Caná: vida com sabor de amizade, festa e vinho. Comentário de Adroaldo Palaoro

Foto: canva

17 Janeiro 2025

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 2,1-11.

Eis o texto.

“Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (Jo 2,10)

Talvez porque Israel e Jesus eram mediterrâneos, viram no vinho o sinal de abundância e alegria. Isto está muito presente na Bíblia e na cultura popular.

O vinho é um tema muito usado por Jesus, para falar da nova situação do Reino: vinho novo, odres novos.

A vida de Jesus transcorrerá entre refeições e encontros, banquetes e bodas, multiplicação de pães, etc. Não é muito complicado entender que o cristianismo é alimento, vida e festa em todos os sentidos da palavra.

Jesus oferece a verdadeira salvação, mas esta não vai depender de nenhuma lei (talhas). A água se converterá em vinho fora delas.

Celebrai a vida com vinho!”, nos diz Jesus, que é o amor que se expande, que contagia.

É antes de tudo o vinho dos “noivos”, daqueles que se uniram para celebrar a festa de sua vida, para beber juntos da mesma taça o vinho do amor que cresce sempre mais. É a festa de todos os convidados, entre eles Maria e os discípulos, que devem transformar o mundo à base de bom vinho. Quando há abundância de vinho e aprende-se a beber em comunhão de prazer, a vida se transforma.

Este é o motivo central da festa de Jesus que nos faz celebrantes da vida, animadores dessa festa, que é de todos, homens e mulheres, convidados ao banquete das bodas, sem que ninguém fique excluído, sem que ninguém o monopolize. Este é o tempo de passar do vinho ruim ao bom vinho de festa, de amor generoso, de bodas de vinho para todos, superando as velhas leis e purificações, para nos colocar a serviço da vida.

Com toda certeza, a festa de casamento era e é um dos momentos mais felizes e importantes na vida dos noivos; a boda é encontro, amor, alegria, festa, esperança, amizade... Talvez por isso a boda era imagem dos tempos messiânicos. O banquete de bodas foi um sinal muito utilizado por Jesus: o Reino de Deus é como um banquete de bodas ao qual somos todos convidados. Nosso Deus é “festeiro” e que organiza ricas refeições.

Esse é o sentido do “evangelho das bodas” onde está presente a alegria de um homem e uma mulher que se vinculam em amor e querem que esse amor se expanda e que chegue a todos, expresso no vinho de festa e na plenitude prazerosa. O judaísmo era religião de purificações e jejuns; por isso, precisava de muita água para as abluções. Pois bem, contra isso, o evangelho começa sendo experiência messiânica de festa. No meio dela, como animadora e guia, como irmã e amiga, encontramos a Mãe de Jesus. Não a busquemos nas penitências e mortificações, mas nas alegrias da vida. Só assim, quando saboreamos com ela do vinho de Jesus, poderemos dedicar nosso trabalho e alegria a serviço daqueles que estão excluídos e não tem acesso ao vinho saboroso.

Muitas vezes, na própria comunidade cristã tem-se impedido que haja vinho para todos: uns desperdiçam, outros só oferecem “vinagre” (ritos estéreis, mortificações, penitências...), outros retém para si o melhor vinho e não o oferecem aos outros...

Às vezes temos a sensação de que a Igreja atual se encontra na mesma situação dos noivos e dos convidados à festa: “eles não têm mais vinho”. Anuncia-se com trombetas a festa, mas não se consegue oferecer nada: só aparência de bodas, uma festa vazia, carregada de ritos que alimentam culpas, inclusive com músicos pagos, ornamentações luxuosas..., mas falta o melhor: o vinho.

Sem o vinho, nem os noivos podem pronunciar sua palavra de amor, nem os amigos podem compartilhar e celebrar com eles, conforme o ritual judaico. Esta é a situação: em muitas comunidades cristãs predomina um funeral de críticas, lamentações e abandono. E muitos vão embora da festa, pois falta o vinho.

“Enchei as talhas de água”, ordenou Jesus, pois estavam vazias. “Estavam seis talhas de pedras colocadas aí para a purificação que os judeus costumam fazer”. Em plano externo, eram necessárias para que os judeus pudessem cultivar sua pureza ritual, mas eram incapazes de oferecer às pessoas a vida e o prazer do Reino.

Em Caná, Jesus se valerá da estrutura religiosa para propor o projeto do Reino, centrado no amor e na amizade entre seus integrantes. O “melhor vinho”, símbolo da qualidade dessas relações, revela-se essencial e não pode faltar na festa existencial que Ele propõe (bodas). Com seu gesto, Jesus declara caduco a antiga ordem centrada na Lei; deslocando-a para uma melhor pauta de vida: alegria, festa, amizade...

Com sua presença numa festa de casamento, Jesus funda uma “nova comunidade”, marcada pela alegria, pela festa e pela abundância do melhor vinho.

É o momento da boda, da vida, do amor, do encontro... Somente esta passagem da água real ao vinho realíssimo da festa, da nova consciência, do prazer partilhado, expressa a novidade de Jesus.

Muitas vezes, corremos o risco de bloquear o projeto de Jesus e fechá-lo em grandes cântaros de água. Pois bem, é a hora de um novo tempo, de abrir as talhas e enchê-las de água nova, para que Jesus nos ajude a transformar a água em vinho da festa sem fim.

Festejar é afirmar a bondade e o sabor da vida.

Sem festa não conseguiremos nos ajustar bem à existência e à convivência; falta-nos a leveza existencial da liberdade e do sentido da vida. Na festa, a comunidade que celebra encontra legitimação para sua atuação, re-criando a espiritualidade da vida, aprofundando-a a nível emotivo-afetivo, reavivando a esperança que anima, antecipando a utopia que a une.

O ápice da festa é gratuito. Justamente por isso a festa tem algo a ver com o mistério da vida.

Por sua gratuidade, a festa faz descobrir a gratuidade da vida humana, a gratuidade da ação histórica.

Os evangelhos apresentam Jesus concentrado, não na religião, mas na vida. Viver o “estilo de vida” de Jesus não é só para pessoas religiosas e piedosas. É também para quem ficou decepcionado com a religião, mas sente necessidade de viver de forma mais digna e ditosa. Por quê? Porque Jesus contagia a fé num Deus festeiro, que não complica nossa vida, mas nos move a confiar n’Ele, que com Ele podemos viver com alegria pois Ele nos atrai para uma vida mais generosa, movida por um amor solidário.

A espiritualidade de Jesus não é a espiritualidade do sacrifício, do pecado e da culpa, da busca da perfeição, mas é a espiritualidade da felicidade e da alegria para as pessoas. Com sua presença, participando das bodas, das refeições festivas e dos banquetes, Jesus anunciava e indicava um outro mundo diferente, onde partilha-se a vida, a convivência, a alegria, abrindo espaço à participação de todos, sobretudo daqueles que eram excluídos da religião. É a alegria contagiante do Evangelho.

Para Jesus, Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos impulsionam a viver mais plenamente. Deus não quer que renuncie-mos nada do que é verdadeiramente humano. Ele quer que vivamos o divino no que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da renúncia como exigência divina é anti-evangélica.

Para meditar na oração:

Deixe-se mobilizar pelo Espírito: Ele suscita, em você e na realidade, ricas possibilidades que equivalem a um saboroso vinho da melhor qualidade.

Não seja nunca uma “talha de pedra” que sufoca a Vida. Mereça a Vida que Deus lhe dá! Que em você, a vida saboreada seja expressão de sua filial sintonia com o Senhor.

Faça-se disponível perante Ele; seja um bom recipiente do melhor vinho da Graça!

Leia mais: