05 Abril 2018
Protegidos por cerca de cem monges, textos são conservados de forma precária e levantam questão sobre posse patrimônio da humanidade.
A reportagem é publicada por The Economist, traduzida e reproduzida por O Estado de S. Paulo, 01-04-2018.
As páginas estão ressecadas e uma poeira de pergaminho cai em forma de minúsculos flocos. Embrulhado num xale branco, com o livro aberto sobre os joelhos, o padre Teklehaimanot vira lentamente as folhas, para que as ligaduras de couro não as cortem. O texto ficou meio desbotado, mas as ilustrações, brilhantes, de ricos tons azuis e púrpura, contrastam com a obscuridade do mosteiro. No chão está o tecido em que os volumes são envoltos. Ao lado, as caixas nas quais são guardados. Aqui repousa há séculos, até onde a memória dos monges alcança, um dos mais maiores tesouros religiosos do mundo.
Os Evangelhos de Garima não são fáceis de se ver. Os manuscritos cristãos ricos em iluminuras – com cerca de 1.500 anos, talvez os mais antigos do gênero ainda existentes – pertencem ao mosteiro de Abba Garima, construído sobre um remoto afloramento rochoso na região de Tigray, norte da Etiópia. Os cem monges do mosteiro guardam os dois volumes numa espécie de fortaleza circular próxima à igreja. Ao pé de um declive, logo atrás do claustro, um pequeno museu, construído há seis anos com ajuda do governo francês, que está quase vazio. Às vezes os evangelhos são exibidos ali, rapidamente, antes de os monges os levarem de volta para seu costumeiro abrigo. Pesquisadores e visitantes são ocasionalmente admitidos. Turistas não são bem-vindos.
A permanente discussão sobre onde e como os evangelhos devem ser mantidos, e quem pode vê-los, é fortemente local, e no entanto, simbólica. Ela gira em torno de antigas tradições de um mosteiro isolado, mas exemplifica o ceticismo sobre programas ocidentais de proteção ao patrimônio cultural. A discussão envolve ritos sagrados rivais e pesquisadores, levantando questões sobre os objetivos da preservação e sobre a propriedade final da cultura de um país.
Segundo a lenda, os Evangelhos – estritos na antiga língua ge’ez – são obra de Abba (padre) Garima, um príncipe bizantino que fundou o mosteiro no século 5 ou início do 6. Os monges os protegeram de invasores muçulmanos, exércitos coloniais e fogo. O mosteiro foi devastado ou saqueado pelo menos quatro vezes, a última por forças de ocupação italianas em 1936, sendo reconstruído após cada ataque.
É improvável que os Evangelhos alguma vez tenham deixado aqueles muros. Eles não eram conhecidos no mundo exterior até que Beatrice Playne, uma artista inglesa, visitou o mosteiro no fim dos anos 1940. Como mulheres não são admitidas no interior do complexo, os manuscritos precisaram ser levados até ela. Em anos recentes, ressurgiu o interesse de estudiosos por eles. Um trabalho decisivo de restauração foi realizado pelo Fundo do Patrimônio Etíope, uma entidade assistencial britânica, em meados dos anos 2000. Acadêmicos estrangeiros visitam Abba Grima em busca de pistas que os evangelhos possam dar sobre os primórdios da história do cristianismo oriental.
A desconfiança dos monges continua profunda. Uma longa história de pilhagem cultural marca a história da Etiópia. Relíquias saqueadas pelos ingleses em 1867-68 serão exibidas, em abril, no Museu Victoria e Albert, em Londres, apesar dos permanentes pedidos de restituição. Durante a ocupação italiana, muitos artefatos foram levados de igrejas etíopes para museus em Roma e depois desapareceram. Recentemente houve um aumento de furtos menores, estimulados por um florescente mercado negro de antiguidades etíopes. “As pessoas vêm aqui com autorização do governo e acabam se desviando do objetivo inicial”, diz cautelosamente o padre Teklehaimanot.
A desconfiança dos monges reflete uma prevenção mais ampla da Igreja Ortodoxa Etíope contra pesquisadores. Tornou-se quase impossível estudar manuscritos. Fotografá-los também é proibido. Tentativas de bibliotecas etíopes e europeias de digitalizar centenas de milhares de códices terminaram abruptamente, quando não, asperamente. Para algumas fontes da Igreja Ortodoxa, a falta de confiança faz parte da preocupação em preservar autoridade: o controle dos textos dá poder a quem o detém; compartilhá-los, dilui esse poder. “Há um sentimento de que se os manuscritos se tornarem muito acessíveis a igreja terá seus segredos violados”, disse Michael Gervers, historiador da Universidade de Toronto. Para alguns, digitalização é sinônimo de roubo.
Levar objetos sagrados para lugares profanos causa particular ansiedade entre religiosos. “Os museus necessariamente dão outro contexto às peças exibidas”, diz Michael Di Giovine, autor de The Heritage-scape, sobre patrimônio cultural e turismo. Na fé católica e na ortodoxa, assinala o autor, a veneração de relíquias com frequência envolve tocar, beijar, incensar e rezar alto, “coisas que simplesmente não podem ser feitas num museu ocidental”. Ele cita o caso de São Pio de Pietrelcina, na Itália, cujo corpo foi exumado em 2008 e exibido num caixão de vidro. Peregrinos descontentes processaram autoridades da Igreja por usufruírem lucro do santuário. O padre Columba Stewart, monge beneditino americano que digitalizou em 2013 os Evangelhos de Garima para o Hill Museum and Manuscript Library, observou uma preocupação semelhante na Etiópia – a de que exibir manuscritos numa estante envidraçada os distancia de seu papel em cerimônias religiosas.
Do outro lado, pesquisadores preocupam-se com o futuro dos evangelhos em sua localização atual. Quando o historiador da arte francês Jacques Mercier visitou o mosteiro, em 1995, o segundo volume dos Evangelhos havia aparentemente desaparecido (reapareceu depois). À medida que os guardiães se inteiram de seu valor financeiro, a tentação do lucro aumenta. Alguns monges são subornados para mostrar os pergaminhos, pondo-os em risco. “Cada vez que os livros são abertos, as bordas se esfarelam”, diz Gervers. “Assim, pouco a pouco eles vão se desfazendo.”
No fundo de tudo está uma discordância básica sobre o direito ao patrimônio. A quem, afinal, pertencem preciosidades como os Evangelhos de Garima? Pelo menos desde os anos 1960, as ideias ocidentais de conservação enfatizam que a herança cultural da humanidade é de todos e o acesso a ela deve ser universal. Essa visão substitui o princípio de posse pelo de zeladoria. Gervers sugere que a Unesco deve intervir para proteger os Evangelhos. Outros acham que eles devem ter mantidos temporariamente sob custódia pelas autoridades eclesiásticas. “Não se trata apenas de a quem pertencem, mas se devem estar disponíveis para o público examiná-los e estudá-los”, diz Gethaun Girma, intelectual etíope. “Os mosteiros não têm os recursos – conhecimento, dinheiro, organização – para possibilitar isso.”
O isolamento do Abba Garima ajudou a manter durante séculos os manuscritos em segurança. O santuário dos Evangelhos pode ser atravancado e sujo, mas é convenientemente seco e bem protegido. “Muitas relíquias se perderam ao longo da história, mas os monges conservam esse tesouro”, diz o sacerdote e pesquisador Daniel Seife-Michael, da Igreja Ortodoxa Etíope. “Eles morreriam para protegê-lo.”
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Monastério na Etiópia guarda evangelhos raros do século 5 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU