01 Julho 2017
“Se eu fosse o papa, ‘arderia o mundo’, responderia à Royal Commission australiana que cuidassem dos seus próprios negócios, e à Justiça do Estado de Victoria que o cardeal Pell está indisponível a processos que poderiam se transformar facilmente em justiça sumária, que está estatutariamente defendido pela sua condição vaticana e não figurará como bode expiatório no marco de uma grave campanha de deslegitimação da autoridade e dos carismas da Igreja Católica, isto é, universal. Mas isso, infelizmente, não pode acontecer.”
A opinião é do jornalista e ex-ministro italiano Giuliano Ferrara, fundador do jornal Il Foglio, 30-06-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A passagem ou a história são sempre as mesmas. Quarenta, cinquenta anos depois, despontam as vítimas, o relato horrível de abusos e acobertamentos dos abusos abre caminho como mancha de óleo, o tempo decorrido torna tudo muito opaco, mas a memória organizada é infalível e se alimenta de detalhes de pesadelo, que desafiam o meio século dos fatos, as comissões legais e ideológicas se apossam da situação, vítimas e porta-vozes das vítimas e das associações antipedofilia não se distinguem mais entre si, comissões de inquérito políticas se misturam com todo o equívoco do caso a ministérios públicos e polícia judiciária na corrida à acusação, a convocação de prelados colocados cada vez mais alto na hierarquia vaticana torna mais saborosa a sopa cozida com a operosa ajuda da mídia, e a disseminação de publicações ad hominem, exemplos de character assassination sem escrúpulos, prepara o leito sobre o qual se estende uma opinião pública indignada, aterrorizada com os detalhes, até a inevitável acusação de estupro, abuso supremo.
Agora, pegaram em cheio o cardeal George Pell, australiano, padre no início dos anos 1970, depois arcebispo, depois primaz da Austrália e cardeal da Igreja Romana, por fim número três operacional do poder vaticano, responsável pelas finanças e pela sua reforma. Da Austrália, entre comissões políticas e Judiciário, entre comitês e movimento das vítimas, conseguiram incriminá-lo, com uma óbvia presunção de inocência e uma igualmente óbvia forca universal, e o mandaram ser processado. Foi arquivado o arquivamento das denúncias ou depoimentos anteriores, que remontam a 2002, e prosseguiu-se, seguros e inflexíveis, apesar de tudo.
O crivo de três pontífices sobre a figura de Pell é um bom bocado: São João Paulo II fê-lo bispo e cardeal, Bento XVI o estimava e o considerou pelo que ele é, homem da tradição católica e da guerra contra o relativismo religioso, filosófico e moral, enquanto Francisco, sabendo que era personalidade “controversa” aos olhos do movimento antipedófilo australiano, até o chamou a Roma para altíssimas responsabilidades.
Uma passagem delicada pelo pontificado, sentencia um dos porta-vozes das ervas daninhas curiais, o jornalista Fittipaldi. Um exemplo de tolerância zero para um papa que lhe impôs voltar para a Austrália para se defender no julgamento, é o veredito do defensor de Francisco, Alberto Melloni.
Eu, no vídeo na web, vejo um homem que tem quase 80 anos, um colosso de rosto largo, sincero e inteligente, que fala um inglês com o sotaque rude da “costa fatal”, e uma expressão amarga, melancólica, amedrontada, apesar da orgulhosa proclamação da sua inocência e a disponibilidade impecável de lutar na justiça para demonstrá-la.
Pell tem todo o ar de saber o quão forte é a aura de suspeita e de fétida malevolência que cega qualquer prelado vaticano em posição eminente que seja atingido por acusações de abusos e de acobertamento de abusos, conhece o mecanismo da vitimização em que se misturam recordações distantes, testemunhos por sua natureza juridicamente dúbios, combinação orquestrada da memória como instrumento ideológico de luta contra o clero católico.
Ele sabe que o delegado do papa na comissão vaticana contra a pedofilia, falando no célebre programa 60 minutes da CBS estadunidense, Peter Saunders, entre os fiéis abusados na juventude, derrubou-o com a acusação mortal de ser alguém que “despreza as crianças vítimas de abusos sexuais”. Pell é um homem realista e pragmático, um construtor e um líder, alguém que desconfia das burocracias curiais, onde se aninham muitos dos seus inimigos, que são inimigos de toda a reforma e sopram sobre o fogo sagrado da limpeza moral, para que nada realmente mude, e, provavelmente, tem uma opinião duvidosa sobre muitos aspectos flagrantes e barulhentos da campanha contra os abusos do clero em todos estes anos.
Portanto, “despreza as crianças vítimas de abusos sexuais” é uma das tantas equações morais que penetraram na pele antigamente dura da Igreja, hoje um corpo muito frágil e uma alma em pena.
Sobre a não culpabilidade de George Pell, acrescento a minha modesta e não essencial opinião ao crivo de três papas.
Desde sempre estou convencido, e não há “Spotlight” que me faça mudar de opinião, de que um dos eixos da secularização e da descristianização forçada de todos estes anos, até o fato de colocar em estado de expiação um pontificado teológico elevadíssimo e a Renuntiatio do seu titular, Bento XVI, é a campanha orquestrada contra a pedofilia do clero. A desordem sexual sempre foi típica de todas as sociedades em geral, e, em particular, não fogem desse quadro os lugares dedicados à inibição da libido, incluindo o clero monossexual, célibe e devotado à castidade.
Eu não sou um negacionista quando se trata de abusos contra menores. Mas é preciso que se fale dele de modo civil, respeitando as proporções, sabendo medir com justiça e senso comum a dimensão exata do fenômeno e a sua difusão, evitando fazer caças às bruxas de véu ou batina, inversão histórica e mitológica simples demais da lógica de Torquemada e dos piores instrutores da Inquisição espanhola.
E estou atordoado com a incapacidade da Igreja de responder no mesmo tom à caça às bruxas, com a renúncia a explicar, a descrever, a tematizar o fenômeno dos abusos, entregando mãos e pés do clero à lógica da suspeita como antessala da verdade.
Se eu fosse o papa, “incendiaria o mundo”, para parafrasear ao contrário Cecco Angiolieri ("s’i’ fosse papa, sarei allor giocondo / ché tutti i cristiani embrigarei"). Responderia à Royal Commission australiana que cuidassem dos seus próprios negócios, e à Justiça do Estado de Victoria que o cardeal Pell está indisponível a processos que poderiam se transformar facilmente em justiça sumária, que está estatutariamente defendido pela sua condição vaticana e não figurará como bode expiatório no marco de uma grave campanha de deslegitimação da autoridade e dos carismas da Igreja Católica, isto é, universal. Mas isso, infelizmente, não pode acontecer.
Com o Concílio Vaticano II, a Igreja Romana se tornou luterana. Gênio religioso, grande pregador, feroz moralista, o monge fatal da Europa e do mundo moderno confiava, com Paulo e Agostinho, a salvação das almas à fé somente e à Escritura somente. Disso, saiu destruído o sistema de fé e razão construído por Tomás de Aquino com o auxílio de Aristóteles.
Disso, saiu consumada, em cinco séculos, a Igreja como instituição peregrina visível, substituída pelo povo de Deus que administra por si só, na intimidade e na cotidianidade da sua vida, o instinto do pecado e o impulso moral. Roma deu escândalo, entre lascívia, dinheiro, política e beleza, e a cristandade ocidental, pouco a pouco, mudou desde as suas raízes, sob o chicote da Reforma.
A desordem sexual, tão antiga quanto o mundo, sob a ação conjunta do puritanismo e do libertarianismo relativista, tornou-se fenômeno específico, disseminou-se como problema próprio em uma Igreja célibe e casta, e portanto repressiva, e tornou-se objeto de uma campanha secularista de culpabilização.
A única resposta continuou sendo aquela, miserável, na verdade, da tolerância zero e do abandono dos padres ao voraz preconceito dos justos, dos porta-vozes das vítimas.
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Pell: a miserável rendição à caça às bruxas. Artigo de Giuliano Ferrara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU