10 Janeiro 2018
Como sempre, o discurso de Ano Novo do Papa para diplomatas navegou em um cenário amplo de questões e conflitos em um mundo conturbado. Mas apesar de tratar de muitas coisas, o memorável discurso sobre política externa teve um só foco: a globalização, mais especificamente a visão da Igreja latino-americana.
O comentário é de Austen Ivereigh, jornalista inglês, publicado por Crux, 09-01-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Ouvido do "Atlântico Norte", o discurso pareceu desafiar as categorias habituais de esquerda e de direita ao expressar tanta preocupação com a família, a liberdade religiosa e o nascituro como com os migrantes, o ambiente e as armas nucleares.
Mas, na visão de mundo de Francisco, a ameaça em cada caso está ligada ao motivo por que os bispos latino-americanos se reuniram em Aparecida, Brasil, em 2007, num encontro chamado uma "mudança de época". Isso significava uma globalização baseada na tecnologia que estava trazendo uma mentalidade e um conjunto de valores em desacordo com as tradições cristãs e humanistas do continente.
Não foi, para ser claro, simplesmente uma queixa retórica antimoderna. Em seu discernimento dos sinais dos tempos, os bispos viram muitas coisas positivas na época contemporânea. Mas é impressionante que o que viram como positivo aconteceu essencialmente em reação a esta globalização.
No documento de Aparecida, a mudança de época é retratada como trazendo um colapso nos laços que ligam. As forças de dissolução vieram do que foi chamado de "uma espécie de nova colonização cultural pela imposição de culturas artificiais, menosprezando as culturas locais e tendendo a impor uma cultura uniforme em todos os setores da sociedade."
O termo 'colonização' deixou claro que era algo que vinha de fora - dos centros de poder - e que a América Latina estava numa posição de vulnerabilidade frente à ameaça. Mas Francisco nunca localizou a "colônia" nos Estados Unidos e, no seu discurso aos líderes europeus ao receber o Prêmio Carlos Magno, considerou que a Europa também estava sendo ameaçada.
Ou seja, a colonização não vem de um país especificamente, mas não tem rosto, não tem Estado, são fontes anônimas de poder do tipo que um dos pensadores favoritos de Francisco, Romano Guardini, descreveu em The End of the Modern World (O fim do mundo moderno, tradução livre).
Por isso foi usada a palavra 'artificial' para descrever a cultura em Aparecida. Em vez de uma cultura verdadeira e orgânica, decorrente dos valores e tradições de um povo particular, é uma 'colonização Coca-Cola' - valores impostos pelos valores tecnocráticos do capitalismo e do consumismo, que podem estar associados com os Estados Unidos, mas na realidade não se referem a nenhum Estado.
Em Aparecida, definiram-se esses valores como exaltando o indivíduo autossuficiente, a indiferença pelo outro, o desprezo pela família e pela comunidade e uma transitoriedade nas relações humanas, bem como "uma afirmação exagerada dos direitos subjetivos e individuais", combinada com uma indiferença aos direitos das sociedades e das culturas. Aqueles que pagaram o preço dessa mentalidade, segundo os bispos, foram os pobres e os vulneráveis.
Colocando os discursos em Aparecida e o de ontem lado a lado, o Papa parecia estar justamente se referindo a isso, lamentando a forma como "noções discutíveis de direitos humanos" estavam avançando, estando "em desacordo com a cultura de muitos países" que "sentem que não são respeitados nas suas tradições sociais e culturais e, pelo contrário, são negligenciados no que diz respeito às verdadeiras necessidades que enfrentam".
Em nome dos próprios direitos humanos, advertiu Francisco, "veremos o surgimento de formas modernas de colonização ideológica pelos mais ricos e mais fortes, em detrimento dos mais pobres e vulneráveis".
O termo 'colonização ideológica' foi utilizado várias vezes por Francisco para descrever a forma como o poder global tecnocrata e sem rosto coage as culturas tradicionais: associando assistência a controle da população, impondo a 'ideologia de gênero' por meio de livros didáticos e enfraquecendo os laços da família. Às vezes o termo confunde-se com o secularismo intolerante, às vezes se refere a uma visão de unidade que não respeita a diversidade cultural.
No voo de Manila, em janeiro de 2015, o Papa sugeriu a leitura do romance distópico de Hugh Benson, O Senhor do Mundo, de 1907, para entender a ideia de colonização ideológica. Benson retrata um mundo, que Francisco acredita claramente que está se tornando o 'paradigma tecnocrático', em que o secularismo e o ateísmo humanista triunfam sobre a religião e a moralidade, o relativismo ignora os limites éticos e onde, em nome da tolerância, a religião é proibida e a eutanásia e o aborto são socialmente aceitáveis.
Ele vê tal mentalidade em agências internacionais ostensivamente benevolentes. No seu discurso à ONU em setembro de 2015, por exemplo, ele advertiu que "sem o reconhecimento de certos limites éticos e naturais incontestáveis" e uma visão sã do desenvolvimento humano, as filiais da ONU podem acabar permitindo "uma colonização ideológica pela imposição de modelos anômalos e estilos de vida estranhos à identidade das pessoas, que acaba sendo irresponsável".
"Colonização ideológica" reflete a preocupação do Papa, acima de tudo, com o impacto de tais políticas e mentalidades sobre o mundo em desenvolvimento. É por isso que ele usou o termo ao se referir, particularmente, à Ásia e à África.
Como cardeal arcebispo de Buenos Aires, ele frequentemente se refere à ascensão de um pensamento único, uma maneira uniforme de pensar, associada ao relativismo e ao progressismo, que, como Papa, ele inclui no termo 'colonização ideológica'. Em 2005, por exemplo, ele fez referência a uma globalização em que "o pensamento tornou-se igual, eliminando a diversidade que marca toda a sociedade humana".
No entanto, isso não torna Francisco hostil à cooperação internacional - longe disso. Seu discurso no Prêmio Carlos Magno foi uma tentativa de reforçar os valores fundamentais da União Europeia frente à colonização ideológica, assim como ontem ele elogiou a Liga das Nações de 1917 e a posterior Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Pelo contrário, sua preocupação é que esses organismos agem para conter, e não para promover, as forças destruidoras da globalização, em defesa da cultura, dos valores, da sociedade civil e dos mais vulneráveis em todas as suas formas.
Ele cita, por exemplo, o direito da Declaração Universal de formar uma família e da proteção da família pelo Estado e pela sociedade, contrastando com a visão de que a família é uma instituição obsoleta. Para Francisco, a recuperação da família é fundamental para resistir à dissolução tecnocrática dos laços sociais.
A "rocha sobre a qual devem ser criadas as bases sólidas" da sociedade, disse ele aos diplomatas, "é justamente essa comunhão indissolúvel e fiel do amor que une homem e mulher, uma comunhão que tem uma beleza austera e simples, um caráter sagrado e inviolável e um papel natural na ordem social".
Não é surpresa que tudo isto apareça junto com um SOS a respeito do desemprego, do tráfico de pessoas, do fechamento de fronteiras para os migrantes e das exigências cada vez maiores sobre os trabalhadores pela lógica do lucro.
O Cardeal Carlos Aguiar Retes, figura-chave do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) no período que antecedeu o encontro de Aparecida, que recentemente foi nomeado por Francisco Primaz do México, publicou em 2003 um livro abrangente sobre a globalização e a nova evangelização. A obra, fruto de anos de pesquisa e discussão, contém o grande pensamento sobre globalização que depois surgiu em Aparecida.
No livro, o fundamentalismo de livre mercado, o consumismo, o secularismo, o aborto, a separação entre sexo e relacionamento e a ascensão do divórcio, bem como a "universalização de modelos culturais" são todos vistos como parte da mesma maré, que traz destruição ambiental, migrações em massa e uma nova racionalidade que "prioriza as exigências da concorrência e do lucro sobre a vida das pessoas".
Da mesma forma, o Papa lamentou que "as exigências de lucro, ditadas pela globalização, conduziram a uma redução progressiva do tempo e dos dias de descanso, resultando na perda de uma dimensão fundamental da vida - a do descanso -, que serve para revigorar as pessoas não apenas fisicamente, mas também espiritualmente".
A ideia de Francisco é fortalecer os laços da política e da sociedade civil para resistir à colonização da tecnocracia. Ontem, tentou convencer os países do mundo a unirem-se a ele.
Expressou, sobretudo, a visão da periferia, que - como ele já disse muitas vezes - oferece um ponto de vista mais claro do centro. Ontem, os diplomatas do Vaticano puderam olhar o mundo pela mesma lente.
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Discurso do Papa a diplomatas reflete suas raízes latino-americanas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU