14 Março 2017
O seu impacto pode ser profundo e abrangente, mas a essência da reforma de Francisco, claramente visível após quatro anos, é uma reorientação da missão pastoral da Igreja para com a humanidade. É um programa feito na América Latina, que convoca a Igreja a uma “conversão pastoral”.
O comentário é de Austen Ivereigh, jornalista, cientista político e autor do livro The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope, publicado por Crux, 13-03-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Os quatro anos do Papa Francisco no governo de Roma foram uma longa Quaresma, um momento de conversão – envolvendo dor e alegria – e de reorientação do propósito primário da Igreja. O modelo para a transformação foi projetado na América Latina e se chama “conversão pastoral”.
A ideia é que quando a Igreja – não só o clero, mas todos os seus “discípulos missionários” – aprende a ser pastor para a humanidade como o foi Jesus, as igrejas irão se encher e o mundo se converterá.
O programa precisava vir da América Latina, porque a capacidade para uma autorrenovação na Europa e Estados Unidos já tinha se esgotado. As ricas porém declinantes igrejas do norte precisavam aprender novamente como pastorear.
A cultura dessas igrejas geralmente vê o catolicismo como triste e zangado, um pouco coercitivo e dominador, lançando regras sobre as pessoas e preocupado consigo mesmo, e não com a humanidade.
Essa história é falsa, mas foi verdadeira o suficiente a ponto de ser difícil refutá-la.
Na América Latina, por outro lado, a Igreja é vista de uma maneira bem diferente pela cultura: ele volta-se à humanidade, não contra ela; é uma comunidade a serviço, próxima das pessoas comuns e aliada delas, preocupada com o bem-estar das pessoas e disposta a investir no serviço a elas dedicado. Em suma, uma Igreja pastoral, como buscou o Concílio Vaticano II.
De novo, essa história não é inteiramente verdadeira: há inúmeros contraexemplos de clericalismo e rigidez, e mesmo corrupção. No entanto, na maior parte ela é verdadeira – e verdadeira o suficiente para o preconceito cultural ficar essencialmente incólume.
A teologia e a espiritualidade latino-americanas, apesar das divergências e resistências (geralmente de Roma) desenvolveram em sua “opção pelos pobres”, desde a década de 1960, uma corrente poderosa de resistência à arrogância do poder e do consumo. Isso rendeu à Igreja latino-americana uma credibilidade evangelizadora na proclamação de Jesus, quem se relacionou primeiramente com as vítimas – e não com os grupos de poder.
Quando os bispos latino-americanos se reuniram em Aparecida-SP, em maio de 2007, firmaram, com ousadia, um convite à Igreja para que houvesse uma “conversão pastoral”, que significou ir “além de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária”. Em troca, exigia-se uma “conversão espiritual, pastoral e institucional” inspirada no Vaticano II.
As correntes elétricas que a Igreja no hemisfério norte precisava tinham de ser lançadas do sul, e elas ainda estão, através de Francisco, eletrificando-nos – mesmo se já tenhamos crescido acostumados com alguns de seus choques.
A conversão pastoral foi o chamado que Francisco assumiu em Evangelii Gaudium após a sua eleição, e é o que vem orientando as decisões tomadas por ele nesses últimos quatro anos de reforma. O seu papado vem sendo uma “perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia”, como afirmado em Misericordia et Misera, em que “no centro, não temos a lei e a justiça legal, mas o amor de Deus, que sabe ler no coração de cada pessoa incluindo o seu desejo mais oculto e que deve ter a primazia sobre tudo”.
Ele vem significando um novo populismo católico, reconectando a Igreja com o Povo de Deus através da atenção à vida e experiência das pessoas comuns, empregando uma linguagem ordinária e falando diretamente às inquietações delas, e não se refugiando em abstrações e esquemas idealizados.
Em uma palavra, trata-se de uma Igreja que procura ser “próxima” e “concreta” – traços que o próprio papa encarnou em um nível surpreendente, em sua comunicação e em suas ações, transformando o próprio papado.
É uma Igreja de diálogo, no sentido buscado pelo Vaticano II: em vez de tratar o mundo exterior como necessitando aprender as verdades que a Igreja possui, essa Igreja tem mais a ver com descobrir o que Deus tem feito e está fazendo na vida das pessoas e das sociedades, ao mesmo tempo em que denuncia aquilo que resiste a esta presença.
É uma Igreja que busca seguir a “lógica de Deus” ao invés de seguir a “lógica dos doutores da lei”, como disse Francisco aos cardeais em fevereiro de 2015 – ou seja, uma Igreja menos preocupada em preservar a comunidade das ameaças e mais preocupada com um encontro direto e com o conhecimento de Jesus Cristo, além do serviço à humanidade que flui a partir dessa experiência.
Conversão pastoral, conforme disse ao jornal La Civiltà Cattolica o Cardeal Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, significa uma Igreja “que não tem medo de comer e beber com as prostitutas e os publicanos”.
“Faz falta uma Igreja que não tenha medo de entrar na noite deles”, disse Francisco ao episcopado brasileiro em 2013.
“Precisamos de uma Igreja capaz de encontrá-los no seu caminho. Precisamos de uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Precisamos de uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que, fugindo de Jerusalém, vagam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido”.
Nas palavras dirigidas aos bispos e cardeais, Francisco fez da “pastoralidade” um critério central, pondo um fim no costume de tornar bispo um padre simplesmente porque este é um acadêmico ortodoxo ou um canonista. Se o padre não consegue caminhar com as pessoas nas realidades humanas delas, ele não é adequado para liderar o rebanho católico.
O papa também aboliu o costume de automaticamente premiar com barretes cardinalícios importantes sés, dando-os, diferentemente, a bispos pastorais periféricos de forma que a voz dos pobres esteja presente no comando da Igreja universal. Ao longo destes quatro anos, Francisco tem aplicado rigorosamente o princípio de Yves Congar, de uma verdadeira reforma da Igreja, segundo o qual a periferia deve poder modelar o centro se se quiser revelar em suas estruturas a verdadeira face de Cristo.
Dirigindo-se aos bispos americanos na Filadélfia, em setembro de 2015, Francisco contrastou uma atitude que deplora os males sociais e culpa a sociedade contemporânea com a perspectiva de um pastor, a quem se pede para “procurar, acompanhar, erguer, curar as feridas do nosso tempo”.
Ao falar do medo dos jovens em assumirem compromissos, por exemplo, disse que “em vez de repetir os problemas do mundo ao nosso redor e os méritos do cristianismo”, os pastores deveriam convidar os jovens a “serem bravos e a optarem pelo matrimônio e a família”.
Misericórdia não significa diluir a verdade para torná-la mais palpável, como acreditam muitos dos críticos de Francisco; significa, isto sim, converter a Igreja para ajudar as pessoas a viver melhor aquela verdade. O que dizer: não se refugiar em abstrações, como se a simples enunciação da verdade convertesse as pessoas, mas encorajar a abertura à graça que irá capacitá-las a viver a verdade.
“Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas”, observa Francisco em Amoris Laetitia. “Temos dificuldade em apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira”.
Conversão pastoral resume-se nas três palavras-chave de Amoris Laetitia: acompanhamento, discernimento e integração. Ela implica um modo de a Igreja tratar o “mundo” – não gritando com ele, mas servindo-o, ensinando-o, curando-o.
Conversão pastoral requer uma proclamação querigmática – o caminho de Jesus liberta, traz vida, é a resposta ao anseio dos nossos corações – e não uma proclamação moralista. A doutrina não é um código moral que deve ser obedecido, mas a verdade que flui do seguimento de Cristo.
Isso também significa criar espaços na Igreja para o discernimento, isto é, uma atenção às realidades humanas e às capacidades e escolhas por vezes limitadas que as pessoas fazem. Isso igualmente reflete uma teologia pastoral eminentemente latino-americana, modelada pela experiência de ministrar aos pobres.
Amoris Laetitia é repleta de uma tal teologia, em especial onde convida os pastores a aplicarem a lei tendo em conta as circunstâncias (psicológicas, históricas, sociais) que podem impedir a capacidade de alguém de acolher a verdade de forma plena num dado momento. “Temos de responder às pessoas e ajudá-las em seu caminho a Deus, e fazer isso não é simplesmente aplicar a lei”, declarou o Cardeal Vincent Nichols, de Westminster, em entrevista recente.
Evangelizar é, primeiramente, descobrir as sementes do Evangelho na vida dos demais, e regar e nutrir estas sementes. “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las”, diz Francisco em Amoris Laetitia. A conversão pastoral não tem a ver com o triunfo de uma ideia, mas abrir espaço para a ação divina.
Estas coisas significam uma nova ênfase no ministério pastoral como serviço. “Os leigos são parte do Santo Povo fiel de Deus e, portanto, são os protagonistas da Igreja e do mundo; somos chamados a servi-los, não a servir-nos deles”, escreveu o papa à Pontifícia Comissão para a América Latina.
A resistência a Francisco chegou – nos Estados Unidos em particular – por parte dos que se apegam ao conceito de Igreja como um guerreiro cultural ou um grupo de lobby político centrado em boas ideias e políticas eficazes. Mas tão logo se considere a Igreja como um ator político que fala a partir de um lugar que Francisco chama de “autocracia pastoral”, ela perde credibilidade. Onde ela fala, com ousadia, a partir de sua experiência pastoral, a sociedade escuta.
Para alguns, eis a parte mais difícil deste pontificado mortificante: o convite a abandonar as maneiras e os mecanismos de poder e privilégio. Tem sido especialmente difícil para muitos membros do clero, por causa das críticas lhes feitas em decorrência da importância autoatribuída por eles e pelo autoritarismo que demonstram, pela sua rigidez, autossuficiência e imobilidade, e pela falta de alegria demonstrada; tem sido particularmente difícil a eles ouvir o papa se descrever como um pecador que acredita na “teologia do fracasso”.
Mas Francisco sabe que a melhor forma de realizar a conversão é pondo as pessoas no lugar das vítimas. Os padres (e autoridades curiais) que discordam da listagem do papa aos pecados cometidos por eles devem, pelo menos agora, entender melhor como muitas pessoas se sentem quando o clero faz o mesmo.
Francisco é duro ao atacar o clericalismo, pois este é central à conversão pastoral. Os pastores representam Cristo, e, se viram as costas ao povo, tornam-se um obstáculo a Ele.
O papa está aplicando os mesmos princípios da conversão pastoral à burocracia vaticana. No período de 2012-2013, a Cúria Romana tinha se tornado um sério obstáculo para a missão da Igreja, uma barreira entre o Bispo de Roma e os bispos do mundo, ao invés de constituir uma ponte.
Francisco pôs em movimento um processo de reforma cujos frutos serão vistos num pontificado futuro, mas que já tem transformado a Cúria de forma que ela deixe de trabalhar independentemente do papa ou, mesmo, contra ele. O pontífice, porém, está evitando o perigo de modelar a Cúria à sua própria imagem, confiando a tarefa de reestruturação a longo prazo ao seu Conselho de Cardeais.
Nesse ínterim, ele reduziu a autonomia do Vaticano em vários sentidos, permitindo um maior fluxo entre Roma e as igrejas locais.
Sem demitir funcionários leigos, mas impondo um congelamento (exceto onde necessário) para novas contratações, Francisco diminuiu o tamanho e o escopo da Cúria, e tem governado, de variados modos, sem a Cúria, dando, pelo contrário, aos bispos e cardeais um papel maior nas decisões que afetam a Igreja universal, por meio do C9 (cardeais diocesanos, não curiais), do Sínodo dos Bispos e do Colégio Cardinalício.
Ele também tem reduzido a sua produção. O que sob o comando de São João Paulo II era uma torrente de documentos jorrando dos departamentos vaticanos semanalmente foi reduzido a uma gota. A descentralização e a subsidiariedade restauraram aos bispos locais a função magisterial própria deles, aplicando a doutrina universal de um modo apropriado ao contexto imediato.
O papa vem simplificando e racionalizando os dicastérios, fundindo conselhos diversos e pondo-os em pé de igualdade. Hoje existem três “secretarias” (para o Estado, a economia e comunicação) em vez de uma apenas, para que a Secretaria de Estado não possa mais ser um “vice-papa” e criar um feudo na Cúria.
Ele igualmente abriu Roma para pessoas de fora, a não italianos, criando ou mudando os conselhos das instituições e agências de vigilância financeiras vaticanas para incluir um grande número de leigos vindos do mundo inteiro.
A reforma financeira – saldando os livros de registro, permitindo que o Óbolo de São Pedro seja gasto na maior parte em obras de caridade, publicando contas auditadas – é um trabalho em curso, mas ninguém acredita que os velhos tempos, com os seus escândalos financeiros, irão voltar. A finalidade do Vaticano – facilitar a atividade pastoral da Igreja – foi restaurada.
Tão importante quanto isso é que Francisco atacou a cultura da autossuficiência que se encontra por trás daqueles escândalos em uma barragem constante contra os apegos à riqueza, imagem e poder, e a todas as formas de “mundanismo espiritual” – emprego dos recursos da Igreja para ganho pessoal.
Por vezes Francisco foi acusado, nesses quatro anos, de negligenciar a Europa, coração tradicional do catolicismo, onde a Igreja mostra inúmeros sinais de decadência. Entretanto, em seus discursos ele tem abordado este declínio convidando a Igreja a pôr a sua fé não na restauração de épocas passadas ou em novas estruturas deslumbrantes, mas na conversão pastoral.
“Devemos ficar entre as pessoas com o ardor daqueles que foram os primeiros a acolher o Evangelho”, disse ele aos bispos alemães. “E sempre que fizermos o esforço para voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, surgem novas avenidas, novos caminhos de criatividade se abrem”.
O papa deu o mesmo conselho aos bispos italianos: a reforma não consiste num plano de reformar as estruturas, mas “enxertar-se e enraizar-se em Cristo, deixando-se ser guiado pelo Espírito – de modo que tudo será possível com gênio e criatividade”.
Sede pastores, disse-lhes o papa. “Que nada nem ninguém vos tire a alegria de ser apoiados pelo vosso povo. Como pastores não sois pregadores de doutrinas complexas, mas anunciadores de Cristo, morto e ressuscitado por nós. Tende em vista o essencial, o querigma. Não há nada de mais sólido, profundo e seguro que este anúncio. Mas seja todo o povo de Deus a anunciar o Evangelho, povo e pastores, entendo”.
Francisco insiste não ser ele nenhum reformista, e que não contava, quatro anos atrás, com nenhum plano de reforma para a Igreja. Mas ele tinha, sim.
Chamava-se conversão pastoral. Foi projetada na América Latina, e permanece sendo o centro do programa deste pontificado. Sendo ou não eficaz – e ele é, pelo menos a julgar pela oposição feroz –, a história vai julgar o Papa Francisco.
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Quatro anos depois, a revolução pastoral de Francisco está no centro de tudo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU