28 Janeiro 2015
Entre a Igreja e a China, "desde os tempos antigos", há uma "ferida aberta" que "deve ser tratada e curada". Por isso, é preciso que a Santa Sé dialogue com o governo chinês, talvez dando "o primeiro passo". Porque só se for desfeito o nó emaranhado das relações entre a Igreja e o poder político é que poderão desaparecer também as causas da divisão entre os católicos chineses. A fala clara e livre é de José Wei Jingyi, bispo de Qiqihar, na província norte-oriental de Heilongjiang.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada no sítio Vatican Insider, 22-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Todos sabem que a sua ordenação episcopal não é reconhecida pelo governo e o conhecem como forte expoente da área eclesial chamada de "clandestina": expressão infeliz e enganosa, usada para indicar aquela parte de bispos, sacerdotes e fiéis que não se submetem a organismos e métodos da política religiosa de Pequim.
Aos 57 anos, natural da diocese de Baoding, Dom Wei viveu três períodos de detenção e de restrição das liberdades pessoais no passado; o mais longo durou mais de dois anos, de setembro de 1990 a dezembro de 1992. Também por isso as suas palavras soam eloquentes e comprometedoras.
Eis a entrevista.
O senhor nasceu em 1958. Mao estava no poder há algum tempo. Como o senhor se tornou cristão?
O primeiro da minha família a receber o batizado foi o meu avô. Cresci tendo à minha frente o exemplo dos meus pais, bons cristãos. Quando eu era pequeno, houve a grande fome: da província de Hebei, que circunda Pequim, tivemos que emigrar para o nordeste, na província de Jilin.
A sua infância coincidiu com os tempos da Revolução Cultural. Como foi conservada a fé naquele tempo de provação?
Por anos e anos, não vimos um padre. Não se podia manifestar a fé cristã publicamente. Em toda a região, havia poucas famílias católicas, espalhadas longe uma das outras. Lembro que, de vez em quando, com algumas delas, nos encontrávamos e rezávamos juntos, trancados em casa, especialmente por ocasião das grandes festas. Seguimos em frente assim.
Até quando?
As coisas começaram a mudar no fim dos anos 1970. Foi então que também floresceu o desejo de me tornar sacerdote. Antes da Revolução Cultural, um irmão do meu pai era monge trapista, e outros tios também haviam estudado no seminário.
Na China de agora, as famílias cristãs continuam desempenhando um papel tão forte na comunicação da fé cristã?
Agora, o ritmo da sociedade mudou, há um frenesi que abala tudo. Muitas famílias cristãs também não encontram o tempo para rezar juntas, como acontecia uma vez. Não se pode dizer que isso não aconteça mais. Mas é menos forte e vivo do que antigamente. Antes, os padres esperavam os fiéis nas igrejas para confessar, celebrar a missa e administrar os outros sacramentos. Agora, para comunicar o Evangelho, é preciso sair das paróquias e mostrar a todos o que é o amor de Deus e como a fé pode florescer na vida de cada dia.
O papa também repete frequentemente que a Igreja é, por natureza, em "saída" de si mesma. Vocês acompanham o seu magistério?
Acompanhamos tudo: as homilias da missa de Santa Marta todas as manhãs e também os discursos, as catequeses das quartas-feiras, os encontros, as viagens. Através da internet, estamos atualizados sobre tudo o que ele faz e diz. Tudo chega até nós. Talvez no dia seguinte, mas chega.
E o que vocês acham?
O Papa Francisco é um dom de Deus para a Igreja de hoje e também para toda a humanidade. E as coisas que ele sugere são muito pertinentes para a condição atual da Igreja e da sociedade chinesas.
O Papa Francisco disse que a bússola a seguir é a Carta do Papa Bento XVI aos católicos chineses publicada em 2007. É isso?
Certamente. Ela representa uma linha de demarcação muito importante. Descreve com clareza como os católicos chineses devem enfrentar e viver o tempo presente, com os seus problemas.
Entre os problemas, está a divisão entre os católicos chamados "oficiais" e os "clandestinos", que muitas vezes parece alimentada por ambições pessoais e por lutas de poder.
Entre as divisões, agora, também há o carreirismo e as lutas pelo comando. Na Igreja, infelizmente, há dois mil anos, há confrontos de poder. Mas, na China atual, na origem, elas são o resultado de uma pressão que veio de fora. Dividimo-nos diante do modo como o governo trata a Igreja, e depois essas divisões se cristalizaram no curso da história. Por isso, se for resolvido o problema das relações com o governo, as divisões entre católicos também poderão ser sanadas com o tempo. Portanto, o problema das relações da Igreja com o poder político deve ser enfrentado o mais rápido possível.
Para alguns, se a Santa Sé tratar com o governo chinês, ela corre o risco de parecer submissa ou até mesmo "se vender".
É exatamente o contrário. Justamente porque há problemas, é preciso encontrar soluções dialogando e negociando com o governo, estabelecendo também canais de diálogo diplomáticos. Esse é o caminho para tentar desfazer também os nós que alimentam a divisão. Quando se enfrenta a questão da unidade da Igreja, é preciso passar por aí. Mesmo que isso envolva alguns riscos e possíveis incompreensões.
Por quê?
Porque a divisão tem as suas raízes históricas na ferida que sempre marcou as relações entre a Igreja e a China, desde os tempos antigos. É como uma ferida aberta, que deve ser tratada e curada. É preciso superar essa separação entre a Igreja e a China, que se reflete também na sociedade chinesa, porque também tem como efeito a divisão entre os católicos "oficiais" e os "clandestinos". É preciso analisar historicamente as razões, e a única maneira de fazer isso é o diálogo entre a Igreja e o governo.
Alguns dizem: a Igreja não deve confiar, antes é preciso ter garantias.
Eu acredito que qualquer teorização do conflito extremo ou de "guerra fria" contradiz o coração do cristianismo. É preciso debater sobre os conflitos e sobre os erros do passado, pedir a conversão do coração, como diz o Papa Francisco. É um caminho que tanto nós, católicos, quanto o governo podemos fazer, para renovar a relação e corrigir as coisas que devem mudar, abrindo-nos a uma situação nova e pondo de lado as decisões equivocadas no passado. Cada um deve fazer a sua parte para chegar à harmonia, à reconciliação e à paz. Esse é o caminho indicado pelo Evangelho. Mas o pensamento chinês também exalta tudo o que favorece a reconciliação e a superação da contradição.
Quem deve dar o primeiro passo?
Os primeiros passos já foram dados. Nós apoiamos todas essas iniciativas que o papa está tomando para comunicar a sua disponibilidade ao diálogo. Se uma pessoa é cristã, sempre busca dar o primeiro passo para reconciliar e tratar das feridas dos homens e da sociedade. Por isso, é justo que a Igreja dê o primeiro passo. Não deve haver uma competição para ver quem dá o próximo passo, mas quem o dá antes.
Mas, se o diálogo entre China e Santa Sé assumisse contornos mais definidos, como reagiriam as comunidades católicas na China?
A grande maioria aprovaria a iniciativa de dialogar com o governo para resolver os problemas da Igreja. Esse é o caminho para tornar mais fácil a vida dos fiéis.
Também nas comunidades "clandestinas"? Não há o perigo de acentuar a divisão?
Mesmo entre os clandestinos, a maioria concordaria. Uma minoria, talvez, no início, rosnaria, dizendo que o papa não entende, e a Igreja, assim, perde o seu rosto. Mas, depois, com o tempo, entenderiam e seguiriam o caminho tomado por todos.
Sobre as ordenações dos bispos, a carta de 2007 desejava "um acordo com o governo para resolver algumas questões sobre a escolha dos candidatos ao episcopado".
Os bispos, para pertencer à Igreja Católica, devem estar em comunhão com o papa, que é o sucessor de Pedro. Essa comunhão, em condições normais, se expressa publicamente. Seja qual for o método escolhido, é preciso que a nomeação dos novos bispos não seja feita de forma autônoma e independente, mas seja feita pelo papa ou obtenha o seu consentimento e reconhecimento. O modo como isso irá acontecer pode ser discutido. Mas esse é o primeiro a se proteger.
Há outros critérios-chave que devem ser considerados?
A orientação pastoral e canônica da Igreja na China deve ser exercida pelos bispos. Órgãos como o Comitê dos Representantes Católicos e a Associação Patriótica Católica também poderiam ser abolidos. Ou podem continuar existindo, mas sem exercer um poder diretivo sobre as questões pastorais, sacramentais e canônica, que dizem respeito à própria natureza da Igreja, que não é uma organização política. As coisas mudaram muito em comparação com os anos 1950 e 1970. Se não se quiser aboli-los, pode haver uma evolução positiva, que os transforme em instrumentos práticos e funcionais, mais adequados para as relações entre as instituições políticas e a Igreja na situação de hoje. Além disso, uma evolução deles está prevista pelos seus próprios estatutos, onde também está escrito que esses organismos não interferem nas coisas concernentes à vida de fé. Podem ser renovadas as estruturas e os escritórios, tornando-os compatíveis com a própria natureza da Igreja. O importante é que esses organismos não pretendam comandar os bispos nas coisas que dizem respeito à vida íntima da Igreja.
A Igreja Católica na China está viva. Mas a fé – disse uma vez o Papa Ratzinger – às vezes se assemelha a uma pequena chama, que pode se apagar. O que a conserva, mesmo em circunstâncias hostis?
Agora todos usam o telefone celular. É um instrumento útil. Mas, se a bateria está descarregada e não há eletricidade para recarregá-la, ele não funciona e não serve para nada. Na Igreja também é assim. Podemos nos esforçar para buscar a unidade. Mas, se não houver unidade no amor de Deus, recebido na oração, nada funciona. E todas as nossas tentativas de construir a unidade entre nós não irão a lugar algum.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O bispo clandestino: "A Santa Sé precisa dar o primeiro passo com a China" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU