06 Janeiro 2016
Flavio Koutzii nos recebeu em seu apartamento, no Bom Fim, na tarde cinzenta e abafada do último dia de 2015. Uma data apropriada para falar sobre a conjuntura política de um ano extremamente conturbado e repleto de acontecimentos. A poucas horas da passagem de ano, diminuía a possibilidade de uma nova surpresa. O final de ano foi alucinante. Koutzii confessa que estava muito pessimista até o início de dezembro, quando a retomada da capacidade do campo de esquerda de levar gente para a rua, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o rito do processo de impeachment e a conduta de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, jogaram um balde de água fria na ânsia oposicionista de derrubar a presidenta Dilma Rousseff.
“Houve certa surpresa com algumas decisões muito recentes e essa surpresa precisa ter uma explicação”, diz Koutzii. Na entrevista ao Sul21, ele apresenta alguns elementos para construir uma explicação sobre o estado das coisas no cenário nacional e também no cenário estadual. Para tanto, utiliza com fio condutor comparativo uma realidade que acompanha de perto há décadas: a da política argentina. Além de lutar contra a ditadura brasileira, Flavio Koutzii participou também da luta armada contra a ditadura argentina, sendo preso em Buenos Aires, em 1975. Ficou quatro anos preso, sofrendo torturas físicas e psicológicas. A comparação com a situação da política argentina não é gratuita.
Para Koutzii, os governos Kirchner fizeram algo que faltou aos governos nacionais do PT, a saber, uma disputa mais sistemática do sentido político das realizações e dos conceitos do governo e a disposição para assumir alguns confrontos, como fizeram no tema da mídia, por exemplo. Mesmo com a derrota eleitoral agora, defende, essa postura produz outro tipo de educação política na sociedade, o que deverá dificultar os planos do novo presidente, Mauricio Macri.
No plano estadual, o ex-chefe da Casa Civil do governo Olívio Dutra enxerga o governo de José Ivo Sartori (PMDB) adotando a mesma lógica de “fazer todo o mal de uma só vez”, aplicada por Macri. E seguindo uma mesma agenda neoliberal também, de diminuição do papel do Estado e de ataque aos servidores públicos. Mas, para Koutzii, Sartori não tem apenas uma “cara de Macri”. “Ele também tem seu lado de Yeda. Ele não usava a expressão ‘déficit zero’, mas está atuando exatamente como se fosse, de um modo até mais radicalizado”. Essa política, afirma, “está partindo o Rio Grande ao meio”.
“A rede Globo, como o William Bonner disse várias vezes, sempre teve acesso a informações e conteúdos de gravações em primeira mão. Não é preciso nenhuma paranoia para perceber que foram movimentos coordenados”.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 04-01-2016.
Eis a entrevista.
Até o início de dezembro havia, junto ao governo federal e às lideranças do PT e de partidos aliados, uma perspectiva muito pessimista em relação ao final de ano. No entanto, a partir da decisão do STF sobre o rito do impeachment e de alguns outros acontecimentos, o final de 2015 não foi tão ruim como chegou a ser esperado. Qual a avaliação que você faz sobre o desfecho de 2015 no cenário político?
O ritmo segundo o qual as coisas vinham acontecendo tinha uma velocidade espantosa. Parecia uma sucessão inesgotável de novidades negativas. Na verdade, no meu julgamento, isso era fruto de uma dinâmica desencadeada, por um lado, a partir de problemas que efetivamente aconteceram envolvendo condutas inaceitáveis de agentes políticos e, por outro lado, a partir de um movimento homogêneo na chamada grande imprensa, alimentado diariamente pelas Vejas da vida e companhia. Tudo saía muito bem articulado. A rede Globo, como o William Bonner disse várias vezes, sempre teve acesso a informações e conteúdos de gravações em primeira mão. Não é preciso nenhuma paranoia para perceber que foram movimentos coordenados.
O fato de vários acontecimentos existirem não quer dizer que todas as pessoas estão condenadas a avaliarem tais acontecimentos segundo a visão construída pela direita brasileira, que se articula claramente com uma tentativa de golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, algo que já externei há muito tempo. Eu estava, de fato, muito pessimista. Achava que era uma coisa avassaladora. E juntava-se a isso as políticas escolhidas pelo governo com uma inflexão diferente daquelas adotadas desde o início do governo Lula até aqui, por meio das quais conseguimos cumprir certa pauta desenvolvimentista. Os resultados dessas políticas acabaram ficando, neste último período, opacados por essa ofensiva permanente da direita.
Além disso, essa sequência de acontecimentos deixava integrantes do governo e a militância do PT e de outros partidos aliados numa posição defensiva. Sempre era preciso dar uma explicação e não era possível tratar pelo nome as coisas que estavam acontecendo. Havia manipulação, uma articulação midiática no tratamento dos fatos e um golpe em curso. Essa era a situação geral até a virada que ocorreu nas últimas semanas de dezembro. Houve certa surpresa com algumas decisões muito recentes e essa surpresa precisa ter uma explicação. Ao menos, deve-se buscar essa explicação. Neste final de ano, a direita continuou se comportando como vinha fazendo, sem conseguir, porém, os mesmos resultados nem uma ofensividade para tentar arrematar o governo, o PT e o campo de esquerda em geral.
Acho que a explicação para isso passa pelo papel desempenhado pelo Eduardo Cunha. Ele colaborou bastante para essa perda de eficácia, por sua absoluta imoralidade e por seu cinismo extraordinário. Várias denúncias envolvendo esse personagem acabaram implodindo o processo em construção que tinha por meta a permanente culpabilização do governo, mesmo por meio de pautas falsas como a da lei de responsabilidade fiscal. Talvez isso explique tanto a falta de fôlego das manifestações de dezembro, como também a retomada da capacidade da esquerda e ir para a rua responder a ofensiva da direita, coisa que não vinha acontecendo. Mesmo que a escala ainda seja pequena, essa retomada foi importante e ela só se deu também pelo rompimento dessa bolha do movimento pelo impeachment.
Houve o estilhaçamento de um quadro que estava congelado. Esses personagens foram tão longe e se desmoralizaram tão rapidamente que isso acabou produzindo uma alteração do humor absolutamente unilateral e maniqueísta que estava estabelecido. Essa me parece uma das razões importantes para que a velocidade dos acontecimentos começasse a ficar um pouco mais lenta.
A conjunção desses acontecimentos deslocou um pouco o imaginário da população que estava sendo capturado de forma unilateral pela ideia de que o governo Dilma era o lugar de todo o mal e eles eram a virtude. Nas últimas semanas, ganhou-se fôlego contra essa ideia, mesmo que isso se dê em circunstâncias complexas e adversas. O ano vai começar com um quadro um pouco diferente, falando de forma discreta e prudente. Eu estava muito pessimista em relação aos desdobramentos dos acontecimentos de 2015. A situação amenizou um pouco, mas continuo achando que a palavra de ordem da direita segue sendo aquela formulada pelo senador Bornhausen: “temos que acabar com essa raça”. Essa é a frase mais adequada para explicar o que eles estão fazendo. Os acontecimentos relatados na entrevista com a Manuela (ao Sul21) e o recente episódio envolvendo Chico Buarque mostram uma agressividade espantosa, inclusive física.
Como alguém que viveu o período pré-1964, você vê alguma semelhança entre o atual ambiente de agressividade político e o clima vivido antes do golpe? É possível fazer alguma comparação entre esses dois períodos?
Eu já estava militando naquele período, mas era muito inexperiente. No segundo semestre de 1963, eu fui a um congresso em Minas Gerais que reuniu diferentes forças da esquerda existentes na época e lá companheiros mineiros falaram que o clima estava subindo pesadamente. Mas acho que essa comparação não é muito adequada, não pela obviedade de que estamos em outra época, mas sim porque a fluidez da informação que se tem hoje e a facilidade com que se pode fazer coisas como convocar grandes manifestações representam uma diferença muito grande. Em 1964 tínhamos uma espécie de anticomunismo beato, do tipo Tradição, Família e Propriedade. Hoje a situação é muito mais complexa.
Estamos falando de um governo que teve três presidentes da República e está no quarto agora, derrotando nas urnas a direita neoliberal. Essa circunstância histórica faz uma diferença cavalar, pois com as realizações dos governos Lula e Dilma, com seus erros e limites, houve uma vasta construção de políticas sociais que colocam em outros termos a própria capacidade de resistência e de entendimento da população. É isso que explica que Lula tenha sido reeleito logo depois da história do mensalão e que a Dilma tenha sido eleita. Isso está longe de ser uma abstração para forçar uma interpretação. Ao contrário, é uma evidência enorme para entender o que conseguiu se manter, mesmo em condições adversas.
O avanço da direita e do conservadorismo não é uma exclusividade brasileira. Também está ocorrendo em outros países na América Latina e na Europa. Os recentes resultados eleitorais na Argentina e na Venezuela são um indicador disso. Você acompanha de perto, há longo tempo, a situação política argentina. Como avalia essa nova situação política? É possível falar do fim de um ciclo?
Estou convencido que não. Há uma coisa muito singular no caso argentino e que representa um contraste enorme com o que ocorreu no Brasil nos últimos anos. Há uma espécie de cimento de outra natureza, que é a própria existência do peronismo, que formou uma argamassa capaz de juntar e se relançar politicamente sob a forma do kirchnerismo. É uma história muito longa. Eu não tenho nenhuma simpatia pelo peronismo, mas esse é um elemento inegável. Não existe isso hoje no Brasil com o varguismo e o PDT. Lá tem.
Os governos kirchneristas marcaram, logo no início, uma posição contundente no tema dos direitos humanos. Essa posição não foi inaugurada pelos Kirchner, mas foi levada muito a fundo por eles. Há uma cena histórica notável que ilustra bem isso: o presidente Nestor Kirchner, durante uma visita ao Colégio Militar, determinou ao comandante recém nomeado que retirasse na hora as fotografia dos generais Videla e Bignone que estava na parede. Ele tirou na hora.
Esse gesto teve uma grande potência simbólica e metafórica. Depois disso, Kirchner enfrenta a questão da dívida e desenvolve um mecanismo alternativo: a compra de uma quantidade importante dos bônus da dívida, mediante um deságio. O debate atual sobre os chamados “fundos buitres” é uma tentativa de anular esse deságio. Ele também promoveu, entre outras medidas, a renacionalização da YPF (a Petrobras argentina), e a retomada da Aerolíneas Argentinas, que tinha sido vendida para a Iberia. Isso é muito emblemático da cultura política argentina onde o tema do nacionalismo e do patriotismo é muito mais nítido e forte do que o que eu percebo no Brasil.
Mais recentemente, o governo de Cristina Kirchner lançou um programa muito semelhante ao Minha Casa, Minha Vida, e enfrentou como ninguém o tema dos meios de comunicação. Ela tinha um diferencial importante para conseguir fazer isso: maioria no Congresso. O governo conseguiu aprovar a Ley de Medios no Congresso, sofrendo um ataque permanente da direita, com os mesmos argumentos de sempre, que se repetem aqui no Brasil também, como se fosse um atentado totalitário contra a liberdade de imprensa. Na verdade, o conteúdo fundamental era a descentralização monopólica dos meios de comunicação. O programa estatal Futebol para Todos comprou os direitos de transmissão dos jogos de futebol do campeonato argentino e liberou o acesso para toda a população. Não é um pequeno exemplo. É uma política com um conteúdo potentíssimo e uma expansão capilar da mesma natureza.
O diferencial notável que procurei indicar com os exemplos acima é a existência de confrontação, o que foi uma grande crítica dirigida aos Kirchner, que teriam dividido a sociedade argentina ao meio, etc. Na verdade, se trata de algo que aqui não foi feito. A linguagem da campanha eleitoral, agora, sempre falou na existência de dois projetos para o país. Isso produz uma politização e também produz adversários mais raivosos que usam, entre outros truques, a ideia de que querem mais tranquilidade e menos conflito. Mas essa história que já foi escrita em oito anos produz, não só pelas políticas positivas realizadas, de caráter popular, uma educação política diferenciada. Os caras têm lado e têm uma noção de classe, que não chega a ser a terminologia clássica do marxismo, mas que produz uma identificação mais clara com os direitos dos trabalhadores. Isso bate com aquela ideia que as velhas gerações tinham: esse governo defende determinados direitos. Mudaram completamente o sistema de aposentadoria, voltando a recuperar direitos que tinham sido perdidos com a privatização.
No governo Lula, evitar o confronto era uma linha tática consciente e pode até ter tido efeitos para conseguir o que conseguiu. Mas há também a herança disso. E a herança disso é o que o nós e o eles – tem gente que não gosta dessa linguagem, eu gosto – não se constitui, não se consubstancia numa certa identidade. Na hora “h” muita gente votou neste projeto, é verdade, caso contrário não teríamos tido quatro vitórias eleitorais consecutivas. Mas há um tema essencial aí, comparativamente com o que ocorreu na Argentina. Nós nunca fomos atrás dos fatos positivos para explicar por que os constituíamos, quais eram as nossas razões.
O exemplo mais fácil sempre foi o Luz para Todos. Não chegamos para a população e dissemos: sabe por que é o Estado que faz esse programa? As empresas privadas só levam energia para lugares onde podem ter rentabilidade. Então, o governo está disposto a gastar um pouco mais para que a luz chegue aos lugares mais longínquos, e isso é uma diferença clara entre um governo que pensa socialmente e um setor privado que pensa só nos seus lucros. Não é preciso ter uma formação política muito complexa para entender isso. A defesa em geral do Bolsa Família é outro exemplo notável. A direita sempre argumentou para tentar desconstituir esse programa. Nós poderíamos ter trabalhado mais para reforçar o que, na vida real, estava sendo feito para as pessoas.
Então, no caso da Argentina, você avalia que não cabe falar em fim de ciclo porque existe na base da sociedade uma consciência política mais clara a respeito do que foi conquistado nos últimos anos?
Sim. O próprio resultado da eleição foi muito apertado. Não era o que a direita imaginava. O que eu quis chamar a atenção é que existe base social e memória recente consolidada. Insisto nisso que coloquei como um diferencial que não foi desenvolvido aqui no Brasil, apesar das virtudes dos nossos governos, socialmente falando. O que vai acontecer agora na Argentina, após uma eleição tão polarizada? Macri começou a por em marcha, imediatamente, a sua agenda. Todo o seu ministério é formado por executivos dos grandes monopólios que existem lá. É o ministério dos patrões mesmo, dos grandes capitais. É de uma obviedade fantástica.
Antes mesmo da troca de governo, houve um hiato provocado por uma decisão de dois juízes, instigada pela frente do Macri, que praticamente destituiu a presidente Cristina dos rituais de transmissão do cargo. Ficou um intermediário durante dois dias e meio e foi ele que passou os símbolos da presidência para Macri. Do ponto de vista simbólico, isso significou a destituição da presidente por dois dias com o apoio cego de setores do Judiciário. Isso dá uma ideia do estilo do novo presidente que, imediatamente, promoveu a desvalorização do peso, medida que tem repercussão sobre os salários. Na largada, as pessoas terão uma perda de 30 a 35% no valor real de seus salários. Ele também tratou de desmontar imediatamente a Ley de Medios, afastando pessoas que tinham mandato constituído e acabando com programas da TV Pública como o 678, que fazia um debate crítico sobre o comportamento da mídia. Esse programa, aliás, talvez seja o mais emblemático sobre o que não tivemos aqui no Brasil. Cumprimos os cânones de como se faz publicidade, seguimos as regras exigidas pelo mercado e nunca nos atrevemos a criar um canal independente de dimensão nacional. Duas semanas depois de Macri assumir, o programa foi suspenso e retirado da grade de programação da televisão pública.
Foram medidas absolutamente violentas que seguem aquela lógica de fazer todo o mal de uma só vez. Só que não é só uma vez. Eles começaram com um pacote impressionante e vão continuar. É tão nítida, inclusive para seus eleitores, essa linha furiosa, que ela acaba sendo, na prática, um decodificador potentíssimo para quem queria que houvesse uma mudança. É por isso que afirmo que o embate vai continuar, que a memória que já existia se reforça e que aqueles que votaram nele com um desejo sincero de menos polarização serão rapidamente chamados a refletir sobre o sentido dessa política de matar ou morrer, aplicada por Macri. O padrão de comportamento na transição, a composição do ministério e as primeiras medidas indicam isso.
Outra medida que ele tomou logo nos primeiros dias tem a ver com o conflito que ocorreu em março de 2008, quando o governo argentino adotou um imposto sobre a exportação de grãos, o que provocou uma grande reação do setor ruralista. Macri suspendeu imediatamente esse imposto, seguindo um padrão extraordinário de fidelidade aos donos do poder.
Aqui no Rio Grande do Sul, há quem defina o primeiro ano do governo Sartori nesta linha do “fazer todo o mal logo de uma vez”, que está sendo adotada por Macri na Argentina. Qual sua opinião sobre essa comparação?
Também acho a mesma coisa. Sartori é um Macri que não deu certo. Mas ele também tem seu lado de Yeda. Ele não usava a expressão “déficit zero”, mas está atuando exatamente como se fosse. Como deputado, ele não era exatamente alguém que fazia o discurso clássico do neoliberalismo. Eu diria que ele, na prática, está adotando uma prática ainda mais radicalizada. Talvez essa linha tenha contado com um certo benefício do capital de simpatia que ele trouxe da campanha com o discurso “meu partido é o Rio Grande”. Na verdade, ele está partindo o Rio Grande pelo meio. É o único governante que está conduzindo, infelizmente, à perda de salário real das pessoas, que é o que aconteceu com o Macri agora. Os projetos que ele apresentou, especialmente a Lei de Responsabilidade Fiscal, erguem um muro de chumbo que impede qualquer melhoria salarial e ainda provoca retrocessos.
Considerando essas medidas, vejo como atuamos corretamente no governo Tarso. Se eles querem governar o Estado precisam ter uma concepção de como fazê-lo, precisam de um projeto para o Estado e um projeto de como enfrentar as suas dificuldades, que todo mundo sabe que existem. Nós já tínhamos empréstimos internacionais encaminhados vinte dias antes de assumirmos o governo. Mais do que isso, a nossa política de reajuste salarial que, no caso de algumas categorias, previa parcelas que seriam pagas mais adiante, também faz parte de um conceito. O que é espantoso na opinião pública e nos indutores da opinião pública é o fato de que todo mundo quer, com razão, mais segurança, melhores escolas e melhor atendimento de saúde, mas não são capazes de juntar duas coisas básicas, ou seja, só a existência de recursos permite melhorar um pouco o que está insuficiente.
Então, essa linha, intoxicada pela mídia direitista e corporativa, deixa incompreensões no ar. A Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, significa colocar um segundo muro, além da lei similar que existe em âmbito nacional, para barrar a capacidade do Estado de oferecer melhor serviços à população e atuar como indutor do desenvolvimento. Em nome disso, promove inclusive retrocessos em salários que já tinham sido pactuados pelo nosso governo. Há uma ironia no fato de que, após os nossos dois governos aqui no Estado, a maioria das pessoas acabou votando no candidato bonzinho do PMDB que, logo na largada do governo, arrebenta com todas as categorias, como Sartori está fazendo.
Assim como ocorreu com os governos Kirchner na Argentina, o governo Olívio Dutra, aqui no Rio Grande do Sul, também foi rotulado como um “governo de conflito”. O governo Tarso Genro teve um estilo diferente, mas ambos acabaram sendo derrotados nas urnas. Na tua avaliação, além de governar bem, o que falta para fazer com que experiências de governo desta natureza tenham prosseguimento? Qual o déficit a ser enfrentado aí?
Em primeiro lugar, gostaria de fazer uma observação sobre o governo Olívio. Além de algumas políticas que fizemos e que, me parece, foram muito interessantes, era insuportável para o establishment gaúcho a existência de um governo do PT. Não vou recapitular essa história, que é bem conhecida, mas cabe lembrar que a mídia funcionava diariamente com uma sanha impressionante, sobre qualquer aspecto. Nada ficava de fora. Lembro, por exemplo, do Mendelski falando mal das lombadinhas que construíram perto da Usina do Gasômetro. Qualquer tema era atacado. Por outro lado, como membro desse governo, acho que a sua virtude principal era aquilo que a direita apontava como nosso defeito, ou seja, a coragem de ter uma linha. Ainda estávamos muito perto de um PT com mais músculos que tem hoje, com mais linha fundadora presente. O que nós fizemos estabelece um contraste interessante com os nossos governos nacionais.
O governo Tarso, mesmo com outro estilo e mais habilidade para lidar com as situações, antecipando-se inclusive em alguns conflitos potenciais, também acabou sendo profundamente indigesto para a elite local. Do ponto de vista nacional, o que falta, na minha opinião, é isso que eu contrasto com o que foi feito na Argentina, ou seja, a disputa do sentido político das realizações do governo. Deixamos escapar isso que nos daria uma potência muito maior. No final da campanha da Dilma, em 2014, isso foi feito, ao se dizer que estavam em disputa dois projetos diferentes para o Brasil. E funcionou, pois passou a produzir uma explicação simples e compreensível para a maioria da população.
No início da entrevista, você referiu como uma das novidades do final de 2015 foi a retomada da capacidade da esquerda de colocar gente na rua. Essas mobilizações foram resultado também de algumas novas iniciativas que buscam construir novas frentes políticas no campo da esquerda, reunindo partidos e movimentos sociais. Como avalia a posição do PT nesta conjuntura e a possibilidade de construir essas novas frentes políticas?
Essa disposição de diferentes grupos de esquerda marchar juntos em certas manifestações me surpreendeu positivamente. Isso se deve, na minha opinião, entre outras coisas, ao amadurecimento de alguns grupos mais à esquerda, que compreenderam o que está em jogo, ou seja, a ameaça de um golpe judicializado, do tipo do que ocorreu no Paraguai, e a desconstrução do que foi construído e que é muito benéfico para a população. Por outro lado, tenho uma visão muito crítica sobre as possibilidades que o PT tem para enfrentar essa conjuntura. É tudo muito complicado na maioria das decisões dos últimos anos, marcadas por omissões e uma grande despolitização. Eu sou cético quanto à possibilidade de o PT reagir de forma significativa. Para os interessados neste tema, sugiro a leitura de um instigante artigo do André Singer, publicado na edição de dezembro da revista Piauí.
Tomando o campo da esquerda de um modo geral, talvez um banho de realidade faça bem. Há uma série de sinalizações que mostram onde essa ofensiva da direita pode ir parar, assim como ficou claro agora no caso da Argentina. Tenho certa expectativa que, no médio prazo, algumas evidências revigorem um pouco a percepção das pessoas sobre essas noções de ter um lado, de que lado se está, o que é preciso proteger, a quem devemos prestar solidariedade e por quais razões.
Na sua opinião, essas noções não estão muito claras hoje?
Como já referi, eu avalio que nossos governos nacionais tiveram um déficit na disputa do sentido político das realizações que promoveram. Não estou dizendo que o governo deveria fazer a função do partido. O governo deveria fazer a função de defender e explicar as políticas que escolheu realizar. Além disso não ter acontecido como deveria, o partido sofreu um processo de despolitização, ficando “constrangido” quando era preciso discutir qualquer coisa que não fosse dar acordo ás políticas do governo. Essa despolitização cobra um alto preço presente. Precisamos voltar a chamar as coisas pelo nome para ajudar a educar uma nova geração que é esta que pega quatro governos petistas.
Sei que isso lembra o propagandismo da velha guarda. Mas acho que discutir as coisas não é propagandismo. Frente a um quadro tão dramático como o que tivemos, enquanto governo e enquanto partido, com as excrescências enormes que apareceram, o debate pode ser um elemento imprescindível. Não uma discussão diletante, mas sim uma conversa para revitalizar o tecido partidário e social, voltando a fazer algumas coisas como antes. Debater de modo que os fatos sejam identificados, que o nome correspondente a eles seja dado e que sua problematização seja discutida tanto quanto for necessário.
Isso pode parecer meio remoto, mas precisamos ter em mente que temos diante de nós uma geração diferenciada. Não é a geração que construiu o PT, mas sim que está colhendo os efeitos de tudo o que foi feito nos últimos anos e de tudo o que nós deixamos acontecer. Isso exige outro tipo de síntese entre o que é preciso ainda lutar, o que se faz com a luta que aconteceu, com todos os seus acertos, mas também com todos os desvios impossíveis de aceitar. Essa luta não encerra a nossa existência e não deve encerrar – penso nos mais jovens, não tem como falar de outra maneira a essa altura da minha vida – a luta dos que terão energia para retomar a caminhada. Sofrerão por algum período, mas precisam ter uma munição fundamental: a capacidade de entender o que aconteceu. Não se trata de conciliar com o que aconteceu, mas de entender, de distinguir entre o que é aceitável e o que não é, e, a partir disso, cumprir outra caminhada que é necessária.
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‘Sartori está partindo o Rio Grande ao meio com uma política mais radical que a da Yeda’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU