23 Outubro 2016
“Se as dioceses precisarem de um bispo, podem ligar para o meu celular: 138/03334XXX”. Desse modo, no começo de setembro, o padre chinês Paulus Dong Guanhuá prometia ordenações episcopais a pedido, nas páginas do sítio católico “tianhujiao.online”. Depois, em 11 de setembro, trajado de bispo (com mitra e báculo), Paulus Dong celebrou a missa de sua posse episcopal em uma igreja da diocese de Zhengding, na província de Hebei, em companhia de algumas centenas de fiéis.
A reportagem é de Gianni Valente e publicada por Vatican Insider, 21-10-2106. A tradução é de André Langer.
No caso do autoproclamado bispo e de sua ordenação episcopal, sem o consenso da Santa Sé, há muitas perguntas, inclusive a hipótese de que tal ordenação nunca aconteceu. Mas, com o tempo, em torno do caso Dong vão surgindo detalhes reveladores. Peças de uma operação político-eclesiástica, cujo objetivo é a negociação entre Pequim e a Santa Sé sobre a condição presente e futura dos bispos católicos chineses.
As informações de que se dispõe sobre a ordenação do suposto bispo são poucas e, talvez, intencionalmente incompletas. De acordo com as reconstruções que circularam nos blogs católicos chineses, em maio deste ano, Paulus Dong teria começado a fazer referências publicamente sobre a sua ordenação episcopal no passado (inclusive em 2005), e sobre o segredo que teria guardado a este respeito segundo uma disposição da Santa Sé. Agora, o bispo teria decidido revelar suas cartas e começado a exercer suas funções episcopais, para ocupar-se do estado de emergência que, em sua opinião, desencadearam as negociações entre a Igreja católica e a China Popular. Em diferentes ocasiões e com diferentes interlocutores, Dong proporcionou informações vagas e contraditórias sobre o bispo consagrante, afirmando e desmentindo que tinha recebido a ordenação do bispo ancião Casimirus Wang Milu, que sofre há algum tempo de desequilíbrios mentais. À Agência UcaNews, Dong disse que tinha sido ordenado ilegitimamente por outro bispo, mas se negou a dar o nome com medo de que aumentasse a pressão dos aparelhos chineses.
As versões contraditórias dadas pelo suposto bispo parecem ter sido disseminadas de propósito com vistas a criar confusão. E representam um obstáculo para eventuais intervenções da Santa Sé, que, sem ter confirmações, não pode pronunciar-se com determinação sobre uma questão tão delicada. Até mesmo a data da suposta ordenação, mantida em segredo desde 2005, parece ter sido calibrada para ficar fora das disposições contidas na Carta de Bento XVI aos católicos chineses, publicada em 2007. Nesse texto magisterial, o Papa Ratzinger revogou oficialmente as faculdades especiais (na realidade suspensas desde muito tempo antes) que nos anos 80, na situação de emergência que se criou com a perseguição, permitiam aos bispos chineses celebrar consagrações episcopais sem contar com a aprovação preliminar do Papa.
Embora muitos aspectos da operação Dong sejam vagos, a mão que a dirige tem características facilmente reconhecíveis. Declarou-as o próprio suposto bispo no texto que publicou em “tianhujiao.online” em 02 de setembro. Nessas poucas linhas, com uma linguagem às vezes desconexa, Dong cita a conversa entre a China Popular e a Santa Sé como uma manifestação da Grande Apostasia que, segundo São Paulo, precederá o retorno de Cristo. Também cita, instrumentalizando-as, as considerações que fez em junho deste ano o cardeal Joseph Zen, bispo emérito de Hong Kong. Zen, como católico adulto e consciente, sugeria seguir a bússola da própria consciência ao julgar eventuais acordos entre a China e a Santa Sé. Além disso, Dong defendia a urgência de recordar e seguir os chamados “13 pontos de Fan”, o memorando que o bispo Joseph Fan Xueyan fez circular em 1987 que, entre outras coisas, chamada os fiéis dos ambientes “clandestinos” a não receber os sacramentos nas igrejas de sacerdotes e bispos que colaboravam com a política religiosa chinesa.
A alusão aos “13 pontos de Fan” tem muitas implicações. Nos anos 80, enquanto recrudescia a perseguição mais cruel, que coincide com a Revolução Cultural, Fan foi um dos protagonistas da vida dos ambientes católicos conhecidos como “clandestinos” que sempre se negaram a submeter a vida eclesial às regras e aos organismos de controle “patrióticos” vinculados às autoridades civis. Nessa época, ele teve um papel chave na rápida difusão de uma rede de bispos chineses “clandestinos”, não reconhecidos e, muitas vezes, perseguidos pelos aparelhos de segurança, e o fez em virtude da faculdade que lhe foi concedida pelo Papa Wojtyla de ordenar novos bispos sem sequer comunicar a Santa Sé. Ao propor novamente os “13 pontos”, Dong dá a entender que a situação atual, com um possível acordo entre a Santa Sé e o governo comunista chinês, representa um “estado de emergência” semelhante ao que se viveu nos tempos de Fan, e chama a refugiar-se com iniciativas e faculdades extraordinárias análogas às que surgiram nessa época. Inclusive a decisão de ordenar bispos ilegítimos sem o consenso do Sucessor de Pedro.
O intento de Dong consistiria, pois, em verificar se existem as condições para o surgimento agora, como nos tempos de Fan, de uma rede de novos bispos subterrâneos, ordenados sem prévio consentimento papal e prontos para resistir às eventuais consequências do iminente acordo entre a China Comunista e a Santa Sé. A mensagem dirige-se, evidentemente, às comunidades “clandestinas”. Mas, justamente, desses ambientes chegou até agora a resposta mais iluminadora e consoladora à obscura provocação do suposto bispo Dong.
A Santa Sé guarda silêncio e, sem necessidade de receber instruções do exterior, Julius Jia Zhiguo, bispo legítimo de 81 anos (reconhecido pela Santa Sé) e da diocese de Zhengding (a mesma da qual o suposto bispo Dong diz ser titular), divulgou no dia 13 de setembro entre os seus presbíteros e na diocese um comunicado para anunciar a excomunhão “latae sententiae” (automática e sem necessidade de declaração explícita) na que incorreu Dong por sua ordenação episcopal sem o consenso da Santa Sé. O bispo Jia, considerado um estandarte vivo pelos católicos do ambiente “clandestino”, é admirado pela simplicidade evangélica com que exerce seu ministério episcopal e passou vários períodos preso ou sob vigilância por ter continuado seu ministério episcopal, sem ser reconhecido como tal pelo governo chinês.
Diversas fontes locais informam que há alguns anos o bispo Julius Jia tinha suspenso o padre Dong de seu ministério sacerdotal. Em algumas conversas privadas, o próprio Dong afirmou que a decisão de tomar posse da diocese de Zhengding tornou-se necessária, posto que o idoso Julius havia entrado em contato com os aparelhos do governo para solucionar os problemas das obras de reforma de algumas igrejas. Sua decisão de colaborar com as autoridades, segundo Dong, o teria convertido automaticamente em bispo oficial, motivo pelo qual os católicos “clandestinos” de Zhengding necessitavam de um novo bispo em que “pudessem confiar”.
A reação imediata de Jia foi um reflexo do “sensus fidei” que guardou e que guia os pastores e os fiéis das comunidades clandestinas, inclusive diante das incógnitas do presente. Os blogs católicos chineses estão cheios de batizados que se afastam das iniciativas do suposto bispo Dong, rodeando-o com um espontâneo cordão sanitário para isolá-lo. Até o momento, as palavras mais lúcidas e clarividentes para defender o Povo de Deus do escândalo e da confusão que a operação Dong provocou chegam, e seguem chegando, dos bispos e dos presbíteros “clandestinos”: “Tomemos tudo isto”, exortou o sacerdote “clandestino” Paulus Han em um blog (muito lido), “como uma lição da história. Não nos deixemos confundir nem espantar por estas pessoas que perseguem seus interesses usando a fidelidade como uma consigna, enquanto, na realidade, instigam à rebelião. Gastemos nossas energias para servir à unidade da Igreja chinesa, em vez de nos esconder em nossos pequenos círculos para nos convencer de que os únicos justos somos nós ou, pior ainda, semear confusão”.
Faz-lhe eco José Han Zhi Hái, bispo clandestino de Lanzhou: “Este caso”, disse o bispo Han em uma entrevista ao Vatican Insider, “demonstrou que também na China a boa semente da fé cresce entre a cizânia. Há muitos que se aproveitam da simplicidade dos fiéis para a sua sede de poder. Sinto-me mortificado e impotente. Nós procuramos sair da ‘clandestinidade’ para viver melhor o Evangelho em nosso ambiente. E o mesmo fazem os irmãos das comunidades oficiais, os que têm a paixão de oferecer o testemunho de sua fé em Cristo e que não podem ser acusados de sacrificar a doutrina da Igreja”. As mesmas palavras vêm de José Wei Jingyi, bispo “clandestino” de Qiqihar: “Nós estamos felizes de caminhar juntos com todos os que estão em comunhão com o Papa. O resto não nos interessa”.
A operação Dong também fez emergir, em termos objetivos, o “sensus fideis” de muitos expoentes das comunidades clandestinas. Mas a história foi temperada com chaves de interpretação que a credenciam como uma manifestação sintomática, uma espécie de erupção cutânea do mal-estar que existe entre as comunidades “clandestinas” em relação ao processo de diálogo com o governo chinês empreendido pela Santa Sé. “Em filigrana”, escreveu, por exemplo, Eglises d’Asie (Eda), a agência de informação da Sociedade para as Missões Estrangeiras de Paris, “lê-se a frustração de certos ambientes ‘clandestinos’ em relação a Roma, que não compreendem as negociações em andamento entre a Santa Sé e Pequim”. O órgão das MEP, para quem anos atrás escreviam missionários apaixonados e profundos conhecedores da questão chinesa como Jean Charbonnier, cita os rumores segundo os quais na China já haveria “de cinco a dez” bispos ordenados nas comunidades “clandestinas” sem o consentimento pontifício. A manobra midiática do suposto bispo Dong, longe de tratar-se de um caso isolado com implicações psiquiátricas, é acreditada pela Eda como um anúncio do “perigo, muito real, de que se produza um cisma na Igreja na China”, por não ter atendido os alarmas sobre o “sentimento de isolamento” vivido pelos católicos “clandestinos”.
Assim, a “operação Dong” se converteria em ponto de partida para acreditar juízos que dão a culpa à Santa Sé e ao seu modus operandi em relação ao governo chinês. As dificuldades e os problemas que caracterizam esta delicada fase (inclusive o caso do suposto bispo ilegítimo de Hebei) transformam-se em ocasiões das quais se aproveitam os círculos e os grupos ativos principalmente fora da China, interessados em criticar e, talvez, evitar a possibilidade de um acordo entre Roma e Pequim. E estariam inclusive dispostos a estender as sombras do cisma sobre todos os ambientes eclesiais “clandestinos”.
Manobras sofisticadas, às quais responde com uma ponta de indignação José Wei: “Temos sido fiéis ao Papa e à Igreja de Roma”, destaca o bispo “clandestino” de Qiqihar, “pagando com humilhações e sofrimentos, e ainda o somos, enquanto a Santa Sé negocia com o governo chinês para resolver os problemas. Sabemos que pode haver riscos, mas não pretendemos que tudo esteja garantido antes mesmo de começar o caminho. Somos católicos porque confiamos em Jesus e, por isso, confiamos no Papa. A ideia de que estaríamos prontos para nos rebelar contra o Papa justamente agora, depois de tudo o que passamos e permanecendo fiéis, é um insulto à nossa inteligência”.
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China. Os católicos “clandestinos” rejeitam a “operação Dong” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU