29 Novembro 2017
A decisão do Tribunal Constitucional alemão sobre o terceiro sexo coloca a Igreja Católica em grande dificuldade: deve mudar a sua imagem de pessoa humana?
Em entrevista o professor de Direito Canônico Thomas Schüller defende que não deve existir preconceito com o "terceiro sexo": "Se quisermos que as pessoas sem um sexo bem definido não sejam marginalizados, como aconteceu por séculos - devemos reconhecer a sua dignidade pessoal e, portanto, a identidade que decorre disso. É o que fez agora o Tribunal Constitucional".
Thomas Schüller nasceu em 1961, é na Universidade de Münster. Nascido em Colônia, trabalhou de 1993 a 2009 na diocese de Limburg no Ordenariado dos Bispos. Ele tem doutorado em teologia católica.
A entrevista é de Christina Rietz, publicada por Zeit, 24-11-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sr. Schüller, recentemente o Tribunal Constitucional permitiu colocar "terceiro sexo" no registro de nascimentos de crianças que nascem sem sinais claros de pertencimento a um sexo. O que isso significa para a Igreja Católica? O Antigo Testamento deixa pouco espaço à Igreja a um terceiro sexo. No Gênesis está escrito: "Homem e mulher os criou". Situação difícil, certo?
A frase é inequívoca. Deus criou os seres humanos como homem e mulher. Não há nada a fazer, a doutrina cristã a esse propósito não pode ser questionada. Mas existe outra frase na Bíblia: o ser humano é imagem de Deus Portanto, cada ser humano, mesmo que não se encaixe no esquema binário homem-mulher, é imagem de Deus. Em todos os tempos existiram pessoas que não foram inequivocamente identificáveis como homem ou mulher. Não deveríamos considerar isso algo de patológico ou demoníaco. Isso também é natureza - no entanto, é a primeira vez ao longo dos milênios que é reconhecido, graças ao progresso da medicina. Portanto, no nível teológico, deveríamos levar em consideração o terceiro sexo.
A Igreja, jamais fez isso. Se quisermos que as pessoas sem um sexo bem definido não sejam marginalizados, como aconteceu por séculos - devemos reconhecer a sua dignidade pessoal e, portanto, a identidade que decorre disso. É o que fez agora o Tribunal Constitucional.
Essa decisão tem consequências diretas para a Igreja Católica na Alemanha?
Sim. Aqui temos uma situação única no mundo, ou seja, as igrejas têm todos os dados pessoais do Estado. Na Alemanha, cada Igreja sabe quem pertence a ela e onde mora. Para ter esse privilégio, as igrejas tiveram que aceitar duas coisas. Primeiro, elas precisam proteger esses dados da mesma forma que o Estado. Em segundo lugar, elas devem colocar todos esses dados pessoais em seus sistemas de informação.
O que isso significa concretamente?
O dado relativo ao sexo é um dos dados básicos. As Igrejas devem registrá-lo assim também no seu sistema. Além das questões teológicas, também há claras consequências nos registros civis dessa decisão judicial. Precisamos dar atenção ao terceiro sexo, juridicamente não podemos evitá-lo.
E se a Igreja Católica se recusasse a aceitar os dados relativos ao terceiro sexo, e persistisse com o esquema homem-mulher?
Se a Igreja não seguisse essa regra de registro, o Estado poderia, com uma boa razão, repensar criticamente a transmissão de dados, hoje natural.
O então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger, na década de 1990 tinha tomado uma posição sobre a questão dos transexuais, ou seja, de pessoas que nasceram com um determinado sexo, e, mais tarde na vida, tinham decidido passar para outro sexo. Ele queria descartar absolutamente que os homens que anteriormente eram mulheres pudessem se tornar padres. Escutam-se palavras como "patológico" e "anormal". Assim, presumivelmente, não há grandes esperanças em relação à futura discussão sobre o terceiro sexo, é isso?
A argumentação de Ratzinger baseia-se na lei natural, de acordo com o relato da criação existem apenas homem e mulher, e aquilo que uma pessoa é no início como sexo biológico continua tal, independente do que possa acontecer, como processos de transformação ao nível médico e psicológico. Essa argumentação é, no mínimo, demasiado simplista, uma vez que não leva em conta a realidade natural. Não leva a sério os difíceis processos de decisão de transexuais, que muitas vezes têm suas biografias truncadas. Além disso, a argumentação é devida à preocupação de não permitir que, em nenhum caso, as mulheres tenham acesso ao sacerdócio, nem mesmo aquelas que escolheram serem homens.
Há um esquema argumentativo baseado na lei natural, mesmo em matéria de homossexualidade.
A realidade é mais complexa do que uma clássica imagem binária da pessoa humana. Não devemos ignorar o que isso implica. Porém existem também pessoas que são homossexuais, e elas, da mesma forma, foram criadas por Deus. Temos que nos lembrar que em todos os milênios, em todos os ambientes culturais, existiu um número de homens e mulheres que eram homossexuais. Essa é uma realidade. E eles também são imagens de Deus, inclusive na sua identidade sexual.
Naquela época, Ratzinger definiu que os transexuais não podiam receber a ordenação para o presbiterado, nem poderiam casar-se validamente como católicos. Essas proibições aplicam-se hoje para pessoas do terceiro sexo?
Esse é atualmente o estado da doutrina, sim. De acordo com a norma eclesiástica apenas um homem definitivamente masculino pode casar com uma mulher definitivamente feminina. A questão da capacidade matrimonial surge também para o legislativo estatal. Se agora os homossexuais podem se casar, também as pessoas com o terceiro sexo deveriam poder faze isso, mesmo que apenas por motivos de antidiscriminação.
Pelo menos poderiam tentar reivindicá-lo. Mas se no futuro o estado for permitir também o casamento de intersexuais, a Igreja deverá novamente rever a sua atitude.
Existem também problemas com outros sacramentos? E a respeito do batismo de uma criança sem sexo definido?
De fato os católicos são obrigados, de acordo com as leis eclesiásticas. a batizar seus filhos o mais cedo possível. Mas o que pode ser feito se mesmo depois de dias ou semanas não pode ser definido um sexo exato? Como católico, você pode batizar apenas um menino ou uma menina, mesmo que seja apenas pelo nome que for escolhido. Durante o período da minha atuação no Ordenariado em Limburg, esporadicamente tive que atender casos desse tipo.
E como o senhor se comportou?
Se após o nascimento, médicos e pais não pudessem determinar com certeza qual o sexo da criança, e havia o desejo do batismo, era preciso chegar a um compromisso. Não é possível batizar uma criança sem um nome. Então, eu aconselhava a escolha de nomes neutros em relação ao gênero: Kim, por exemplo. Por eu ser também teólogo, além de canonista, sempre acrescentava: evitar uma operação precipitada, exceto em casos absolutamente necessários. Na vida de uma jovem pessoa podem ser causados sérios danos psicológicos, todos nós já lemos sobre casos desse tipo. Em dezesseis anos, aconteceu-me duas ou três vezes. No entanto, o assunto não é complicado apenas pelo nome de batismo: os pais de um filho sem um sexo determinado devem levar em consideração que a mudança de nome mais adiante é extremamente difícil, mesmo no direito secular.
Vamos voltar para a decisão atual do Tribunal Constitucional: organizações de leigos católicos, como o Comitê Central dos Católicos Alemães (ZdK) a receberam positivamente.
Sim, mas após a publicação da sentença. Na mesma sentença pode ser lido que o Comitê Central dos Católicos Alemães na audiência no Tribunal explicou que não se pode esperar que o povo alemão reconheça um terceiro sexo. Que as pessoas pensam segundo as categorias homem-mulher. Uma mudança de opinião que não convence completamente.
Vamos olhar um pouco para o futuro. Onde está sendo tratado o tema do terceiro sexo agora? Na Conferência episcopal alemã? Na Congregação para a Fé, em Roma?
As consequências no registro civil são de competência da Conferência episcopal, Roma não tem jurisdição sobre isso. Essa construção do fornecimento de dados civis pessoais pelo Estado é única no mundo, só existe na Alemanha. Quanto à doutrina dos sacramentos, batismo, matrimônio, ordenação ou também a questão do ingresso em uma ordem feminina ou masculina, disso é que Roma precisa tratar. Considerando que no meio tempo formou-se um evidente movimento em relação ao reconhecimento jurídico do terceiro sexo - inclusive no Nepal! - esse problema mais cedo ou mais tarde acabará chegando à Congregação para a Fé.
É ela que determina e defende a doutrina da imagem cristã da pessoa humana. As questões da intersexualidade afetam afirmações elementares do catecismo. A Congregação deve assumir a respeito disso uma nova atitude - e eu ousaria expressar o prognóstico de que não devemos esperar progressos.
Mas?
Eu já ficaria feliz se Roma dissesse: tudo bem, devemos considerar essas pessoas nascidas entre os dois sexos como imagens de Deus. Acolheremo-las assim como são e não vamos enquadrá-las forçosamente nas categorias homens ou mulheres. Se viesse uma declaração desse tipo, já teríamos tido um grande avanço. Seria considerada pelas pessoas envolvidas como um incentivo. Caso estivessem interessadas na opinião da Igreja a respeito.
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"Os intersexuais também são à imagem de Deus" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU