09 Março 2018
A história do povo eleito foi antes de tudo uma história de graça e de benção, mas obscurecida muitas vezes pelas infidelidades do povo. Prevaleceu, no entanto, a misericórdia divina e, na cruz vitoriosa de Cristo, a graça para todos.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 4º Domingo da Quaresma, do Ciclo B. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências bíblicas
1ª leitura: Furor e misericórdia do Senhor manifestos no exílio e na libertação do povo (2 Cr 36,14-16.19-23).
Salmo: Sl. 136(137) - R/ Que se prenda a minha língua ao céu da boca se de ti, Jerusalém, eu me esquecer!
2ª leitura: Estávamos mortos por causa de nossas faltas, e pela graça é que somos salvos (Efésios 2,4-10).
Evangelho: Deus enviou o seu Filho ao mundo para que o mundo seja salvo por ele (João 3,14-21).
A primeira leitura apresenta a ruina de Jerusalém e a deportação dos seus habitantes como uma sanção decidida por Deus, furioso contra as faltas do seu povo. Da minha parte, vejo aí um modo de sublinhar que não estamos sós em nossas aflições e sofrimentos, pois Deus participa deles conosco. Foi preciso esperar o Cristo para se descobrir que esta presença não é punição divina, que Deus não é autor, mas a vítima dos nossos males. Na 2ª leitura, Paulo vai mais longe: para ele, são as nossas faltas que nos matam; elas vão, de fato, em sentido contrário à nossa criação. O caminho que vai do mal cometido ao mal sofrido não passa pela cólera divina: Deus está todo por inteiro do lado da graça (no sentido aqui de agraciar, de perdoar).
Acrescentemos que, para as Escrituras, o sofrimento provocado pelo malfeito pode alcançar os inocentes, porque somos todos solidários e vivemos num mundo desregulado pelo uso abusivo que fazemos do mal (do pecado). Confessemos que não é fácil compreender nem admitir o laço por demais estreito entre pecado e sofrimento. Devemos renunciar talvez a uma ideia de causalidade e contentar-nos com dizer que mal moral e mal físico andam juntos, que eles exprimem a nossa fraqueza atual e que devemos voltar-nos ao dinamismo inteligente e amoroso que nos faz ser. Nele podemos encontrar remédio e cura. Ele nos encaminha para a nossa verdade integral, passando, contudo, pelo caminho da nossa liberdade.
A serpente da dúvida que corrói interiormente o povo, no caminho da pátria definitiva, ganhou forma exterior na figura de um animal. Mordidos por serpentes venenosas, os Hebreus estavam morrendo. Impossível não pensar na serpente de Gênesis 3, a primeira representação da desconfiança fundamental que leva o homem a não confiar em Deus, a não confiar na vida. Esta desconfiança é muitas vezes inconsciente. Moisés foi convocado a levantar da terra este mal mortal sob a forma da serpente de bronze. E ei-la afixada numa haste. Todos os que aceitaram contemplá-la foram curados (Números 21,8-9). Segundo João, também o Cristo, por sua vez, se fez serpente. Levantado da terra na Cruz, como a serpente de bronze, assumiu o rosto do nosso mal. Ei-lo entre os malfeitores, eliminado do mundo dos vivos. Contemplando-o, podemos ver a uma só vez a nossa culpabilidade assassina e a nossa desgraça. Notemos, no entanto, que, onde o livro dos Números diz: «Todos os que contemplarem esta serpente viverão», João escreve: «Todos os que nele crerem terão a vida eterna». O verbo crer aparece quatro vezes no início deste evangelho. É que a fé é o contrário da desconfiança destrutiva. Não basta ver, nem mesmo «contemplar» (livro dos Números); mais ainda, é preciso confiar, uma confiança que transforma toda a vida. Confiança difícil esta, pois que deve nascer à vista deste homem torturado até à morte, em virtude de uma injustiça flagrante. Lembremos a 2ª leitura do domingo passado: «escândalo para os judeus e insensatez para os pagãos».
Este é um tema terrível! Não sei se alguns cristãos ainda se lembram dos catecismos antigos, com o «juízo particular», no dia da nossa morte, e o «juízo universal», no final dos tempos. As Escrituras, por certo, falam em julgamento, mas não podemos esquecer tratar-se de uma metáfora emprestada das nossas práticas sociais. Alguns textos falam do julgamento como um destino inevitável; outros, que Deus não julga, mas perdoa. Neste evangelho, lemos que Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo, «mas para que o mundo seja salvo por ele». Temos de levar a sério a seguinte frase: «Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado». Olhando de perto, o texto todo nos diz que não é Deus quem julga, mas nós mesmos. De fato, julgar é se pronunciar, é escolher. Eis, pois, que a luz veio ao mundo. Luz que é o Filho de Deus, verdade de Deus e verdade do homem. Diante desta irrupção da luz, irrupção que é contemporânea ao começo do mundo, os homens devem se pronunciar, devem se declarar, a favor ou contra. Este é o julgamento: alguns vão preferir as trevas. Esta imagem, de acolhida ou de recusa da luz, traduz-se no crer em Cristo ou em recusá-lo. Deus não se impõe a nós; Ele se propõe. Se o acolhemos, as nossas «obras» são ao mesmo tempo suas obras. Ou, se quisermos; Deus, para agir, passa através de nós (ver a última frase do evangelho de hoje).
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Graça e misericórdia em superabundância - Instituto Humanitas Unisinos - IHU