05 Abril 2017
Há 50 anos, o Papa Paulo VI publicou a Populorum progressio. Uma encíclica que marcou para sempre a história da Igreja contemporânea. Naquele 26 de março de 1967, verificou-se, há dois anos do Concílio Vaticano II, o deslocamento do eixo da evangelização da Igreja: “O desenvolvimento dos povos, especialmente daqueles que se esforçam por afastar a fome, a miséria, as doenças endêmicas, a ignorância; que procuram uma participação mais ampla nos frutos da civilização, uma valorização mais ativa das suas qualidades humanas; que se orientam com decisão para o seu pleno desenvolvimento, é seguido com atenção pela Igreja. Depois do Concílio Ecumênico Vaticano II, uma renovada conscientização das exigências da mensagem evangélica traz à Igreja a obrigação de se pôr ao serviço dos homens, para os ajudar a aprofundarem todas as dimensões de tão grave problema e para os convencer da urgência de uma ação solidária nesta virada decisiva da história da humanidade”. Assim começava o documento pontifício.
A reportagem é de Pierluigi Mele, publicada por Confini, 03-04-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A 50 anos da sua publicação, esse documento ainda é atual? Falamos sobre isso, nesta entrevista, com o padre Gianpaolo Salvini, jesuíta, economista e ex-diretor da prestigiosa revista La Civiltà Cattolica.
Padre Salvini, há 50 anos, o Papa Paulo VI renovou, no rastro do Concílio Vaticano II e da abordagem evangélica dos “sinais dos tempos”, a doutrina social da Igreja, ao publicar a Populorum progressio. A encíclica causou grande repercussão por causa do seu conteúdo. O documento pontifício foi definido como a Rerum novarum dos povos. Por quê?
A Populorum progressio foi e continua sendo uma das encíclicas mais significativas da doutrina social da Igreja. Em certo sentido, completou o Concílio, que tinha se concluído dois anos antes, que falara pouco dos problemas sociais em nível mundial. O Vaticano II tinha sido principalmente um Concílio europeu e, particularmente, alemão e francês, do ponto de vista teológico. Muito poucos bispos provenientes do mundo pobre tinham podido se fazer notar. De algum modo, foi uma integração do Concílio e como tal foi percebida. Além disso, naquele momento, muitos ex-Estados colônias tinham acesso à independência, repletos de esperança, mas também de incógnitas, como infelizmente demonstrou a história posterior. Na época, não se falava de globalização, mas a encíclica trouxe uma mensagem global, lidando com os problemas do desenvolvimento, visto como reedição em escala planetária da velha questão social.
Além disso, o texto não se punha mais acima das partes, “dando a cada um o que lhe cabia”, mas se coloca decisivamente do lado dos mais fracos, dos países pobres, ou seja, dos vencidos, dos marginalizados. Por isso, não foi bem acolhida em todos os lugares, pelo menos em alguns países industrializados. Para alguns, tratava-se até de “marxismo requentado”. Ainda não se percebia a interconexão entre os vários países do globo que existe e que não é necessariamente fruto de uma relação entre causa e efeito. Mas se denunciava como um escândalo que as duas realidades, de grande riqueza e de pobreza, coexistissem, embora nem sempre (mas muitas vezes sim) fruto da exploração de uns sobre os outros. Na parábola do homem rico e do pobre Lázaro, o escândalo não é o fato de que o primeiro depredou o segundo (o que o Evangelho não diz), mas que as duas realidades coexistam, e que o rico permaneça cego diante da pobreza do outro. Simplesmente não o vê. E, por isso, é condenado e não só repreendido, como observará João Paulo II na Sollicitudo rei socialis (que, justamente, comemora a Populorum progressio). O projeto de Deus para a humanidade é incompatível com essa situação.
A Populorum progressio é fruto de um trabalho preparatório de leigos e teólogos. Quais são as raízes dela?
A Populorum progressio teve uma gestão de mais de seis anos e, particularmente, reflete o pensamento do dominicano Louis-Joseph Lebret e de outros teólogos, mas principalmente a grande sensibilidade de Paulo VI pelos problemas internacionais. Se, no século XIX, os documentos oficiais do magistério social da Igreja chegaram atrasados em relação a “O Manifesto”, de Karl Marx, não foi assim no segundo pós-guerra para os problemas relativos ao desenvolvimento. A Populorum progressio é composta por 87 parágrafos, expressados de modo lapidar e muito eficaz. Algumas de suas frases tornaram-se quase proverbial: “O desenvolvimento é o novo nome da paz” (n. 47); “O desenvolvimento deve promover todos os homens e o homem todo” (n. 14); e não perdeu nada da sua mensagem. Os documentos dos papas sucessivos nessa matéria, ao contrário, são muito mais complexo e articulados, provavelmente também para dar conta de um mundo que gradualmente revelava a sua complexidade.
Passemos para os conteúdos. No centro, está a discussão de um modelo “neoliberal” (ou, melhor dizendo, neoliberalista) de desenvolvimento. Propõe-se um desenvolvimento integral do homem e da sociedade. Pode nos dizer quais são os pontos-chave dessa reflexão da encíclica?
A encíclica certamente critica alguns dos princípios do capitalismo e dos seus mecanismos, sem, com isso, contestar radicalmente a economia de mercado. Por outro lado, ela queria rejeitar decisivamente as soluções propostas pelo sistema de economia planificada (isto é, o modelo proposto pelo comunismo, que tinha na URSS o seu país líder), então muito popular e visto por milhões de pessoas quase como uma mensagem messiânica, mas que a Igreja julgava como um remédio pior do que a doença, também com base na experiência histórica do pós-guerra. A encíclica colocava no centro a pessoa humana, que, ao ser transformada, também se transformariam as estruturas econômicas. O marxismo defendia o contrário. Uma das principais mensagens da encíclica é que o desenvolvimento (o original latino usava a expressão mais forte “progressio”) nunca pode se reduzir apenas ao aspecto econômico ou ao aumento do PIB, mas requer um desenvolvimento harmonioso de todas as dimensões humanas, das quais a econômica é uma, embora muito importante. O sonho de Paulo VI era o de dar uma alma ao desenvolvimento. Uma expressão muito sugestiva, mas tão difícil de implementar em um mundo no qual ainda prevalecem as relações de força.
Para citar o dominicano Marie-Dominique Chenu, com a encíclica de Paulo VI é superado o “reformismo moral” da Rerum novarum e, finalmente, põe-se fim ao “conluio” da Igreja com o sistema capitalista. É isso?
É verdade que há um grande distanciamento do sistema capitalista, do qual se denunciam as disfunções e os mecanismos perversos, as “estruturas de pecado”, como João Paulo II as chamaria, e as correções que a encíclica propõe levar ao sistema capitalista são tais que se poderia perguntar se, no fim, ainda se trata da velha economia de mercado ou de qualquer outra coisa. Basta pensar na recusa dos automatismos de mercado que teriam tentado sanar o sistema. Mas é preciso lembrar que a economia mundial é muito mais articulada e variada do que normalmente se pensa. Em todo o caso, os governos hoje veem a vantagem da integração e protestam não mais porque devem entrar em um mundo globalizado, mas porque não lhes é concedido entrar nele ou, pelo menos, não de entrar em condições iguais.
Quais são os pontos que anteciparam a reflexão da sociedade política sobre essas questões e quais, em vez disso, estão “datados”?
Muitos temas da encíclica ainda são muito atuais, enquanto outros, obviamente, são datados ou simplesmente não existiam (ou não eram percebidos) no tempo da sua publicação. Não há qualquer menção aos problemas ecológicos e do ambiente. Não se fala do problema da mulher e daquilo que envolveria a entrada maciça delas no mundo do trabalho. Menciona-se apenas marginalmente o problema das migrações, hoje tão dramático e urgente. No nosso mundo atual, podem circular livremente as informações, as tecnologias, as mercadorias (por quanto tempo ainda?), mas não as pessoas não qualificadas, que cada país se apressa para rejeitar para as próprias fronteiras, vendo-as como uma ameaça constante. O próprio problema do trabalho e do desemprego não é visto na encíclica como “o” problema central.
O senhor esteve por vários anos na América Latina, particularmente no Brasil. O que essa encíclica significou para a América Latina?
Eu estive alguns anos no Brasil e na América Latina, onde a Populorum progressio teve uma enorme influência. Mas isso não significa que ela tenha tido uma adequada aplicação lá, até porque, para muitos daqueles países, por causa do temor do comunismo, não foi permitido se desenvolver em formas democráticas e também porque nem sempre as classes políticas e dirigentes se demonstraram preparadas e à altura da situação. Milhões de latino-americanos saíram da pobreza nesses últimos 50 anos, mas sem que o desenvolvimento tenha se traduzido em um processo durável e sustentável, animado por uma cultura nacional adequada, capaz de incluir a maioria da população.
O Ensino Social vive da história dos homens e da Igreja. Ainda nas palavras de um grande teólogo francês, citado na encíclica, Marie-Dominique Chenu, o ensino social é o “Evangelho no tempo”. Hoje, esse “Evangelho no tempo” se encarna na pregação do Papa Francisco. Podemos dizer que, com o Papa Francisco, a Populorum progressio encontra a sua plenitude?
O Papa Francisco certamente enfatizou fortemente aquilo que falta para a realização dos ideais propostos pela Populorum progressio e, em particular, a necessidade de um contínuo dinamismo. A história segue em frente, e as suas conquistas precisam de tempo, embora não o faça com os ritmos tão velozes que gostaríamos. Mas o temor do Papa Francisco é de que a humanidade se contente com os resultados alcançados (que são muitos), sem prestar atenção aos milhões que foram “descartados” por um sistema econômico e social que não conseguiu incluí-los em um sistema mais justo e menos desigual, no qual, ao contrário, as desigualdades aumentam.
A Populorum progressio propõe ideais muito desafiadores, mas se trata de metas em movimento, que requerem, por sua vez, ser “atualizados”. O desenvolvimento, tanto das pessoas quanto das sociedades e países, é, em si mesmo, uma meta móvel, que corre na nossa frente e que requer aperfeiçoamentos contínuos. A impressão que o Papa Francisco dá muitas vezes de “estar além” simplesmente expressa esse desejo de não perder o trem da história, que nos empurra evangélica e constantemente para algo maior e mais humano.
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"Populorum progressio": a profecia ignorada de Paulo VI. Entrevista com Gianpaolo Salvini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU