes municipais de atendimento tem crescido. Se antigamente os estados possuíam postos de saúde e escolas fundamentais espalhados no interior, hoje todas estas questões recaem sobre os municípios. Mesmo a segurança – geralmente nas mãos dos estados – se tornou dependente do auxílio dos municípios desde compra de novas viaturas a abastecimento de combustível.
Além da experiência de gestores, o encarregado pelas políticas de meio-ambiente em Itaipu, Nelton Friedrich, também dividiu sua experiência de parceria entre a estatal e municípios da região selecionada por ela para iniciar o projeto. Segundo ele, 30% dos municípios da região assinaram o Cidades Sustentáveis.
Nelton destacou a formação de educadores ambientais pelos programas da Itaipu: hoje eles são cerca de 5 mil. E falou sobre o projeto de merenda escolar com produtos vindos de agricultura familiar: “O que mais deu resultado foi envolver as cozinheiras das escolas. Elas são protagonistas de uma comida saudável. Quando se envolve o ator local, está multiplicando por outros atores”, defendeu ele.
O Cidades Sustentáveis também enviou convites a representantes de todos os partidos para assinar um compromisso com a agenda sustentável, a ser aplicado nas eleições deste ano. Apenas três partidos estiveram presentes e firmaram o compromisso no palco: PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), PSB (Partido Socialista Brasileiro) e Rede Sustentabilidade. Os partidos foram representados, respectivamente, por Roberto Robaina, Beto Albuquerque e Montsserat Martins.
O PT (Partido dos Trabalhadores) e o PPS (Partido Popular Socialista) enviaram justificativas para ausência.
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‘Cidades sustentáveis’: Painel do Fórum Social discute como mudar o mundo a partir dos municípios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU