A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 10º Domingo do Tempo Comum, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 9, 9-13.
“Ao passar, Jesus viu um homem chamado Mateus,...”
É curioso: nossa identidade também se revela no modo de olhar; somos o que olhamos; somos como olhamos. Alguns dizem: “Dize-me como olhas e te direi quem és”. Trata-se de uma linguagem universal, para além das palavras. Diariamente vivemos de olhares, imersos neles, amando ou condenando, acolhen-do ou rejeitando. Quem não experimentou alguma vez sentir-se especial diante do olhar do(a) outro(a)? Quem não provou o peso de um olhar julgador que, como um dardo venenoso, atravessou as entranhas?
O olhar diz muito mais do que pensamos. Há olhares que ocultam um poder imenso: maliciosos, sensuais, provocativos, inocentes... Há olhares intensos e penetrantes que conseguem despertar nosso lado mais selvagem e passional e que ultrapassam a barreira de nosso ser permanecendo gravadas em nossa mente. Há olhares que falam por si sós, sem necessidade de nenhuma palavra, que transmitem sentimentos, desejos e afetos. Igualmente há olhares que deixam transparecer uma personalidade venenosa, destrutiva e daninha e que, muitas vezes, nos fazem afastar dessas pessoas pelas más sensações que nos causam.
Não nos enganemos; os olhares não são neutros. Eles des-velam (tiram o veú) o mais profundo da pessoa.
A maneira com que olhamos uma pessoa, a forma com que respondemos a um olhar, muitas vezes vai determinar a diferença entre um encontro memorável e grandioso ou um encontro repulsivo e constrangedor
Corações petrificados e insensíveis se expressam nos olhares que matam, que fecham as portas e condenam àqueles que são diferente; há olhares que delatam, que invejam e que não suportam o bem alheio; olhares de morte, impessoais e indiferentes, superficiais e interesseiros; olhares embriagados de soberba, calculistas, gélidos. Olhares sem luz e sem Deus.
Mas também sabemos que há olhares que curam e reconfortam; olhares que são oásis e sombra acolhedora, que protegem e bendizem; olhares que são bálsamos que aliviam feridas, derramam consolo e compreensão. Olhares cheios de amor para com o outro, que tornam a vida mais fácil. Olhares tolerantes, que não levam em conta o mal, mas tudo suportam e tudo esperam. Olhares que transmitem o bem e que embelezam seus destinatários, fazendo-os melhores e extraindo o melhor deles.
A Revelação vem nos ensinar que Deus “olhou” para a humanidade, e seu olhar de amor foi tal que desceu até o mais profundo da condição humana. A Encarnação do Filho foi determinada a partir de um “olhar” que saiu do coração da Trindade, que pousou sobre o mundo e que voltou ao seu coração, estremecendo-a de compaixão e movendo-a à ação redentora.
Assim também nossa presença no mundo deve ter sua origem no olhar misericordioso e compassivo, amoroso e esperançoso...
Precisamos reaprender a olhar as pessoas nos olhos para despertar em nós a consciência da bondade humana, cujas raízes foram plantadas por Deus no coração de cada uma delas.
E quando somos capazes de olhar nos olhos, com simplicidade podemos encontrar no coração do outro uma imagem do nosso próprio coração.
Quem é a referência e o modelo na arte de olhar? O Mestre da Galileia que, passando pelos lugares cotidianos, olhou a todos como ninguém nunca olhou, extraindo o melhor de cada pessoa em cada circunstância, ativando possibilidades inimagináveis, mobilizando todos os seus recursos vitais... Seu olhar transformava as pessoas em maravilhosas obras de arte.
Durante sua vida, Jesus passou entre nós com um olhar profundo e que chegou a comover muitas e diferentes pessoas: os discípulos, convidando-os a segui-lo; os pecadores, oferecendo seu perdão; os enfermos, oferecendo cura; os excluídos, oferecendo sua acolhida...
Seu olhar nos inspira a olhar o mundo e as pessoas de maneira diferente; olhar que recupera e vibra frente à novidade, que capta a verdade, a beleza e o bem presente em tudo e em todos; olhar que recolhe das margens os olhares perdidos, distraídos ou derrotados de tantos irmãos caídos que necessitam, com urgência de um “olhar cristificado” que os salve. O que salva é o olhar.
O evangelho deste domingo nos situa diante do olhar arrebatador e transformador de Jesus.
O sujeito do primeiro verbo é Jesus: “viu um homem chamado Mateus”. Jesus estava em movimento e Mateus, pelo contrário, estava parado, passivo, “sentado junto à banca”, apegado à sua condição de cobrador de impostos, preso a uma profissão que o tornava desprezível aos olhos de todos.
Mas os olhos de Jesus souberam ver além das aparências: viram no publicano um discípulo, um seguidor.
Para esse olhar ninguém está sentenciado nem qualificado definitivamente, mas tem o futuro diante de si.
Pela primeira vez, Mateus sentiu-se olhado de outra maneira: alguém acreditou nele e o chamou, e por isso ele se transformou em alguém dinâmico que deixou para trás seu passado, assumiu o protagonismo de sua própria vida e se pôs a caminho atrás d’Aquele que foi capaz de olhá-lo assim.
No olhar de Jesus não há, nesse primeiro momento, nem exigência, nem correção, nem sequer chamado à conversão; tão somente um apelo para entrar em outro nível de relação com Ele.
Com seu olhar pro-vocativo Jesus arrancou Mateus de sua mesa (mesa que o distanciava dos outros, mesa da traição do seu povo e que o fazia colaborador do império romano, mesa que o fazia sentir-se inimigo do povo, mesa da exploração, da solidão, da acomodação, da fixação... mesa da morte).
Em casa de Mateus, Jesus funda uma outra mesa: mesa da comunhão, da partilha, da festa, mesa da fraternidade onde todos se sentem iguais... Mesa da vida.
Trata-se de uma mesa provocativa, questionadora, incômoda... que requer mudança de lugar, de mentalidade, de atitude... transformação interior. “Virar a mesa”, eis a questão!
Porém, a aventura de “troca de mesa” requer uma troca de “senhor”.
Para Mateus, a troca de mesa só foi possível a partir da troca de “senhor”: deixou a mesa da dependência ao imperador romano e abriu espaço interior para a presença de Jesus e dos outros. Ele correu o risco de assumir a mesa da liberdade e da comunhão.
Mateus não tem mais mesa fixa (deixa de ficar sentado e põe-se em movimento). Tal como Jesus, ele é chamado a transitar por outras mesas (a mesa dos encontros, da criatividade, do novo, do diferente...)
Todo autêntico seguimento começa por uma troca de olhares; o olhar d’Aquele que chama é mobilizador e move a dar o primeiro passo. E para isso é imprescindível pôr-se de pé, tomar consciência de si mesmo, da presença e da potencialidade da própria dignidade e identidade. O ouvido se abre, o olhar se aclara, a mente se expande, o coração compreende, o corpo se ergue e a vida se re-inicia. Vida que se abre em movimento, pronta para acolher e viver as surpresas.
Fazer caminho com Jesus exige abandonar a espera passiva, colocar-nos de pé e entrarmos em sintonia com a liberdade que nos move por dentro. Nada há mais revolucionário que levantar-nos e proclamar que o Reino está em meio a nós porque o trazemos dentro.
Contemple o olhar de Jesus e se sinta como Mateus. Deixe-se olhar pelos olhos d’Aquele que o vê mais por dentro do que os outros ou você mesmo. Ele não se fixa em seus defeitos nem em suas limitações; não se preocupa com o que você é, mas vê todas as possibilidades escondidas que Deus mesmo pôs em você e que talvez você desconheça.
- Confie mais nos olhos d’Ele que nos seus; creia que Seu olhar e Seu chamado podem fazer de você um(a) discípulo(a).
- Peça-o que o ensine a olhar assim os outros: um olhar límpido, sem segundas intenções e livres de todo julgamento; um olhar capaz de vislumbrar o “melhor” que está oculto nas profundezas de cada um.