09 Junho 2017
“Estando tão perto do Papa em sua fala na Praça de São Pedro, perguntei-me como esse homem, que lava os pés das mulheres prisioneiras, teria se sentido se soubesse que a menos de cem metros de distância nós estávamos sendo tratados como verdadeiras ameaças. Como será que ele se sentiria se soubesse que, no seu declarado Ano da Misericórdia, enquanto milhares de sacerdotes eram saudados e perdoados, nós não tivemos compaixão alguma? Pelo contrário, fomos tratadas com desconfiança e desdém”, pergunta Jamie Manson, mestre em teologia pela Divinity School de Yale, onde estudou Teologia Católica e Ética Sexual, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 07-06-2017, ao narrar um incidente ocorrido em Roma, durante o Ano Santo Jubilar da Misericórdia. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Esta história deveria ter sido contada um ano atrás. Não sei por que relutei em contá-la. Mas a estranha alquimia de medo e desconfiança gerada pelos recentes ataques terroristas, combinada com os recentes comentários do Papa Francisco sobre a "crise vocacional", me levaram a recontar um incidente* vivido por mim que completou um ano nesta semana: o dia em que eu e um pequeno grupo de mulheres nos tornamos um perigo claro e iminente ao Vaticano.
Antes de contar a história, aqui vai uma rápida análise das palavras de Francisco sobre a "crise das vocações", em uma sessão de perguntas com sacerdotes e religiosos durante uma visita de um dia a Gênova, na Itália, na semana passada.
De acordo com Inés San Martín, de Crux, Francisco citou uma série de fatores que estão contribuindo para a crise. Primeiro, ele culpou as baixas taxas de natalidade.
"Quando as famílias eram maiores, havia mais [vocações]", disse ele. Agora, é "mais fácil viver com um gato ou um cachorro".
Ele responsabilizou ainda mais os sacerdotes e os religiosos que são tristes ou muito terrenos. "Um jovem os vê e diz: 'Eu não quero viver assim’. Isso afasta as pessoas", disse Francisco.
"É hora de perguntar ao Senhor e a nós mesmos, o que devemos fazer? O que temos de mudar?" refletiu o Papa. "Resolver os problemas é necessário. E aprender com eles, obrigatório."
A história que vou contar pode ser considerada triste e certamente envolve rejeição. Mas conto essa história na esperança de que ela possa ajudar o Papa e seus irmãos sacerdotes em seu discernimento sobre o que talvez seja preciso mudar.
Francisco declarou o ano passado como Ano Santo Jubilar da Misericórdia, e muitos eventos foram realizados no Vaticano para celebrá-lo. De 1º a 3 de junho de 2016, o Vaticano organizou o Jubileu dos Sacerdotes, que se encerrou com uma missa celebrada pelo Papa.
Em resposta, líderes da Women's Ordination Worldwide e da Women's Ordination Conference, grupos internacionais de apoio à ordenação de mulheres, desenvolveram uma ação chamada "Jubileu das Mulheres Sacerdotisas" simultaneamente ao Jubileu dos sacerdotes do Vaticano. A ação envolveu uma manifestação pacífica em frente ao Castel Sant'Angelo, a poucas quadras da Praça de São Pedro. As organizadoras também nos conseguiram ingressos para a missa com o Papa.
Nossa mensagem na manifestação foi simples: Deus chama homens e mulheres ao sacerdócio.
Com a ajuda de uma cidadã italiana, foi obtida uma autorização para o protesto em frente ao Castel Sant'Angelo, um lugar por onde nós esperávamos que os sacerdotes passariam no caminho à celebração da missa em São Pedro. Mas foi a polícia, e não os sacerdotes, que estava lá para nos cumprimentar naquela manhã.
Seis membros da Polizia romana interrogaram nossas organizadoras, verificaram nossa autorização e tentaram encontrar um motivo para acabar com nossa manifestação antes mesmo de começar. A principal negociadora da polícia romana, uma mulher, conversou pacientemente com nossas organizadoras, enquanto cinco oficiais homens cercavam-nas.
Ela nos disse que sua unidade geralmente fica encarregada de proteger o Vaticano contra ameaças terroristas, mas naquele dia ficaram encarregados de nos cuidar. Ao longo das negociações, por diversas vezes ela ligou para o chefe do Corpo della Gendarmeria, a polícia e força de segurança do Vaticano.
Nossas organizadoras disseram à polícia que também tínhamos ingressos para a missa papal, que deveria começar assim que a nossa manifestação terminasse. Ao olhar os ingressos, ela disse: "Ah, vocês são peregrinas". De repente, a polícia se dispôs a nos deixar onde estávamos e insistiu em nos "escoltar" até a Praça de São Pedro.
Nosso grupo de nove mulheres não poderia ir até o Vaticano sozinho.
A negociação mais intensa teve a ver com uma sacerdotisa anglicana que se juntou à nossa manifestação em solidariedade. Ela é uma das poucas sacerdotisas anglicanas que atuam em Roma e estava usando um colarinho romano, como geralmente faz como ministra ordenada.
Explicamos em detalhes por que ela tinha o direito de usar o colarinho sacerdotal. "Eu sei quem ela é e por que pode usá-lo", disse a oficial, fazendo um gesto com o braço e indicando a Basílica de São Pedro. "Mas eles não vão entender. E isso vai deixá-los desconfortáveis. Eles nunca viram isso."
Nossa manifestação foi autorizada a continuar. Rezamos, cantamos e falamos à mídia que acreditávamos que as mulheres também tinham vocação para o sacerdócio.
As nove marcharam, duas a duas, até a Villa della Conciliazione. Dois policiais ficaram à frente do nosso grupo, nos conduzindo, e dois ficaram na nossa retaguarda. Duas viaturas, uma identificada e outra não, nos levavam em ambos os lados. Os oficiais dentro das viaturas nos encaravam quando cruzavam por nós.
Quando finalmente chegamos às barricadas do Vaticano, doze outros seguranças se aproximaram, alguns da polícia romana, outros da Gendarmeria do Vaticano, e outros ainda que eram homens de preto não identificados. Havia dois oficiais de várias agências de segurança para cada uma de nós, e alguns deles falaram conosco por trás de uma barreira que nos separava da Praça de São Pedro.
Enquanto eles olhavam os pertences de outros peregrinos de forma displicente e reuniam-os na praça, nós fomos mantidas em grupo e submetidas a uma busca minuciosa nas nossas bolsas.
Eu levava uma pequena pasta com uma blusa mais fresca dentro. O agente de segurança bateu a camisa, sacudiu-a violentamente no ar e depois atirou-a em meus braços. Levei alguns minutos para perceber que ele não estava procurando uma arma; ele estava procurando um colarinho clerical.
Eles confiscaram nossos banners, panfletos e bottons. E fizeram questão de vasculhar nossas bolsas procurando estolas sacerdotais.
"O que quer que você faça, não pode usar estola na Praça de São Pedro", a policial nos avisou. "Seria considerado provocação".
As estolas de duas mulheres do Roman Catholic Womenpriests (Sacerdotisas Católicas Romanas) foram apreendidas como se fossem contrabando.
Todos os nossos objetos confiscados foram levados para a delegacia na praça. Disseram que poderíamos buscá-los depois que a missa terminasse.
Quando a polícia finalmente ficou satisfeita que os nossos materiais ameaçadores haviam sido neutralizados, passamos por detectores de metal e nos levaram aos nossos assentos. Era possível ver Francisco lá longe, cercado por milhares de homens em túnicas e estolas.
Um membro da força de segurança do Vaticano ficou na nossa frente o tempo todo, e outro no corredor. Seus olhos dirigiam-se principalmente à nossa apoiadora anglicana e seu colarinho. Após cerca de 30 minutos do início da liturgia, a sacerdotisa anglicana saiu da missa para atender a sua própria igreja. Os guardas, que talvez tivessem se entediado de ficar nos observando assistir à liturgia, não perceberam. Quando viram que ela não estava na nossa fila, entraram em uma espécie de pânico.
Um deles se aproximou de nós, querendo saber onde ela estava. Quando confirmamos que ela tinha saído para voltar ao trabalho, eles a procuraram na multidão. Sua preocupação, ficou claro, era que ela pudesse tentar se infiltrar entre os sacerdotes homens e criar tumulto. Ou pior, tentasse celebrar junto. Eles não a encontraram.
Na hora da comunhão, dezenas de sacerdotes saíram para distribuir a Eucaristia. Quando uma das nossas organizadoras tirou as mãos para receber, o padre se recusou.
"Preciso colocá-la na sua boca e vê-la engolir", disse ele.
Quando ela se recusou, ele saiu, negando sua Comunhão. Houve um breve diálogo acirrado entre ela e o padre. Outro padre, ouvindo a agitação, colocou silenciosamente uma bolacha nas mãos.
Foi uma conclusão indigna para um dia muito humilhante. Embora provavelmente esses padres não sabiam quem nós éramos, o simbolismo de uma mulher esticando a mão pela comunhão, para apenas ser humilhada, subordinada e rejeitada, parecia uma ritualística condizente com a nossa experiência.
Um ano após esse incidente, tenho esperança que, ao refletir sobre o que pode ser aprendido com a suposta crise das vocações, Francisco possa de alguma forma ouvir esta e outras histórias de mulheres.
Talvez ele reconheça o que aprendemos naquele dia em Roma: falta muita hospitalidade ou boa vontade a qualquer pessoa que se atreva a dizer que Deus convida as mulheres para o ministério ordenado na Igreja.
Estando tão perto do Papa em sua fala na Praça de São Pedro, perguntei-me como esse homem, que lava os pés das mulheres prisioneiras, teria se sentido se soubesse que a menos de cem metros de distância nós estávamos sendo tratados como verdadeiras ameaças.
Como será que ele se sentiria se soubesse que, no seu declarado Ano da Misericórdia, enquanto milhares de sacerdotes eram saudados e perdoados, nós não tivemos compaixão alguma? Pelo contrário, fomos tratadas com desconfiança e desdém.
O que ele pensaria se soubesse que, dentro da cultura do encontro que ele estava tentando cultivar, estávamos sendo tratadas como um perigo claro e iminente?
Se ouvisse nossas histórias, talvez o Papa começasse a perceber que, na verdade, não há crise de vocação. O que existe é uma crise de criatividade sacramental por parte da hierarquia da Igreja.
Francisco ganhou legiões de seguidores justamente porque ele vê a presença de Deus nos corpos dos doentes, dos sofredores, dos sem-teto e dos indigentes. Porém, ele ainda não consegue ver a presença de Deus nas mulheres que desejam servir, liderar a Igreja e celebrar seus sacramentos com o povo de Deus.
Francisco está certo. A Igreja institucional contribuiu para a crise das vocações. Mas não é ser muito terreno ou triste que afasta as pessoas das vocações. É a rígida recusa da Igreja institucional em ouvir as vozes das mulheres chamadas a serem sacerdotisas e a voz de Deus que as chama.
Enquanto o Papa e seus irmãos padres não conseguirem ouvir as mulheres, em vez de silenciá-las, e ver o trabalho sacramental de Deus através das mulheres, em vez de tratá-las como uma ameaça que precisa ser controlada, eles terão pouca esperança de aprender com um problema que eles mesmos criaram ou de abordar uma crise que eles próprios podem resolver.
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Quando a mulher torna-se perigo claro e iminente no Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU