17 Dezembro 2018
O ano de São Romero será também o ano de outro latino-americano que se dirige com determinação aos altares: o bispo brasileiro dom Hélder Câmara. Neste domingo, 16 de dezembro, será concluída a fase diocesana do processo, e uma volumosa caixa de documentos será enviada para Roma para integrar os arquivos da Congregação para as Causas dos Santos. Sabe-se também que um milagre está sendo estudado, o qual poderia ser atribuído à intercessão de dom Hélder Câmara. E haverá um Congresso Eucarístico Nacional, já confirmado, que será realizado em novembro de 2020 no Brasil, ou seja, dentro de pouco menos de dois anos, tempo suficiente, de acordo com o atual arcebispo da diocese dirigida no passado por dom Hélder Câmara, dom Fernando Saburido, para que se reconheça a beatitude do “bispo vermelho”, como o chamavam pejorativamente os militares brasileiros, que governaram o país de 1964 a 1984.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Vatican Insider, 14-12-2018. A tradução é de André Langer.
Entre o bispo Romero, santo desde outubro, e dom Hélder Câmara, próximo beato, há notáveis coincidências. Assim como Romero, Câmara seguiu um caminho que o levou a mudar de posições tradicionalistas para outras, conciliares. Seus biógrafos, e os próprios amigos de sacerdócio, recordam que, quando jovem, estava próximo de instituições e associações religiosas e seculares de natureza conservadora e até mesmo de caráter integralista. É um período de sua vida que o próprio Câmara considerava um “erro da juventude, fruto de paixões e não de raciocínios”. A mudança começou na cidade do Rio de Janeiro, para onde Pio XII o nomeou bispo auxiliar em 03 de março de 1952 (quando tinha 43 anos). Recebeu a ordenação episcopal em 20 de abril de 1952.
Uma biografia, digamos, autorizada foi escrita como complemento ao pedido que foi enviado a Roma anos atrás para solicitar que as investigações diocesanas começassem. Nela se recorda o trabalho social de dom Hélder Câmara – nos “movimentos estudantis e operários, nas ligas comunitárias contra a fome e a miséria” –, com o qual granjeou o ostracismo por parte do governo militar brasileiro. Os dados biográficos que acompanham a carta lembram que ele é o fundador, em 1950, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com a aprovação de Giovanni Battista Montini, futuro Paulo VI, que na época era subsecretário vaticano. Dom Hélder Câmara foi também o primeiro secretário-geral dos bispos e, como tal, colaborou no nascimento do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), no Rio de Janeiro, em julho de 1955.
Assim como Romero, também Hélder Câmara teve uma relação próxima e particular com Paulo VI. Seu biógrafo brasileiro, o filósofo Ivanir Rampon (autor de Paulo VI e Dom Hélder Câmara: exemplo de uma amizade espiritual, publicado em português pelas Edições Paulinas em 2004), reconstruiu detalhadamente a relação entre os dois, mostrando que a amizade entre eles teve importantes repercussões. “Para ambos, o Concílio Vaticano II tornou-se uma missão, e suas preocupações sociais repercutiram posteriormente no papado de Paulo VI, na encíclica Populorum Progressio e no desenvolvimento da Igreja brasileira durante o regime militar”, escreveu Rampon, referindo-se às cartas e conversas entre dom Hélder e Paulo VI, nas quais se aprecia o carinho do segundo pelo padre brasileiro.
“Montini gostava de conhecer as opiniões de Câmara e considerava-as de fundamental importância”, diz o acadêmico brasileiro. Dias antes do início do Concílio, “os dois amigos se reuniram porque tinham conhecimento da existência de um ataque contra a colegialidade episcopal. Ambos defenderam essa ideia e trabalharam arduamente para que se tornasse uma prática constante na vida da Igreja. Dom Hélder dirigiu a experiência positiva da CNBB e do CELAM, que colocaram em prática a colegialidade antes mesmo que fosse definida pelo Concílio Vaticano II”.
Dom Romero e dom Hélder Câmara são homens do Concílio, Concílio esse no qual a América Latina teve uma participação bastante modesta e que assimilaria em um segundo momento. Câmara foi um dos poucos bispos latino-americanos que participaram do Vaticano II e ofereceram contribuições significativas em questões relacionadas à promoção humana. Depois, retornando à América Latina, suas reflexões teológicas e pastorais tiveram um grande peso na definição da opção preferencial pelos pobres, característica também do pensamento teológico latino-americano.
O filósofo uruguaio Alberto Methol Ferré incluiu dom Hélder Câmara entre aqueles que trouxeram as questões conciliares para a América Latina. Methol Ferré, assessor durante vários anos do CELAM, recordou que João XXIII propôs a questão dos pobres quando começou a reunião conciliar, ao passo que o cardeal Lercaro propôs que o tema dos pobres se tornasse o fio condutor do Concílio. “A proposta não passou – observou Methol Ferré –, mas provocou e obteve fortes ecos. Em Paul Gauthier, por exemplo, que escreveu um livro na Palestina, Jesus o carpinteiro de Nazaré, publicado durante a primeira sessão do Concílio”. As reflexões de Gauthier, escreveu Ferré, “tiveram uma recepção favorável por parte da delegação dos bispos latino-americanos, liderada pelo brasileiro dom Hélder Câmara e pelo chileno dom chileno Francisco Larraín, que se reuniram com o Padre Gauthier”. O pensador uruguaio também recordou que Paul Gauthier fez várias conferências para os padres conciliares de língua espanhola (estava presente dom Helder Câmara), que mais tarde foram reunidas em um livro intitulado La pauvreté dans le monde (A pobreza no mundo). “O livro foi publicado no final do Concílio, em 1965, e teria um forte eco na América Latina. Ali se antecipam temas fundamentais que serão desenvolvidos nos anos seguintes, incluindo a Teologia da Libertação nas diferentes linhas que mais tarde esse pensamento seguiu”.
Assim como Romero, Câmara também foi difamado e caluniado por seus irmãos. O brasileiro Ivanir Rampon examinou vários estudos que investigam as calúnias lançadas contra o arcebispo de Recife para concluir que “alguns dicastérios romanos acolheram as denúncias do governo autoritário brasileiro e dos setores conservadores da Igreja no Brasil, que se opunham à linha conciliar de dom Hélder. Até a tentativa de opor Paulo VI e dom Hélder Câmara”. Houve um momento, observou Rampon no quinto capítulo do livro, dedicado à amizade entre Câmara e Paulo VI, em que “os secretários do Papa interceptaram a correspondência e negaram duas vezes a audiência privada” a Câmara, sem que o Papa estivesse ciente e “contra a opinião de Paulo VI”, que confiava plenamente no arcebispo brasileiro.
Devemos recordar, para concluir, que, em 2014, quando o Papa Francisco anunciou a decisão de beatificar o Papa Paulo VI, o sucessor de dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido, decidiu, por sua vez, pedir a autorização da Congregação para as Causas dos Santos para iniciar o processo de beatificação de Câmara. O “nihil obstat” veio no ano seguinte, no dia 25 de fevereiro de 2015. A partir de então, a preparação da causa ganhou força com a formação de uma comissão histórica composta por quatro especialistas: o professor Luiz Carlos Luz Marques, da Universidade Católica de Pernambuco; a historiadora Lucy Pina Neta, do Instituto dom Hélder Câmara; o professor José Oscar Beozzo, membro da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEEP) de São Paulo; e Silvia Scatena, da Universidade de Modena e membro da Fundação João XXIII de Bolonha.
Os pesquisadores reuniram e examinaram a volumosa correspondência entre Câmara e vários amigos, sacerdotes e fiéis, fizeram uma lista dos trabalhos por ele publicados, sobre ele e sua ação pastoral, e analisaram notícias e artigos sobre ele publicados ao longo dos anos na imprensa nacional e internacional. Também analisaram os arquivos de um dos mais importantes pensadores católicos do Brasil, Alceu Amoroso Lima, amigo com quem dom Hélder Câmara manteve uma correspondência durante os anos de seminário, e os arquivos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fundada pelo próprio Câmara e da qual foi o primeiro secretário-geral (por doze anos). A pesquisa dos membros da comissão histórica foi além das fronteiras brasileiras. Consultaram também os arquivos do jornalista francês José de Broucker, o primeiro biógrafo de dom Hélder, cujos materiais encontram-se na Universidade de Louvain-La-Neuve, na Bélgica.
Dentro de alguns dias, pois, todo o material estará nas mãos da Congregação para as Causas dos Santos e ao alcance do Papa Francisco, que nunca escondeu sua admiração pelo arcebispo dos pobres. O Pontífice pronunciou o nome de dom Hélder Câmara em maio de 2016 na aula do Sínodo, ao falar com os bispos italianos. A assembleia tinha como tema “A renovação do clero”. E o Papa argentino optou por enfrentá-lo não com uma “reflexão sistemática sobre a figura do presbítero”, mas “invertendo a perspectiva”, colocando-se “na escuta, na contemplação... quase na ponta dos pés”, de figuras sacerdotais exemplares. E citou um dos aforismos que o arcebispo de Recife costumava usar: “Quando teu barco começar a criar raízes na estagnação do cais, faze-te ao largo!”
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“Deslancha” a causa da beatificação de Dom Hélder Câmara no ano de São Romero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU