20 Janeiro 2017
A liturgia da Palavra deste Domingo se inicia com o anúncio de uma grande luz, que foi vista num lugar muito significativo: a Galileia das nações, «encruzilhada dos pagãos». Daí foi que «a bondade do Senhor na terra dos viventes» alçou seu voo.
Na Galileia, foi que Jesus chamou os seus apóstolos, dando início à sua missão. Estes e Paulo levaram a missão a frente, mas esta foi ameaçada pelas divisões entre os crentes.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, comentando as leituras do 3º Domingo do Tempo Comum A. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
1ª leitura: Na Galileia das nações, “o povo que andava na escuridão viu uma grande luz” (Is 8,23-9,3)
Salmo: Sl. 26(27) - R/ O Senhor é minha luz e salvação. O Senhor é a proteção da minha vida.
2ª leitura: “Sede concordes uns com os outros; não admitais divisões entre vós” (1Cor 1,10-13.17)
Evangelho: “Foi morar em Cafarnaum, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías” (Mt 4,12-23 ou 12-17)
A prisão de João Batista parece ter sido um sinal para Jesus. Dali em diante, caberia a ele entrar em ação. Ele, de fato, substituiu desde então o Batista. O papel do precursor havia terminado. Mateus faz questão de precisar que João operava no deserto da Judeia, não muito distante, portanto, de Jerusalém, de onde, aliás, vinham-lhe os discípulos. Será que foi para recordar a entrada na terra prometida e a passagem milagrosa do rio (Josué 4) que o evangelista escreveu três vezes a palavra «Jordão» no capítulo que precede a nossa leitura? Tal insistência deve ter um sentido. Em todo caso, Jesus deixa a Judeia - herança de Davi, de quem é o descendente, e onde se encontra o centro do culto, Jerusalém e o seu templo - e retira-se para a Galileia. Lucas contenta-se com fazer notar o fato (4,14). Mas, para Mateus, tal deslocamento tem um significado. Cita Isaías 8,23 para nos fazer compreender que, se Jesus começa por aí a sua pregação do Reino, é porque a luz deve brotar das trevas, como escreve João em 1,4. Sabemos que, com sua população misturada e sua insignificância histórica, a Galileia gozava de má reputação. É, no entanto, nesta região que Mateus, Marcos e Lucas situam o essencial da atividade de Jesus. Para eles, Jesus só deixará a Galileia para ir até Jerusalém apenas uma vez: para morrer. João, ao contrário, menciona muitas viagens do Senhor até à Cidade Santa. Enquanto esperava, fixou-se em Cafarnaum. Foi morar ali, o que deixa supor que não era assim tão nômade como se supõe.
Aqui, podemos lembrar a escolha de Davi como o futuro rei de Israel; o menor e o último, que parecia não contar, foi o escolhido. O cenário é o mesmo para os territórios de Zabulon e Neftali, a Galileia periférica, região onde Israel se misturava com as nações. «Da Galileia não surge profeta», diziam os chefes dos sacerdotes e os fariseus, em João 7,52. Deus interveio aonde não se esperava. Os "sem-direito" é que receberam a sua visita; são eles o objeto da sua preferência, vendo-se encarregados da missão. Isto foi também o que se passou com Jacó e Esaú (Gênesis 27). Poderíamos citar muitos outros textos, particularmente com referência a José, vendido por seus irmãos, e a Moisés, que foi salvo das águas. A escolha de Pedro, Tiago e João, os primeiros discípulos, não foge a esta preferência de Deus, especialmente na versão de Lucas, na qual estes pescadores, desinteressados em ouvir o ensinamento de Jesus, consertavam as suas redes, enquanto o povo amontoava-se em volta dele. E Mateus, o publicano? Quem iria acreditar que Jesus fosse arcar com o peso de um personagem tão suspeito? A escolha de Deus não é uma recompensa pela boa conduta nem pela virtude, competência ou inteligência, mas reproduz o ato da criação, que parte do zero. E, aí, tudo recomeça. Podemos acrescentar a este dossiê a preferência de Jesus pelas crianças, despojadas e dependentes, e o conselho de nos tornarmos crianças. O que irá até à necessidade de renascer, conforme diz Jesus a Nicodemos, em João 3. Não vamos contar, portanto, com o nosso valor ou nossas qualidades, mas com a gratuidade do amor que nos faz ser. E para sermos imagens de Deus, para existirmos, portanto, vamos também nós até aos mais desprovidos de tudo, aos que não têm nenhum mérito.
Dali em diante, não se vê mais Jesus a sós, salvo vez ou outra, quando se ausenta para uma oração solitária. João Batista nunca havia pedido aos seus ouvintes para segui-lo: contentava-se com orientá-los para «aquele que viria depois dele». Jesus, ao contrário, pede-lhes que deixem tudo, pois, com ele, havia chegado o momento em que se cumpriram os tempos de espera e preparações. À luz deste chamado, aprendemos muitas coisas. Primeiro, que a ação de Deus não é nenhum constrangimento, mas que, ao contrário, exige a livre adesão: os chamamentos feitos por Cristo fizeram-se acompanhar de um «se queres», explícito ou subentendido. Aprendemos também, conforme uma velha fórmula, que Deus tem necessidade dos homens. O que Ele constrói conosco é uma Igreja, ou seja, uma comunhão. Assim, sem estes homens e mulheres que caminhavam com ele, o Cristo estaria privado do corpo. Compreendemos, enfim, que o chamamento de Cristo é um chamamento «até o fim». É uma atração exercida por Alguém que nos levará até a entrarmos em sua condição de Filho de Deus, até a nos tornarmos «participantes da sua natureza divina» (2 Pedro 1,4). O chamamento de Jesus convida-nos a segui-lo para onde ele for. Até à cruz, é claro, ou seja, até ao acolhimento das feridas que a vida nos inflige; mas não esqueçamos que a cruz não tem a última palavra e que se trata de atravessá-la, para irmos dar na vida e na alegria.
Quer sigamos a Cristo ou não, conheceremos o sofrimento e a morte. O chamamento de Cristo é a promessa de atravessá-los e chegarmos à outra margem. Estes a quem Jesus chamou, na beira do lago, ainda não sabem. Mas deixam tudo para segui-lo. Deixam, diz o texto, as suas redes, o seu barco e o seu pai. A mãe não é mencionada (será em outro momento), mas impossível não pensar em Gênesis 2,24: «O homem deixará seu pai e sua mãe para se juntar à sua mulher». O chamado de Cristo tem algo de nupcial, o que se confirmará em outros textos, particularmente no Apocalipse. União na vida e na morte. Mas para a Vida. Lembremos também do ponto de partida de Abraão, ao deixar a Caldeia. Iniciava-se também aí uma história: das alianças. Pois, com Jesus, tem início a Aliança nova e definitiva. Por ela, deixando seu pai, seu barco e suas redes, Pedro, André, Tiago e João, o primeiro terço da lista dos Doze, são arrancados do seu passado. Poderia se dizer, da sua origem humana? Entram agora numa nova vida, numa nova criação: «É necessário nascer de novo», diz Jesus a Nicodemos (João 3,3). «Nascer do Espírito.» Desde então os discípulos são como o vento: não se sabe mais de onde vêm e ignora-se para onde vão. Eles próprios também o ignoram. O barco e as redes garantiam-lhes a subsistência e os punha em segurança. Pois ei-los agora sem apoio, a descoberto; na espera confiante de um alimento que ainda não conhecem (João 4,32).
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Na Galileia das nações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU