27º domingo do tempo comum – Ano B – Subsídio exegético

04 Outubro 2024

"A mulher é formada da mesma matéria e substância do homem: ela é companheira, parceira, cúmplice, igual. Ela não foi criada com o dedinho de um dos pés, porque Deus não a quer oprimida pelo homem. Também não foi criada com um fio de cabelo, porque Deus também não quer que ela submeta o homem. Deus a criou com o lado, para que um esteja sempre próximo ao coração do outro, para que ambos caminhem lado a lado e, juntos e unidos, deem sentido à vida um do outro e a toda a criação. Mulher e homem são um para o outro revelação do amor e da ternura de Deus. Só esta relação de amor e entrega permite vivenciar o mistério humano: a mulher é mistério de Deus para o homem, assim como ele é mistério de Deus para ela. Isso tudo nos permite afirmar que, quando o homem nega à mulher a igualdade, a dignidade e o respeito, ele está negando a ação criadora de Deus. Discriminar a mulher e cometer violência sexista é cometer uma agressão a Deus criador."

A reflexão a seguir é elaborada pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF:

Dr. Bruno Glaab
Me. Carlos Rodrigo Dutra
Dr. Humberto Maiztegui
Me. Rita de Cácia Ló
Edição: Prof. Dr. Vanildo Luiz Zugno

Eis o texto.

O Evangelho

O Evangelho deste domingo pertence ao bloco do Evangelho de Marcos centrado na formação dos discípulos. O trecho que lemos (Mc 10,2-16) traz a questão do divórcio. Ele é composto por três cenas: a pergunta dos fariseus e a resposta de Jesus (v. 2-9); a pergunta dos discípulos e a resposta de Jesus (v. 10-12); a bênção das crianças (v. 13-16).

As duas primeiras cenas têm como pano de fundo a lei do divórcio, formulada em Dt 24,1-3: Se alguém se casa com uma mulher e não gosta dela, porque descobre nela algo vergonhoso, escreve-lhe a certidão de divórcio, dá-lhe e deixando-a sair de sua casa… Claramente, esta lei é formulada do ponto de vista masculino e a mulher é só um objeto. Mas a principal dificuldade para interpreta e aplicar esta lei é o fato de ela não deixar claro em que consiste o “algo vergonhoso” que permite ao marido escrever a carta de divórcio: trata-se de um problema moral ou uma imperfeição física?

Na literatura rabínica, a discussão é recheada com vários exemplos do que pode ser considerado “vergonhoso” e, portanto, motivo suficiente para o homem de se divorciar.

Na esfera pública: a mulher sai de sua casa com os cabelos soltos; ela bebe ou come algo na rua; ela se alimentou de algo cujo dízimo não foi pago (mesmo sem saber); ela amamenta seu filho na rua; ela cochicha com outras mulheres. No âmbito familiar: ela queima a comida; ela fala alto com seu marido; ela não gerou filhos após dez anos de casada; ela tem mau hálito ou cheiro forte de suor e o marido já havia, antes do casamento, estabelecido como condição que ela não tivesse. Várias outras circunstâncias podem justificar o pedido de divórcio que, com raríssimas exceções, sempre uma iniciativa do homem.

Esse conhecimento dos costumes da época é fundamental para entender o trecho do Evangelho de hoje, pois, como vimos, na primeira cena (v. 2-9), Jesus está debatendo com os fariseus acerca do assunto. Os fariseus se aproximam de Jesus e perguntam-lhe: É permitido ao marido repudiar a mulher? O evangelista diz que o interesse dos fariseus é colocar Jesus à prova. Eles não estão realmente interessados em discutir o assunto, e sim colocar Jesus em um dilema: ele deve escolher entre a dignidade da mulher e a fidelidade à Lei de Moisés. No entendimento deles, para se manter fiel à Lei, Jesus deve declarar a superioridade e o domínio do homem sobre a mulher.

Jesus responde interpretando a própria Lei: Moisés escreveu esse mandamento por causa da vossa dureza de coração (v. 5). A palavra grega sklērokardía indica o coração humano dessensibilizado às instruções divinas como consequência de sua contínua desobediência. Essa mesma crítica já havia sido feita pelo profeta Ezequiel: Dei-lhes então estatutos que não eram bons e normas pelas quais não alcançariam a vida (Ez 20,25). Devemos recordar que, no mundo antigo, o coração não era a sede dos sentimentos, mas da inteligência, do entendimento. Então, “ter o coração duro” equivale a “ser incapaz de compreender e de aprender”. O coração duro é insensível, curto, mas também resistente a aceitar e entender o projeto de Deus. O coração duro é a mente obstinada que insiste em transformar a mulher em um objeto (como uma televisão ou um celular) que pode ser comprado e, caso não agrade, ser devolvido ou até mesmo descartado.

Jesus, porém, diz que o projeto de Deus na criação é igualitário: e os dois se tornarão uma só carne (v. 8). Trata-se da união de duas pessoas que se completam e que, pode-se dizer, foram destinadas uma à outra por Deus. A frase “uma só carne” indica que não há diferença entre ela e ele. Tal é o projeto amoroso de Deus que os criou na reciprocidade inseparável, para a coexistência concreta de duas pessoas.

No v. 9, encontra-se a frase mais citada na doutrina da Igreja acerca do matrimônio: O que Deus uniu, o homem não separe. Não obstante, é necessário lembrar que, quando o Evangelho de Marcos foi escrito, a prática sacramental da Igreja era muito diferente do que é hoje e não havia um “sacramento do matrimônio” como pensamos hoje da teologia. De fato, não havia nem mesmo um ritual para o casamento. Somente no período posterior a Jesus, aos apóstolos e à redação do Novo Testamento é que isso irá surgir, para responder às necessidades práticas das comunidades cristãs.

Mas, além da discussão da história dos sacramentos, é necessário perguntar: Quando e como Deus une duas pessoas? É algo que acontece quase mecanicamente, no rito do casamento religioso, com a forma canônica? Basta “casar na Igreja” para que Deus una os dois? Que dizer, então, de tantos casos (sempre mais frequentes) de feminicídio, filicídio e até parricídio, em famílias de pessoas que se casaram na Igreja. Pois não basta proferir um juramento perante um ministro habilitado para o sacramento: é necessário que haja reciprocidade, ternura e respeito.

Em outras palavras, “Deus une”, não em um ato pontual e mágico, mas vai unindo duas pessoas ao longo da vida. Por vezes, são necessários anos para se dizer que Deus uniu de tal modo duas pessoas que ninguém consegue quebrar essa relação.

A resposta de Jesus provocou assombro não apenas nos fariseus, mas também em seus discípulos. Na segunda cena do trecho de hoje (v. 10-12), os discípulos questionam Jesus. A eles, Jesus apresenta as conclusões práticas para quem se divorcia, tanto para o homem, quanto para a mulher.

A resposta de Jesus – Se ela repudia o marido e se casa com outro, comete adultério (v. 10) – pode ter como pano de fundo o fato de a Lei judaica facultar à mulher o direito de tomar a iniciativa do divórcio em alguns casos específicos, como, por exemplo, se o marido é curtidor e o cheiro dele torna insuportável conviver com ele sob o mesmo teto. Mas pode ter também como referência a lei romana, que permitia à mulher maior liberdade para que ela pedisse o divórcio. Para os estudiosos que consideram a comunidade de Roma o berço do Evangelho de Marcos, é esta a realidade na qual se insere a igreja marcana e, a ela, é igualmente necessário responder.

Terceira cena – a bênção das crianças (v. 13-16), aparentemente situa-se na mesma casa em que Jesus está com os discípulos. Trata-se de uma cena do cotidiano que provoca a reação dos discípulos e um novo ensinamento de Jesus. É comum, no dia a dia, trazer as crianças para serem abençoadas por figuras religiosas. Os discípulos querem impedir que isso aconteça. Esta breve cena está presente também em Mateus e Lucas, mas nenhum dos evangelistas explica por que os discípulos têm uma reação tão negativa: Para não incomodar Jesus? Para não distrair o povo?

De qualquer forma, parece subjazer a ideia de que as crianças não são importantes. Jesus toma a atitude dos discípulos como ponto de partida para mais um ensinamento: pois o Reino de Deus é deste tipo de pessoas (v. 14).

A afirmação de Jesus, porém, é um tanto enigmática: Quem não acolher o Reino de Deus como criança, absolutamente não entrará nele (v. 15). Esta frase poder ser interpretada de dois modos: (a) o Reino de Deus deve ser acolhido como se acolhe uma criança; (b) para acolher o Reino de Deus devemos nos tornar semelhante a crianças. No primeiro caso, para entrar no Reino é necessário aceitar sempre a novidade e o que escapa aos esquemas pré-concebidos. No segundo, é necessário estar livre de qualquer preconceito e barreira. Ambas as possibilidades, de algum modo, se assemelham: só poderá participar do Reino quem superar prejulgamentos, intolerâncias, fanatismos e opiniões estreitas e fechadas.

Ao abençoar as crianças (v. 16), Jesus demonstra que o Reino de Deus não é caracterizado pela rigidez de uma religião de medo, mas pela alegria, pela esperança e pela gratuidade.

Relacionando com as outras leituras

No segundo relato da criação do homem (Gn 2,7), não há nenhuma referência à ordem dada no primeiro relato (Gn 1,28: “sede fecundos e multiplicai-vos”). Em outras palavras, não se fala em procriação. O narrador não sacerdotal (javista?) foca unicamente na alegria que a mulher traz ao homem. Em Gn 2,7, Javé Deus age como um oleiro e cria o homem, modelando-o com a argila do solo. Mas o homem está só. Para criar a mulher, Javé Deus “muda de profissão” e age como um cirurgião: ele parte o homem em dois e, com um dos lados, cria a mulher. A palavra hebraica tzēlāh, normalmente traduzida como “costela”, na verdade significa “lado”. Javé Deus cortou um lado (= metade?) do homem e com ele fez a mulher. Entende-se por que “os dois serão uma só carne”: são dois pedaços que só formam um todo quando estão unidos.

A mulher é formada da mesma matéria e substância do homem: ela é companheira, parceira, cúmplice, igual. Ela não foi criada com o dedinho de um dos pés, porque Deus não a quer oprimida pelo homem. Também não foi criada com um fio de cabelo, porque Deus também não quer que ela submeta o homem. Deus a criou com o lado, para que um esteja sempre próximo ao coração do outro, para que ambos caminhem lado a lado e, juntos e unidos, deem sentido à vida um do outro e a toda a criação. Mulher e homem são um para o outro revelação do amor e da ternura de Deus. Só esta relação de amor e entrega permite vivenciar o mistério humano: a mulher é mistério de Deus para o homem, assim como ele é mistério de Deus para ela. Isso tudo nos permite afirmar que, quando o homem nega à mulher a igualdade, a dignidade e o respeito, ele está negando a ação criadora de Deus. Discriminar a mulher e cometer violência sexista é cometer uma agressão a Deus criador.

Assista também

Em busca do máximo de igualdade e ternura. Reflexão de Virma Barion

1ª parte


2ª parte

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