"A Eucaristia, além de ser celebração do sacrifício de Jesus na cruz é, também, memória do evento salvador. Quem vai à missa não o faz por sacrifício pessoal, nem por obrigação, mas em atenção ao mandato de Cristo de celebrar o seu memorial: 'Fazei isto em memória de mim'", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar a festa do Corpo e Sangue de Cristo, o Corpus Christi.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
Celebramos a festa do Corpo e Sangue de Cristo, que em latim se diz Corpus Christi. Esta celebração foi instituída na igreja pelo decreto do papa Urbano IV, em 1264, no qual se afirma que a data deveria ser numa quinta-feira, sessenta dias após a Páscoa cristã, de modo que fosse feita a memória da instituição da Eucaristia por Jesus. Dessa forma, Corpus Christi tornou-se uma celebração de caráter devocional, uma vez que a verdadeira festa da Eucaristia da igreja é aquela que se celebra na noite da quinta-feira santa, quando se celebra a memória da instituição da eucaristia.
Na sua origem, a festa de Corpus Christi veio da religiosa agostiniana e, mais tarde, pela santa Julian de Mont Cornillon (1193-1258). Conforme se difundiu na Europa, essa religiosa agostiniana teve uma visão divina, na qual se exigia que se incluísse no calendário da igreja uma festa anual para comemorar o sacramento da Eucaristia.
Tudo começou em 1230, na paróquia de Saint Martin, em Liège, Bélgica, onde se realizou uma procissão eucarística no interior da igreja. Dezessete anos mais tarde, ela foi para as ruas e tornou-se festa nacional na Bélgica. Em 1264, essa celebração do “triunfo eucarístico” ganhou expressão mundial, sendo celebrada nas ruas, como desejava o papa.
O Concílio de Trento (1545-1563) - em resposta a Lutero que negava a transubstanciação como modo de explicar a presença real de Cristo na eucaristia -, de certo modo, incentivou tais manifestações para fazer frente às ideias de Lutero.
Até Trento, muitas discussões e polêmicas foram travadas em torno da compreensão da “presença real” de Cristo na Eucaristia e o modo como este sacramento era celebrado. No início do cristianismo, uma das dimensões mais acentuadas da Eucaristia era a da ação de graças da comunidade que se reunia para atender ao preceito do Senhor de celebrar a memória de sua morte e ressurreição.
Na baixa Idade Média (sec. XI-XV), o acento recaiu sobre o caráter milagroso, quase mágico, da “consagração” do pão e do vinho, desvinculado do conjunto da prece eucarística. A dimensão de ceia pascal (comer e beber juntos) cedeu à de adoração. Bastava ver a hóstia consagrada para adorá-la!
Nesta época, a grande maioria dos fiéis não comungava mais durante a missa. Inclusive o termo “comunhão espiritual” adveio dessa compreensão reducionista do mistério da Eucaristia. Não foram poucos os fiéis que receberam a comunhão eucarística apenas como viático, ou seja, momentos antes da morte. Desta feita, em compensação, expandiu-se rapidamente o costume de se promover grandes celebrações devocionais de adoração do Santíssimo Sacramento, incluindo solenes procissões.
A teologia pós-Concílio Vaticano II, sem renegar a dimensão sacrificial da eucaristia, recuperou a dimensão de ceia pascal, de memorial da paixão e morte de Cristo. Novamente, o acento recaiu sobre a importância dos fiéis reunidos que, comungando do corpo e sangue de Cristo em cada celebração eucarística, buscassem conformar suas vidas no corpo eclesial de Cristo. Não é à toa que na segunda epiclese (invocação) da prece eucarística se pede que, comungando do corpo e sangue de Cristo todos se tornem um só corpo.
Em outras palavras, a comunidade celebra a eucaristia para, cada vez mais se tornar um autêntico corpo eclesial. Para que isto aconteça é indispensável que os participantes da celebração comam do mesmo pão e bebam do mesmo cálice, transubstanciados no corpo e sangue do Senhor e, assim, formem com Ele um só corpo.
A comunidade de Marcos no capítulo 14,12-16.22-26, assim como as de Mateus (Mt 26,26-29), Lucas (Lc 22,15-20) Coríntios (1Cor 11,23-26) relataram o fato de Jesus celebrar a Páscoa com os seus discípulos, da qual se originou a Eucaristia. Outros textos que merecem a nossa atenção para compreender da Eucaristia são Ex 24,3-8 e Hb 14,12-16.22-26.
No evangelho de Marcos chama a atenção o fato de Jesus pedir a dois de seus discípulos que fossem se encontrar com um homem que levava uma bilha em direção à casa de outro homem. O número dois representa, na visão judaica, o testemunho. Quem lê o texto entende que é verdadeiro o fato que será descrito. O homem, dono da casa, não é pobre. Sua casa tinha dois andares. Jesus tinha gente de bem entre seus amigos e aliados. Com esse homem, Jesus já tinha acertado tudo antes. A descrição tem um tom de suspense, visto que estamos em contexto de traição de Judas e de iminente paixão e morte de Jesus.
Testemunhos relatam que as primeiras comunidades se reuniam aos domingos para uma “ceia do Senhor” ou para a “fração do pão”. Tratava-se de uma ceia especial de memória da paixão, morte e ressurreição de Jesus, fazendo uso do pão e do vinho, como nos atesta o evangelho de Marcos, mas também do peixe. Para os judeus, o peixe expressava a dimensão escatológica e messiânica. Para os cristãos, ele relembrava a pessoa de Jesus, visto que do substantivo peixe em grego - ichthys -, se formava o título dado ao mestre: “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador”. O nome Eucaristia, substituindo ceia do Senhor e fração do pão, apareceu somente entre os anos 90 e 110 E.C.
Jesus tomou o pão e disse: “Tomai, isto é meu corpo”. Tendo nas mãos uma das taças de vinho que os judeus tomavam na ceia pascal, no caso, aquela tomada depois da refeição, Jesus disse: “Isto é o meu sangue”. Jesus se oferece como alimento (pão) e sangue derramado em favor de muitos. O pão é o sustento da vida comunitária. O sangue, na visão judaica, representava a vida (Deus). Daí a intuição antiga de não doar sangue.
Vale recordar que, como nos atestam os evangelhos, no início de sua trajetória de paixão, Jesus, no monte das Oliveiras, rezava, e o seu suor era semelhante a gotas espessas de sangue que caíam por terra (Lc 22,44). Jesus, ao derramar lágrimas de sangue, se torna qual um novo Adão, devolvendo ao ser humano o paraíso perdido, por causa da transgressão de Adão. Agora, no momento de sua última refeição, diante dos seus apóstolos e apóstolas, Jesus volta a demonstrar que o seu sangue, que deverá ser bebido pelos seus seguidores, é redentor.
Em Lc, após esse gesto com o pão, Jesus acrescenta: “Fazei isso em minha memória” (Lc 22, 19). A Eucaristia tem, então, um sentido memorial da aliança feita com Deus, no passado, com o seu povo, atualizada na morte redentora e pascal de Jesus e projetada para o futuro, na vida do cristão que a celebra [1]. Eucaristia é presença sacramental que continua depois da celebração litúrgica, que atualiza o sacrifício pascal.
Hb 9,11-15 faz uma releitura teológica do sacrifício de expiação dos judeus em Cristo na inspiração de Lv 16, onde se descrevem as atitudes que deveriam ser tomadas pelo sumo sacerdote, na festa da Expiação dos pecados do povo: vestes especiais, banhos, tipos de animais, entrada no Santo dos Santos para intermediar pelo povo.
A carta aos Hebreus é clara ao afirmar que Cristo ressuscitado é o novo sumo sacerdote que atravessou a tenda maior e mais perfeita. Com a sua ascensão, ele voltou para a presença de Deus. Ademais, Jesus não precisou oferecer sacrifício para si, mas ele mesmo tornou-se um sacrifício para todos nós. A sua oferenda não é o sangue dos animais, mas o seu próprio sangue, o que nos concede a libertação definitiva. “Cristo, por um Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha. Ele há de purificar a nossa consciência das obras mortas para que prestemos um culto ao Deus vivo” (Hb 9,14).
A dimensão da Eucaristia no Segundo Testamento tem relação com Ex 24,3-8. Moisés reúne o povo e lhe diz todas as palavras que Deus lhe revelou, faz um altar, cria condições para a comunidade oferecer um sacrifício de comunhão e, por fim, asperge o altar e o povo com o sangue do sacrifício, após ler o livro da Aliança. A esse sangue, Moisés chamou de sangue da Aliança que Javé tinha feito com o povo. Nesse relato, haveremos de notar também os elementos que se relacionam com celebração eucarística cristã, tais como: comunidade reunida, sacrifício de comunhão e sangue da Aliança.
A Eucaristia, além de ser celebração do sacrifício de Jesus na cruz é, também, memória do evento salvador. Quem vai à missa não o faz por sacrifício pessoal, nem por obrigação, mas em atenção ao mandato de Cristo de celebrar o seu memorial: “Fazei isto em memória de mim”.
A presença real de Cristo na Eucaristia se dá, também na comunidade reunida, que celebra o sacrifício de Cristo, faz sua memória, o proclama ressuscitado, rende graças a Deus e se associa a Ele. Portanto, jamais podemos separar os sinais sacramentais do corpo e sangue Cristo da sacramentalidade da comunidade que se reúne, pois o que se pede durante a prece eucarística é que comungando destes dons, ela (a comunidade) se torne um corpo eclesial.
A adoração do Santíssimo Sacramento ganhou forte impulso depois do Concílio de Trento, como uma resposta da igreja a Lutero que acreditava na “presença real” de Cristo somente durante a celebração eucarística. Para nós católicos, Jesus continua presente na hóstia consagrada (reserva eucarística) e é previsto o culto eucarístico fora da missa. Contudo a própria Igreja orienta como se deve fazê-lo, para que não haja desvios e práticas devocionais equivocadas.
[1] BOROBIO, Dionísio (Org.), A celebração na igreja, v. 2, São Paulo: Loyola, 1993, p.162-163.