24 Julho 2017
No século XIX, o romancista e jornalista francês Edmond About era considerado o Tocqueville dos Estados Papais. Ele tinha uma visão bastante cínica de justiça papal. Hoje, quando recomeça o mais recente julgamento no Vaticano, é interessante voltarmos ao que ele diz. Há também algumas interrogações a respeito do momento em que ocorre este julgamento, além de uma ironia suculenta aguardando ser explorada em torno do nome de um dos advogados de defesa.
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 20-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
No momento em que reabre o mais recente julgamento no Vaticano por atividades financeiras ilegais, ocorreu-me que temos de voltar até os anos de 1800 para encontrar a última vez que um tribunal foi o centro das atenções da maioria dos jornalistas em Roma.
Naquele período, o papa ainda governava uma faixa de território na Itália central conhecida como os Estados Papais, e os julgamentos eram um evento comum. O papa tinha o seu próprio carrasco, sendo o mais famoso o “Mastro Titta”, corruptela da frase italiana “maestro di giustizia”, mestre da justiça.
Esta figura era tão famosa em meados do século XIX que as mães romanas cantavam à noite para crianças: “Sega, sega, Mastro Titta” Segare é o verbo italiano para “serrar”, imagem mental bastante exata.
150 aos depois, o Vaticano proibia a pena de morte, e hoje a Igreja é líder mundial no movimento abolicionista. Atualmente, o papa só exerce o poder civil ao longo de 109 acres de território, que constitui A Cidade-Estado do Vaticano.
No entanto, os julgamentos estão de volta após o “Vatileaks” em 2012 e o “Vatileaks 2.0”, em 2016, casos que envolveram o vazamento de documentos confidenciais que levaram à condenação do mordomo papal, no primeiro caso, e de uma mulher que deu à luz durante o processo, no segundo. Hoje estamos tendo o primeiro processo em 2017 sob as novas leis vaticanas para o combate ao crime financeiro.
O Crux cobriu o ato de abertura do julgamento: dois ex-funcionários do Bambino Gesù, hospital pediátrico em Roma mantido pelo Vaticano, chamados Giuseppe Profiti e Massimo Spina, usaram quase meio milhão de dólares do hospital para reformar o apartamento no Vaticano do cardeal italiano Tarcisio Bertone, ex-secretário de Estado durante o reinado do Papa Emérito Bento XVI.
O que está em disputa é se a despesa foi um movimento legítimo no apartamento de Bertone, conforme insiste Profiti, ou um modo ilícito de encher os bolsos de um outro empresário italiano e sua empresa de construção civil, conforme alegam os procuradores.
O julgamento está suspenso até o dia 7 de setembro. Teremos de aguardar alguns meses até o evento principal, portanto. A seguir, apresento três observações que sugerem que este caso pode acabar como uma grande novela romana.
Já que invocamos os Estados Papais, vale voltar a uma figura grandemente considerada o melhor cronista da última parte desse período: o romancista e jornalista francês Edmond François Valentin About, e sua obra clássica de 1859, “A questão romana”.
About era um anticlericalista declarado, portanto escrevia com uma pauta definida, o que não torna os seus insights menos precisos. Quando se trata da justiça criminal nos Estados Papais, eis a doutrina que proposta por ele: “Se ocasionalmente funcionários de um certo nível são punidos, se mesmo o direito é posto à força contra eles com um vigor incomum, resta assegurado que o interesse público não tem parte no negócio. As origens reais do ato devem ser buscadas alhures”.
Para ilustrar a ideia, About usava o caso de um ministro do departamento de penhoras públicas dos Estados Papais (sim, havia esta função a desempenhar), que desviava fundos de seu órgão para financiar a própria coleção de artes que mantinha. Embora um segredo aberto e abundantemente documentado, ele nunca enfrentou problemas até que o Cardeal Giacomo Antonelli, lendário secretário de Estado do século XIX, decidiu pôr o seu irmão no lugar do ministro, quando um grande crime fora descoberto, uma investigação foi lançada e o ministro condenado a vinte anos de trabalho árduo.
Portanto se formos aplicar a “doutrina de About” ao processo contra Profiti e Spina, a que fim de interesse não público ela poderia servir?
A resposta tentadora é que, com o encerramento do caso dos dois leigos envolvidos, Bertone livra-se de qualquer responsabilidade, de forma que o tribunal não tem de enfrentar a tarefa complicada de buscar condenar um cardeal (um cardeal, aliás, que ainda tem amigos em altos postos na hierarquia).
Não está claro ainda se Bertone será convocado a prestar depoimento no julgamento, seja por escrito, seja em pessoa, e o que ele teria a dizer. O religioso afirma ser inocente, embora os céticos podem não achar muito fácil acreditar que os dois leigos que desviaram fundos para Bertone sejam culpados de um ato criminoso, enquanto o cardeal, que os recebeu e que continua a se beneficiar deles, não o seja.
Bertone ofereceu uma contribuição de 170.000 dólares ao Bambino Gesù depois que o escândalo se tornou público. Além de tudo isso, o empresário italiano cuja construtora foi contratada é amigo de longa data de Bertone.
Por fim, uma curiosidade sobre About: mais tarde, o ministro condenado foi solto e se tornou uma celebridade menor nos Estados Papais, com um cardeal inclusive autorizando-o a usar sua cozinha particular. About escreveu: “As condenações são uma desonra somente em países onde os juízes são honrados. O mundo todo sabe que os magistrados pontifícios não são instrumentos de justiça, mas ferramentas de poder”.
Esperamos para ver se o resultado do processo atual tem um final diferente.
Na audiência preliminar de terça-feira, depois que o tribunal rejeitou um pedido de defesa proforma para desativar o caso, anunciou-se que as primeiras sessões ocorrerão nos dias 7, 8 e 9 de setembro, após o tradicional período de férias na Itália, o Ferragosto, feriado que tecnicamente cai em 15 de agosto, mas que funciona como uma desculpa para muitos no país saírem de folga por, mais ou menos, um mês.
Acontece que estas datas também coincidem com a tão aguardada visita do Papa Francisco à Colômbia, a acontecer entre 6 e 11 de setembro, ou seja, a maioria dos jornalistas de primeira linha que cobrem o Vaticano não estarão em Roma, mas acompanhando o pontífice.
Vale lembrar que os primeiros estágios do sensacional julgamento no Vaticano, o “Vatileaks 2.0”, também foram programados para acontecer no final de novembro de 2015, no mesmo tempo em que Francisco partia em viagem ao Quênia, Uganda República Centro-Africana.
Os cínicos, evidentemente, dirão que este é o equivalente vaticano da prática que tem a Casa Branca de lançar notícias ruins no final da tarde de sexta-feira, numa tentativa de enterrá-las enquanto outras histórias dominam na imprensa.
Seja qual for o caso, na última vez que isto ocorreu, não deu certo. O espetáculo do caso “Vatileaks 2.0”, que contou com os rumores de uma disputa entre a italiana Francesca Chaouqui e o monsenhor espanhol Lucio Angel Vallejo Balda era forte demais para resistir, independentemente de onde o papa estivesse.
Só o tempo dirá se os esforços em minimizar a ressonância do caso atual terão sucesso.
Analistas vaticanos de certa idade não puderam esconder a ironia ao ouvir ou nome do advogado de defesa de Spina: “Alfredo Ottaviani”.
Para os mais velhos, que viveram a década de 1960, o cardeal italiano Alfredo Ottaviani era o exemplo de uma lenda viva. Ottaviani presidia o Santo Ofício, mais tarde nomeado Congregação para a Doutrina da Fé, e era tido como o líder da oposição conservadora do Concílio Vaticano II. Até mesmo o seu lema episcopal sugeria uma intransigência: “Semper Idem”, isto é, “sempre o mesmo”.
Uma velha piada sobre Ottaviani, uma das favoritas durante o Vaticano II, é:
Um dia, Ottaviani atravessa a cidade de Roma para almoçar com amigos e precisa voltar para a sessão do Vaticano II à tarde. Chama um táxi, entra e diz: “Me leve para o Concílio”. O taxista olha para os lados, vê se tratar de Ottaviani e o conduz prontamente para Trento!
Entre outras coisas, Ottaviani falou negativamente da noção de “colegialidade”, ou seja, um maior compartilhamento do poder entre os bispos, em oposição a se reforçar a autoridade central em Roma. Num importante discurso, notou que os evangelhos apenas registram um caso onde todos os apóstolos agiram em colegialidade, e foi este: “Eles todos fugiram”.
Esta semana, tentei saber se o advogado de Spina tem relação com o famoso cardeal, mas elas se mostraram infrutíferas e eu desisti.
Há uma manchete natural à espera de ler escrita, não importa para qual lado nos inclinamos no caso. Se acreditamos que Profiti e Spina são culpados, podemos dizer: “Mais uma vez, Alfredo Ottaviani atrapalha as reformas”. Se acreditamos que não, podemos pensar: “Mais uma vez, Alfredo Ottaviani fica contra a ralé”.
Temos de concordar: estas manchetes podem não ser muito atrativas aos católicos mais jovens de hoje, para quem o Vaticano II pode ser tão distante no tempo quanto Trento. Mas para os mais velhos, elas definitivamente dão o que falar.
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Chegou a hora de resgatar a “doutrina de Edmond About”? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU