26 Fevereiro 2018
Cresci com verdadeiro fascínio pelos mundos de fantasia retratados nos filmes "Star Wars" e "Senhor dos Anéis". Mas sempre tinha algo faltando. Praticamente ninguém se parecia comigo. As pessoas negras que faziam parte desses filmes ou eram caricaturas ou flutuavam no espaço pós-racial. Como imaginar um futuro em que haja negros em várias funções sem apagar o legado do racismo?
O comentário é de Daniel José Camacho, escritor formador de opinião, colaborador do The Guardian, graduado pela Duke Divinity e pela Calvin College, publicado por America, 22-02-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O filme "Pantera Negra" preenche esse vazio com vigor. O filme se passa em Wakanda, uma nação africana ficcional que possui vibranium, o metal mais forte da Terra. Para o resto do mundo, Wakanda é um país de terceiro mundo, mas é uma nação isolada que, graças ao vibranium, secretamente tornou-se a sociedade tecnologicamente mais avançada do mundo.
O filme começa em 1992, com o jovem T'Chaka (Atandwa Kani), líder de Wakanda e pai de T'Challa, interrogando seu irmão N'Jobu (Sterling K. Brown), em Oakland, na Califórnia, atuando como espião de Wakanda. N'Jobu torna-se um radical e trai Wakanda vendendo vibranium ao vilão Ulysses Klaue (Andy Serkis). T'Chaka acaba matando seu irmão... mas deixa seu sobrinho.
O filho de N'Jobu N'Jadaka cresce torna-se Erik "Killmonger" Stevens (Michael B. Jordan). A partir daí, a história gira em torno da vingança de Killmonger e seu confronto com o primo, T'Challa.
A missão de Killmonger é retornar a Wakanda e destronar T' Challa, que assumiu o trono e tornou-se o Pantera Negra e chefe das tribos de Wakanda após a morte de T'Chaka. Ele quer armar os negros oprimidos ao redor do mundo com vibranium, para que possam inverter o poder colonial. Nessa busca, Killmonger expõe as tensões morais dentro da política isolacionista de Wakanda e a crise enfrentada pela liderança de T'Challa. A linha que separa heróis e vilões torna-se extremamente tênue.
Parte do que destaca "Pantera Negra" de outros filmes de super-heróis é o afrofuturismo. O gênero é uma forma interseccional e não linear de ver futuros possíveis e realidades alternativas pelo olhar das culturas negras, misturando passado, presente e futuro. A estética, a trilha sonora e as várias camadas de sentido do filme são claramente afrofuturistas. Assim como a escrita de Octavia Butler, o filme cria um mundo de fantasia que fala poderosamente às realidades da nossa história atual. Personagens negros podem mover e respirar neste mundo, ao contrário da forma como alguns personagens negros são lamentavelmente utilizados no mundo futurista do mais recente e diversificado "Star Wars".
Sem ficar em segundo plano em relação aos homens, as mulheres de Wakanda fazem o filme brilhar. A irmã mais nova de T'Challa e uma das principais cientistas de Wakanda, Shuri (Letitia Wright), é sem dúvida a personagem mais encantadora de "Pantera Negra". T'Challa, muitas vezes, torna-se um protagonista bastante fraco, dependente de mulheres como a atenta e madura general Okoye (Danai Gurira). Quando Killmonger derrota T'Challa, aparentemente matando-o, o destino da nação depende da espiã de Wakanda Nakia (Lupita Nyong'o).
Da descrição das influências culturais e cosmologias africanas à luta com a identidade negra diaspórica, "Pantera Negra" tem ricas camadas de significado. Em entrevistas, Ryan Coogler observou que tem grande interesse por questões de identidade. Talvez seja por isso que algumas das principais cenas do filme — como a cena em que Killmonger reivindica o trono e a cena final com T'Challa em Oakland — são pontuadas pela pergunta "Quem é você?".
O filme também problematiza a moralidade individual dos personagens e destaca grandes tensões políticas em jogo. Nada é oito ou oitenta. O "mocinho", T'Challa, fica cego por seu próprio privilégio e distância do sofrimento negro mundial. O "vilão”, Killmonger, muitas vezes tem uma visão certa do que está acontecendo no mundo e da hipocrisia em Wakanda. Até mesmo a General Okoye fica entre a lealdade ao trono e sua convicção de que Killmonger não serve para ser rei.
Um personagem que permanece estável é Everett Ross (Martin Freeman), um agente da CIA branco. A noção de que ele é um aliado unidimensional é legítima, mas Ryan Coogler amplia uma dinâmica já presente nos quadrinhos. Na verdade, seu feito é notável ao reduzir Ross a um papel simbólico e rapidamente dispensar o vilão branco mais interessante, Klaue. O filme apresenta esses dois personagens brancos, mas nunca se concentra neles: faz com que eles girem em torno da história e da ação dos personagens negros.
A narrativa também traz profundas tensões políticas. Em um nível superficial, fica claro que o isolacionismo de Wakanda é confrontado com o internacionalismo fundamentalista de Killmonger. Mas é errado concluir que o filme confronta os espectadores com uma simples escolha a partir de alternativas. Ambas as opções acabam parecendo ruins.
O isolacionismo de Wakanda deixa-a sem contato com o mundo e provoca a falta de solidariedade com o sofrimento dos outros. Por outro lado, Killmonger mostra o que acontece quando traumas e raiva vinculam-se a uma abordagem puramente vingativa. Ele é a personificação literal da mentalidade incendiária, simbolizada ao queimar o jardim real onde cresciam as Ervas de Coração, a planta que confere os poderes da Pantera Negra, depois de tomar o trono de T'Challa. Em seu fanatismo, aguçado por seu treinamento militar, Killmonger está disposto a destruir qualquer um ou qualquer coisa que estiver em seu caminho para recriar o mundo. Killmonger encontra em W'Kabi (Daniel Kaluuya) um simpatizante ansioso para inverter a equação entre conquistadores e conquistados, com Wakanda no comando por um novo império global.
Será que existe uma terceira opção? Quando Killmonger morre, parece que T'Challa, que sobreviveu ao seu ataque, já absorveu parcialmente sua crítica. Em seguida, T'Challa estabelece um centro assistencial a Wakanda em Oakland, onde coloca Nakia e Shuri. Uma cena pós-créditos que mostra T'Challa conversando com as Nações Unidas confirma que ele está traçando um novo rumo político para Wakanda.
No entanto, infelizmente a política de T'Challa obedece ao status quo. Embora o filme reconheça em vários aspectos a natureza sistêmica da opressão racial global, acaba aceitando um globalismo neoliberal barato que sugere que se lida melhor com a opressão junto com a filantropia, programas de ensino extraclasse e educação em ciências exatas e tecnológicas para crianças carentes (tarefa de Shuri). Esses esforços não são ruins — são melhores do que nada -, mas nem de perto são suficientes, e recorrer a eles pressupõe uma estrutura deficitária.
Alguns críticos ficaram incomodados que o único representante de uma alternativa mais radical seja Killmonger, um afro-americano extremista. No entanto, antes de Killmonger confrontar T'Challa, Nakia propõe sua alternativa política. No início do filme, após uma missão para parar os traficantes sexuais nigerianos, Nakia insiste com T'Challa que sua nação pode fazer muito mais, como por exemplo acolher refugiados: "Wakanda é forte o suficiente para ajudar os outros e se proteger". A orientação política de Nakia, formada a partir de sua própria experiência como espiã no exterior, é muito mais ativa e abrangente do que a de T'Challa, que permanece mais conservador politicamente.
"Pantera Negra" inspira diálogos marcantes e levanta questões de importância fundamental, independentemente de onde T'Challa reside politicamente no final. Representação é tanto importante como limitado. Talvez seja por isso que os últimos retratos de Barack e Michelle Obama tenham provocado tanta discussão. Mas é importante poder apreciar algo pelo que é e pelo que não é.
"Pantera Negra" é uma complexa obra de arte, moral e politicamente profunda. Como tal, estou feliz com o que pode fazer pela imaginação das crianças negras no mundo todo. O que Ryan Coogler oferece não é simples representação. Ele usou ingredientes maduros de uma história em quadrinhos da Marvel para criar algo com substância.
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Por que "Pantera Negra" é o filme que Hollywood — e os Estados Unidos — precisam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU