29 Agosto 2017
Desinformados e prepotentes, alguns “analistas” defendem privatização tramada por Temer. Não entenderam nem os riscos implícitos, nem o processo que levou ao desmonte da empresa.
O artigo é de César Benjamim, secretário de Educação do município do Rio de Janeiro, publicado por Outras Palavras, 28-08-2017.
A privatização da Eletrobras, a holding do nosso sistema elétrico, está na ordem do dia. Vejo pessoas postando que ela nunca deveria ter sido criada, pois, como as demais estatais, só foi cabide de empregos e fonte de corrupção.
É um erro crasso, que demonstra completo desconhecimento da história e das especificidades brasileiras. Precisamos de instituições que garantem a operação coordenada do sistema presente e planejam os investimentos para sua expansão, sempre com uma visão de conjunto.
Essa operação coordenada é que foi sendo enfraquecida durante os governos do PSDB e do PT, preparando o caminho para o desastre do governo Temer. Apesar da retórica política, há uma clara linha de continuidade entre todos eles.
Mesmo fazendo um resumo, o post será um pouco longo. Baseei-me em antigas notas de aulas.
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O moderno sistema elétrico brasileiro se formou com base hídrica. Somos um país tropical de grande dimensão, com rios caudalosos, com bacias hidrográficas distantes entre si, localizadas em regiões que têm diferentes regimes de chuvas. Por serem rios de planalto, de modo geral sua declividade é suave. Quando barrados, formam grandes lagos. São energia potencial. É só fazer a água cair, passando por uma turbina, que geramos energia muito barata, de fonte renovável e não poluente, com recursos e técnicas totalmente brasileiros. Se as barragens forem construídas em sequência, ao longo do curso de um rio, a mesma gota d’água é usada inúmeras vezes antes de se perder no oceano.
As chuvas variam de região para região. Para aproveitar essa variedade, o sistema foi interligado por mais de 4 mil quilômetros de linhas de transmissão, do Rio Grande do Sul ao Maranhão. Um operador central tornou-se capaz de racionalizar o uso da água e regularizar o curso dos rios em praticamente todo o país.
Os reservatórios situados em diferentes bacias hidrográficas, que não têm nenhuma ligação física entre si, passaram a funcionar como se fossem vasos comunicantes. Se chove pouco na bacia do São Francisco e muito na bacia do Paraná, por exemplo, a usina de Paulo Afonso é orientada a colocar pouca energia na rede, de modo a economizar sua água que se tornou preciosa, e a usina de Itaipu faz a compensação.
Ao colocar mais potência na rede, Itaipu cede água do rio Paraná, indiretamente, para o rio São Francisco. Nos lares, escritórios e fábricas ninguém percebe o inteligente rearranjo que permite otimizar o fornecimento de energia e a distribuição da água no território nacional em cada momento.
Por isso, no Brasil, diferentemente do que ocorre na maioria dos países, as linhas de transmissão integram o sistema de produção de energia. Não são simplesmente acopladas a ele para distribuir a eletricidade até o consumidor. Ligando quase todo o território nacional, elas ajudam a fazer com que a capacidade de geração elétrica brasileira, vista como um todo, seja 25% superior à soma da capacidade das usinas, vistas isoladamente.
Para produzir tamanha sinergia é preciso garantir a operação coordenada do sistema. Coordenada, primeiro, em cada bacia, pois a decisão de produzir ou economizar energia (ou seja, verter ou represar água), tomada em uma usina situada a montante, define as condições de operação das usinas situadas a jusante. Tal necessidade de coordenação envolve também bacias diferentes, como vimos no exemplo de Itaipu e Paulo Afonso.
Mais ainda: a coordenação é necessária não apenas à operação do sistema que já existe, mas também às decisões de investimento para sua expansão, pois a economicidade de uma nova usina depende de suas possibilidades de integração ao conjunto da rede. O estudo do regime de chuvas em cada região é fundamental para isso.
A correta operação do sistema exige, pois, uma visão de conjunto no espaço e um largo horizonte de tempo (uma hidrelétrica leva, em geral, de cinco a sete anos para ser construída). A ideia de operar cada usina isoladamente ou de decidir isoladamente pela realização de um investimento novo não tem sentido no sistema elétrico brasileiro. É uma especificidade nossa. Na maior parte do mundo a natureza não foi tão generosa, de modo que a produção de eletricidade baseia-se principalmente em usinas térmicas que usam carvão, gás ou petróleo. Elas, sim, funcionam isoladamente, sem sinergia.
Desde sua implantação, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, o sistema brasileiro tornou-se referência mundial. A oferta de energia segura e barata passou a ser uma conhecida vantagem do nosso país. O sistema pode ser aperfeiçoado, é claro, como tudo na vida. Porém, nenhum motivo de natureza técnica ou de racionalidade econômica exige alterar sua natureza.
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Sobre a Eletrobras, o Brasil e a arrogância ignorante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU